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Processo nº 508/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, proferiu o Relator a seguinte Decisão Sumária:
'1. JP, com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'com fundamento em aplicação de normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, em conformidade com o disposto no artº 70, nº 1, al.b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro e pela Lei 88/95 de 1 de Setembro', do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, doravante STJ, de 13 de Janeiro de 1999 (3ª Secção), que, concedendo 'parcial provimento' ao recurso por ele interposto, fixou 'as penas parcelares em 18 e 15 meses por cada um dos crimes integrados e a pena única em 2 anos e meio de prisão'. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, diz o recorrente que 'pretende-se: a) Ver aplicada a inconstitucionalidade da interpretação do artº 126º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal que faz interpretação restritiva da expressão
'meios enganosos' por infringir a regra garantística dos meios lícitos de prova inscrita no artº 32º, nº 6 da CRP, tratando-se de matéria que só pode ser restringida à luz dos requisitos das leis restritivas previstas no artº 18º, nºs
2 e 3 da CRP; b) Ver aplicada a inconstitucionalidade dos artºs 433º e 410º, nºs 2 e 3, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação feita pelo STJ, na medida em que determina que o recurso para o Supremo visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, violando as garantias de defesa do artº 32º, nº 1 da CRP;
2. Começando por esta última questão - a da inconstitucionalidade dos artºs 433º e 410º, nºs 2 e 3, ambos do Código de Processo Penal -, é bom de ver que tais normas não chegaram a ser aplicadas no acórdão recorrido, pois neste concluiu-se que 'tal questão não foi concretamente suscitada nos autos já que o Recorrente não deduziu recurso em matéria de facto para poder concluir que tal recurso lhe foi negado' ('Assim, não cumpre ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer de tal questão' - acrescenta-se depois). Inexistindo, portanto, recurso em matéria de facto, não há que chamar à colação os citados normativos do Código de Processo Penal, e, assim, falta um pressuposto do recurso de constitucionalidade em causa: o da aplicação de normas arguidas de inconstitucionalidade durante o processo (artigo 70º, nº 1, b), da Lei nº 28/82). Nem se diga que o recorrente, na motivação do recurso que interpôs para o STJ, levanta a questão da 'inconstitucionalidade do art 433º do CPP', sob o título:
'G. Inobservância do duplo grau de jurisdição', o que imporia o conhecimento de tal questão, pois ele próprio discute-a só academicamente e reconhece que,
'apesar de pretender pôr em causa certos factos dados como provados, está impedido de o fazer'. Manifesta, deste modo, uma mera intenção, que não concretizou, mas não levanta nenhuma controvérsia sobre os tais 'factos dados como provados' e, por isso, o STJ não teve oportunidade de aplicar o regime em causa do processo penal. Daí, que neste ponto, não se possa tomar conhecimento do presente recurso, por falta do aludido pressuposto.
3. Quanto à questão da 'inconstitucionalidade da interpretação do artº 126º, nº
1, al. a) do Código de Processo Penal que faz interpretação restritiva da expressão 'meios enganosos' por infringir a regra garantística dos meios lícitos de prova inscrita no artº 32º, nº 6 da CRP, tratando-se de matéria que só pode ser restringida à luz dos requisitos das leis restritivas previstas no artº 18º, nºs 2 e 3 da CRP', também falece o mesmo pressuposto processual, pois do acórdão recorrido não se colhe uma interpretação e aplicação daquela norma (é a alínea a) do nº 2 e não do nº 1) com o tal sentido restritivo da expressão 'meios enganosos'. E porquê? Na motivação do recurso para o STJ, diz o recorrente pretender ver apreciada a inconstitucionalidade da referida norma por dela ter sido feita pelas instâncias uma interpretação restritiva, interpretação essa que consistiria 'em excluir dos meios enganosos 'aqueles em que, apesar das autoridades policiais se apresentarem sob disfarce ou ocultos sob o suspeito, se limitam a surpreendê-lo ou a encaminhá-lo astuciosamente para espaços ou tempos em que a sua actuação criminosa possa ser revelada' (nº IX do texto da motivação). Ora, o que o STJ disse é que, perante os factos dados como provados, não se verificou a existência de qualquer meio enganoso. E isto porquê? Porque, no discurso do acórdão, 'os factos provados revelam que entre o JM e o arguido já havia sido estabelecido o acordo quanto à quantia a pagar para pôr em andamento o processo de reembolso do IVA. Ora tal crime - artº 373º, nº 1 do C. Penal - consuma-se com a aceitação da vantagem patrimonial ou mesmo com a aceitação da mera promessa dessa vantagem, como contrapartida do acto ou da omissão... O crime estava, pois, consumado antes da notícia dos factos à Polícia!' E mais: 'mesmo com a sua intervenção, os agentes da Polícia não induziram o arguido à aceitação da promessa nem ao recebimento do dinheiro. Limitaram-se a colocar-se em pontos estratégicos para observarem o comportamento do arguido em face da comunicação que o JM lhes fizera'. Quando o STJ se debruça sobre a caracterização do 'agente provocador' e do
'agente infiltrado' é para dizer que não se verifica nenhuma dessas figuras e, ainda que se tentasse ver, na actuação da polícia a figura do 'agente infiltrado', mesmo assim, isso não seria 'meio enganoso'. Mas tudo isto é um elemento no discurso do acórdão recorrido que é utilizado 'ex abundanti', porque os factos dados como provados - e de cuja prova não houve recurso para o STJ - demonstram que, qualquer que seja a interpretação mais ou menos restritiva que se tenha do conceito de 'meio enganoso', ele é irrelevante para a decisão. E isto, mais uma vez, porque o crime já estava consumado antes
(assim o provam os factos, no entendimento do STJ). No acórdão não se faz, pois, uma interpretação restritiva do conceito, pela simples razão de que, qualquer que seja essa interpretação, considera-se assente que o crime estava consumado. E daí não haver apelo ao conceito de 'meios enganosos' (no acórdão recorrido reconhece-se que a 'tal missão dos agentes da Polícia Judiciária não configura qualquer meio enganoso de prova, antes se perfilando como meio inteiramente legítimo'. Com o que não se mostra preenchido também neste ponto o mesmo pressuposto do presente recurso de constitucionalidade, pois a norma questionada não chegou a ser aplicada no acórdão recorrido com a tal 'interpretação restritiva da expressão 'meios enganosos'.
4. Termos em que, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, e na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, não tomo conhecimento do recurso e condeno o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em seis unidades de conta.' B. Dessa Decisão Sumária veio o recorrente ' reclamar para a conferência, nos termos do art° 78-A, nº 3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional', usando uma argumentação compacta que pode assim resumir-se, no essencial:
- começa por querer demonstrar-se que a 'interpretação dada na presente decisão ao art° 78-A, n° 1 é ela própria limitadora do direito de recurso e das garantias de defesa do arguido, violando o artº 32°, nº1 da CRP', pois a
'decisão de não tomar conhecimento equipara-se à negação de provimento do recurso, sendo apenas distinta quanto ao número de intervenientes e ao detalhe de análise, impedindo que o recurso seja apreciado no seu mérito' e ao entender
' não sujeitar a apreciação a aplicação das normas invocadas no decurso do processo, a decisão sumária torna-se limitativa e diminui as garantias de defesa do recorrente no processo'.
- ' No caso em apreço o Meritíssimo Juiz Relator apreciou sumariamente do mérito do recurso, fazendo referência à interpretação dada pelo Tribunal de 1ª Instância e pelo ST J', e ' foi exactamente por ter elementos no processo que foi possível tomar posição quanto aos mesmos'.
- 'O recorrente, na verdade, suscita em concreto e na peça de suporte - motivação de recurso - a inobservância do duplo grau de jurisdição', só fazendo
'sentido a invocação da impossibilidade de conhecimento das questões de facto e de direito quando o arguido pretende e exerce o direito de recurso'
- 'Quanto à questão da inconstitucionalidade da interpretação do art° 126°, nº1, al. a) do CPP que faz uma interpretação restritiva da expressão 'meios enganosos', infringindo a regra garantística dos meios ilícitos inscrita no artº
32°, n° 6 da CRP , o Meritíssimo Juiz Relator optou por também não tomar conhecimento do recurso, no entanto, como aliás se referiu, não deixou de se pronunciar sobre o mesmo', mas o recorrente 'não invoca apenas a operação policial montada para o efeito, mas também a actuação do JM, que actuou como verdadeiro agente provocador' ('A operação é toda ela montada sob a orientação policial, actuando o JM, na qualidade de mero civil, mas ao serviço e sob orientação da Polícia Judiciária'). C. À reclamação respondeu o Ministério Público nos seguintes termos:
'1º - Ao contrário do que pretende o recorrente, a decisão que ora vem impugnar, mediante reclamação para a conferência, não tomou conhecimento do recurso interposto por faltarem os respectivos pressupostos legais de admissibilidade – já que, na óptica de tal decisão, o recorrente não suscitou, de modo adequado, a questão de inconstitucionalidade das normas dos artigos 410º a 433º do Código de Processo Penal e o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça não realizou da norma do artigo 126º do Código de Processo Penal a interpretação, alegadamente inconstitucional, especificada pelo recorrente.
2º - Pelo que se não entende a conclusão, que extrai a fls. 614, segundo a qual
'a decisão de não tomar conhecimento equipara-se à negação de provimento do recurso' – já que são obviamente planos diferenciados o do julgamento do mérito e o da apreciação dos pressupostos de natureza procedimental que o condicionam.
3º - Ora – quanto à primeira daquelas questões – importa referir que, para além de o Plenário deste Tribunal já ter decidido que o sistema de recursos do Código de Processo Penal, na sua versão anterior à vigente, não padecia da apontada inconstitucionalidade, se verifica que efectivamente as referidas normas não foram aplicadas pelo Supremo, pela simples circunstância de o recorrente não ter sequer controvertido a matéria de facto dada como assente na 1ª Instância.
4º - Só fazendo obviamente sentido aplicar tais normas, limitativas dos poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça em sede de reapreciação da matéria de facto, se esta tiver sido impugnada ou questionada, de modo concreto e efectivo pelo recorrente.
5º - Relativamente à segunda questão de constitucionalidade, verifica-se que o acórdão recorrido não fez da norma do artigo 126º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal a pretendida – e alegadamente inconstitucional – interpretação restritiva, afastando claramente a versão ou interpretação especificada pelo recorrente na sua motivação, ao decidir que o crime se consumou antes da notícia dos factos à Polícia, limitando-se os agentes policiais a 'colocar-se em pontos estratégicos para observarem o comportamento do arguido em face da comunicação que o JM lhes fizera'.
6º - Sendo evidente que tal versão do acórdão recorrido – para além de não corresponder minimamente à 'interpretação inconstitucional' indicada pelo recorrente - não implica qualquer 'interpretação restritiva' do conceito de
'meios enganosos' – e sendo certo que o acórdão recorrido afasta expressamente a qualificação da conduta do referido Macedo como 'agente provocador'.
7º - Termos em que deverá improceder a presente reclamação'. D. Por acórdão nº 64/2000, a fls. 630 dos autos, foi decidido, com voto de vencido do Relator, 'revogando a Decisão Sumária proferida, ordenar o prosseguimento dos autos'. E. Determinada a feitura de alegações, veio apresentá-las o recorrente, começando por enunciar como objecto do recurso 'duas questões fundamentais' ('a) A questão da interpretação restritiva do artigo 126º, nº 2 al. a) do CPP, na expressão ‘meios enganosos’, por infringir os artigos 18º, nº 2 e 3 e 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa, na sua redacção actual. b) A inconstitucionalidade do artº 433º do CPP/82, na medida em que dispõe que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa, exclusivamente, o reexame da matéria de direito, não permitindo, assim, a reapreciação da matéria de facto, violando-se, assim, o princípio do duplo grau de jurisdição) e concluindo deste modo:
'1°- O crime de corrupção passiva para acto ilícito com referência aos factos de
04/11/96, tem a sua conduta inserida nos meios enganosos previstos no artº 126°, n° 2 do CPP/82.
2º-Trata-se de um crime provocado.
3° - Pois, a sua efectiva consumação ocorre no âmbito duma operação controlada, acordada entre os agentes policiais e o corruptor activo .
4° - O que fizeram.
5° - O dinheiro entregue num envelope pelo corruptor activo era do conhecimento prévio dos agentes policiais.
6° - O agente provocado nunca agiu de livre e espontânea vontade, tendo sido manipulado pelos agentes policiais e pelo agente provocador, cujo intuito com a referida operação se dirigiu à sua punição.
7°- O artº 126°, no2 do CPP/82, na expressão ‘meios enganosos’ deve ser interpretado à luz da garantia constitucional de meios ilícitos de prova inscrita no artº 32, nº 8 da CRP na sua redacção actual.
8° - Trata-se de matéria abrangida nos ‘direitos, liberdades e garantias’.
9° - Na ordem jurídica portuguesa essa matéria não pode ser restringida, a não ser por lei e à luz dos requisitos das leis restritivas previstas no artº 18°, nº 2 e 3 da CRP .
10º - Foi efectivamente feita interpretação restritiva da expressão ‘meios enganosos’ por forma a dela excluir a operação oficial que determinou a conduta do arguido.
11° - Essa interpretação não é lícita, sendo contrária à regra constitucional inscrita no artº 32º, nº 8 da CRP .
12º - Sendo, pois, materialmente inconstitucional. Acresce que,
13° - Com o sistema de recursos consagrado no artº 433° do CPP/82 (actualmente, artº 434°) e 410º, nº 2 e 3 do mesmo diploma, os poderes de cognição do ST J limitam-se a matéria de direito, uma espécie de revista ampliada.
14° - Está vedado ao ST J a reapreciação crítica da matéria de facto.
15°- Não havendo, deste modo, recurso em matéria de facto .
16° - Tais normas, consagradas naqueles dois preceitos - artº 433° e 410°, nº 2 e 3 - infringem o princípio do duplo grau de jurisdição consagrado no artº 32º , nº1 da CRP .
17º - Estando assim, feridas de inconstitucionalidade material. Como é de justiça!' F. Contra-alegou o Ministério Público e avançou esta conclusão:
'1. O acórdão recorrido não só não fez qualquer interpretação restritiva do artigo 126º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, como afastou expressamente a qualificação da conduta do JM como agente provocador, pelo que não foram violados os artigos 18º, nºs 2 e 3, e 32º, nº 8 da Constituição.
2. O Plenário deste Tribunal já decidiu, pelo acórdão nº 573/98, não julgar inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do nº2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que o vício resulte do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
3. Sendo certo que pelo acórdão nº 401/91 foi declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, o artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, isso não significa, porém, que este Tribunal tenha entendido que, constitucionalmente admissível, fosse apenas uma solução legal que, nos recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo previsse a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso.
4. Deve, pelo exposto, improceder o presente recurso' G. Ouvido o recorrente sobre 'os aspectos preliminares do nº 2.1 das contra alegações do Ministério Público e que podem ser obstáculo ao conhecimento, pelo menos, parcial, do mérito do presente recurso', pronunciou-se no sentido de que
'não se verifica qualquer questão prévia que obste à apreciação pelo Tribunal Constitucional, antes pelo contrário, Pois a interpretação que foi feita pelo Tribunal recorrido das normas constantes do artº 126º do CPP, viola o disposto nos artºs 18º, nº 2 e 3, e 32º, nº 8 da CRP', a partir da seguinte consideração essencial:
'Considera o Exmo Senhor Procurador Adjunto que a conduta do J.J. Macedo foi expressamente afastada como agente provocador, pelo que, não houve lugar a interpretação restritiva. No entanto , Não houve qualquer fastamento expresso ou tácito da conduta do J.J. Macedo como agente provocador. O acórdão recorrido não procedeu à desvalorização da conduta do J.J. Macedo, antes a ignorou, decorrente de uma interpretação restritiva que fez do referido artº 126°, nº 2, a) do C.P .P , na medida em que considerou válida a prova obtida mediante acção controlada. O acórdão recorrido invoca a consumação do crime, para afastar qualquer possível actuação de controlo policial. No entanto, deixa por explicar o facto de não ter existido punição da conduta do corruptor activo perante o crime consumado. Qualquer atenuação especial da pena a aplicar, decorrente do eventual arrependimento nunca podiam ter excluído a punição do facto ilícito. Como se justifica pois que o J.J. Macedo não seja ele próprio acusado? Só perante uma desvalorização da sua conduta ilícita, por agir sem dolo ao não pretender, em si, a prática do crime, mas a mera incriminação do arguido, o que tomaria o seu comportamento criminalmente não reprovável. Isto é, a conduta do J.J. Macedo não foi censurada pelo Tribunal recorrido porque, apesar de formalmente não o considerar, a verdade é que a valorou como se de um agente provocador se tratasse, ao nível da sua responsabilidade' H. Tudo visto, cumpre decidir: Começando pela apreciação da posição do Ministério Público nas contra-alegações
– e que vinha já da anterior resposta à reclamação para a conferência, prevista no artigo 78º-A, nº 3, da Lei nº 28/82, como ficou transcrito no ponto C. – e vendo nela uma questão prévia, na medida em que se sustenta que 'a alusão feita pelo recorrente às diversas teses sobre a figura dogmática do agente provocador surge como mera discussão académica' , pode adiantar-se que está agora ultrapassado voltar a questionar naquela óptica se se pode ou não tomar conhecimento do presente recurso, por falta de pressupostos processuais, na medida em que no citado acórdão nº 64/2000 decidiu-se exactamente revogar a Decisão Sumária, na qual se entendera que procedia uma tal questão e ordenou-se o 'prosseguimento dos autos'. Na verdade, a questão posta pelo Ministério Público não é diferente da questão tratada nessa Decisão, entretanto revogada, pelo que há que passar sem mais ao conhecimento de fundo. I. O conhecimento do mérito do presente recurso passa pelas 'duas questões fundamentais' enunciadas pelo recorrente (cfr. ponto E.) e à primeira delas responde-se mais facilmente. Com efeito, e como regista o Ministério Público, o 'Plenário deste Tribunal já decidiu, pelo acórdão nº 573/98, não julgar inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do nº2 do artigo 410º do mesmo Código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que o vício resulte do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum'. Consequentemente, não pode proceder, na linha dos fundamentos daquele aresto, publicado no Diário da República, II Série, nº 263, de 13 de Novembro de 1998, a invocada 'inconstitucionalidade do artº 433º do CPP/82', não tendo razão o recorrente quando afirma que aquele artigo,
'conjugado com o artº 410º, nº 2 e 3 do mesmo diploma, na medida em que limita os poderes de cognição do STJ ao reexame da matéria de direito, não garante o recurso em matéria de facto'. Nada mais há que adiantar, não interessando chamar aqui à colação o acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/91, publicado no Diário da República, I Série-A, nº 6, de 8 de Janeiro de 1992 e nos Acórdãos, vol. 20º, que tem a ver com outra norma, o artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929. Com o que improcedem as conclusões 13ª a 17ª das alegações do recorrente. J. A segunda questão é a da 'interpretação restritiva do artigo 126º, nº 2 al. a) do CPP, na expressão ‘meios enganosos’, por infringir os artigos 18º, nº 2 e
3 e 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa, na sua redacção actual'. Sobre este ponto discreteou o Supremo Tribunal de Justiça nestes termos:
'1- A prova da entrega do dinheiro, obtida sob o conhecimento e o olhar da polícia, no âmbito de uma operação policial, deverá considerar-se meio enganoso para os efeitos do art. 126 nº 2 a) do C.P.Penal? A questão reporta-se tão só ao facto de o JM e o JP haverem combinado fazer a entrega do dinheiro num jantar realizado no Restaurante Fateixa. Combinada tal entrega, o JM dirige-se à Polícia Judiciária onde denunciou o que se estava a passar. E a Polícia Judiciária monta nesse Restaurante uma operação por forma a visionar a entrega do dinheiro e, consumada esta, lograr a detenção do arguido e a recuperação do dinheiro. Ora o art. 32 nº 6 da Constituição Política dispõe que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa de integridade física ou moral de pessoa...
É, porém, o art. 26 nºs 1 e 2 do C.P.Penal que reproduz o apontado nº 6 e no seu nº 2 a) estabelece que são ofensivas de integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas... mediante... meios cruéis ou enganosos. E a nulidade das provas obtidas por meios enganosos arrasta a invalidade do acto em que se verificaram e dos actos que dele dependerem ou poder afectar – art.
122 do C.P.Penal-. Característico deste meio enganoso de prova é a figura do agente provocador – em que um membro da autoridade policial, ou um civil comandado pela polícia, induz outrém a delinguir por forma a facilitar a recolha de provas da ocorrência do acto criminoso -. E é de rejeitar a sua aceitação porque não podem ser as próprias autoridades a criar ou a alimentar a própria vontade de realização do ilícito, cuja prova visam recolher, para posteriormente assegurarem a respectiva punição. Isso traduziria um cinismo moral incompatível com a necessária boa reputação e legitimação das autoridades da justiça penal. Por isso se distingue a figura do agente provocador do agente infiltrado, caracterizando-se este por o agente se insinuar junto dos agentes do crime, ocultando-lhes a sua qualidade, de modo a ganhar a sua confiança a fim de obter informações e provas contra eles, mas sem os determinar à prática de infracções. E comumente se vêm aceitando as provas obtidas através do agente infiltrado. E isto porque, se a utilização do agente provocador representa sempre um acto de deslealdade que afecte a cultura jurídica democrática e a legitimação do processo porque acolhe, tal não ocorre na figura de agente infiltrado em que tais valores não se revelam afectados. Ora, na actuação dos agentes de Polícia Judiciária que observaram os factos provados de 4/11/96, não é possível ver enquadrada a figura do agente provocador. E nem mesmo a figura do agente infiltrado. Efectivamente, os factos provados revelam que entre o JM e o arguido já havia sido estabelecido o acordo quanto à quantia a pagar por pôr em andamento o processo de reembolso do IVA. Ora tal crime – art. 373 nº 1 do C.Penal – consuma-se com a aceitação da vantagem patrimonial ou mesmo com a aceitação da mera promessa dessas vantagens, como contrapartida do acto ou da omissão... O crime estava, pois, consumado antes da notícia do facto à Polícia. E, mesmo com a sua intervenção, os agentes da Polícia não induziram o arguido à aceitação da promessa nem ao recebimento do dinheiro. Limitaram-se a colocar-se em pontos estratégicos para observarem o comportamento do arguido em face da comunicação que o JM lhes fizera. Assim, não só não induziram o arguido a aceitar a promessa, como até não tiveram qualquer controlo ou prova prévia do que iria suceder. Limitaram-se a observar se ocorria o facto que o dito Macedo lhes anunciara que ia ter lugar: a entrega. E, assim, os agentes de Polícia nem como agentes infiltrados podem ser considerados. É que o engano do arguido, se existe, consiste tão só no seu desconhecimento de que a Polícia já tem notícia do crime e adopte um comportamento omissivo até o arguido revelar a conduta concreta do recebimento da vantagem patrimonial. Mas isso sem qualquer interferência na sua liberdade de recolher, de aceitar ou recusar tal vantagem. E tal missão dos agentes de Polícia Judiciária não configura qualquer meio enganoso de prova antes se perfilando como meio inteiramente legítimo. Improcede, por isso, a conclusão do Recorrente'.
Para o recorrente, e no essencial, 'o tribunal a quo para ‘salvar’ a licitude da prova relativamente ao segundo crime imputado ao arguido procedeu a uma interpretação restritiva da norma do artº 126º, nº 2 al. a) do CPP, na parte relativa à expressão meios enganosos’', e, assim, acabou 'por excluir do contexto dessa mesma expressão a utilização dos meios utilizados in casu para obtenção de provas quanto ao cometimento do crime imputado ao arguido'. Deste modo, para o recorrente, 'o acórdão recorrido entende que o crime imputado ao arguido já estava consumado no momento em que ocorreu a operação policial, pelo que, não se verificou no caso concreto os pressupostos de falta de vontade/intenção na consumação do crime nem foram tomadas quaisquer diligências para evitar a lesão do bem jurídico protegido' e, assim, 'se considerou a validade das provas obtidas através da operação policial em que o corruptor activo agiu, na qualidade de mero civil, como verdadeiro agente provocador, mas ao serviço e sob orientação da policia'. E acrescenta ainda o recorrente:
'Conclui-se, mais uma vez, estar-se perante um crime 'provocado em que a utilização de um civil enquanto agente provocador , teve por única intenção servir os interesses de prossecução penal sem qualquer respeito pelas regras processuais de obtenção de prova, visando acima de tudo a punição do agente provocado. No fundo não passou de uma astúcia encoberta por uma aparência de licitude, levada a cabo pelas entidades policiais, com o único propósito de punir o agente provocado, estando este todo o tempo coarctado na sua liberdade de actuação, visto nunca ter agido livre e espontaneamente Tendo a provocação por única finalidade a punição do provocado, ela é uma técnica de prossecução penal contrária aos princípios constitucionais. Está-se perante um comportamento contrário aos princípios do Estado social de direito e ao respeito pela dignidade humana, porque o provocado é reduzido a um mero objecto da acção estatal com o fim de obter provas de convicção. Ao defender-se uma actuação deste género está-se a entrar em contrariedade, pois, aceita-se o facto punível induzindo o agente provocado à prática do crime
(lesionando-se o ordenamento jurídico) através da satisfação de meros interesses de prossecução estatal. A implicação do Estado, através dos seus órgãos de polícia criminal, na manipulação da realidade e da intenção do provocado desfigura a sua função de garante da liberdade e da legalidade, colocando sérias dúvidas sobre o ‘facto próprio’ que requer o crime. Além disso parece-nos que a pena abandona o seu significado de meio necessário para se alcançar os objectivos de política criminal fixados pelo ordenamento jurídico, para ser um fim em si mesma, com o exclusivo objectivo de punir o agente. Conclui-se, pois, que a utilização do agente provocador no caso em análise consubstancia um método ilícito de obtenção de provas. Assim, A presumida licitude das provas obtidas através da utilização do agente provocador só pôde lograr-se com uma interpretação restritiva do artº 126° ,nº 2 al. a) do CPP'. Suposto que do que vem alegado pelo recorrente se pode colher a tal ideia da
'interpretação restritiva do artigo 126º, nº 2 al. a) do CPP, na expressão
‘meios enganosos’', interpretação esta que , segundo o recorrente, teria sido feita no acórdão recorrido, na medida em que nele se não considerou meio enganoso para os efeitos daquela alínea a) a operação policial em causa (ou seja: a prova da entrega do dinheiro, obtida sob o conhecimento e o olhar da polícia, no âmbito de uma operação policial, não foi considerada prova obtida por meio enganoso), tudo está em saber se, aplicada assim aquela norma, há violação dos artigos 18º, nº 2 e 3, e 32º, nº 8 , da Constituição, como pretende fazer crer o recorrente. A tal propósito, mas relativamente a um quadro normativo e fáctico distinto, trazendo em todo o caso à colação o disposto nos artigos 125º e 126º do Código de Processo Penal, o Tribunal Constitucional tomou posição no acórdão nº 578/98, publicado no Diário da República, II Série, nº 48, de 26 de Fevereiro de 1999, sobre o princípio da liberdade de prova em processo penal e sobre a ideia de deslealdade que se pode ligar a esta ou àquela técnica de investigação. Nesse aresto afirma-se, depois de se reconhecer que a diferença entre agente infiltrado e agente provocador 'é, por vezes, bem ténue', que é 'inquestionável a inadmissibilidade da prova obtida por agente provocador, pois seria imoral que, num Estado de Direito, se fosse punir aquele que um agente estadual induziu ou instigou a delinquir', e que uma 'tal desonestidade seria de todo incompatível com o que, num Estado de Direito, se espera que seja o comportamento das autoridades e agentes da justiça penal, que deve pautar-se pelas regras gerais da ética', mas acaba-se por aceitar 'alguma excepcionalidade no modo de obter as provas'. Daí que não se tenha chegado nesse acórdão a um juízo de inconstitucionalidade, na base essencial de que, na ânsia de dar combate ao crime grave, só 'não podem legitimar-se comportamentos que atinjam intoleravelmente a liberdade de vontade ou de decisão das pessoas' (e noutro passo pode ler-se: 'O que verdadeiramente importa, para assegurar essa legitimidade, é que o funcionário de investigação criminal não induza ou instigue o sujeito à prática de um crime que de outro modo não praticaria ou que não estivesse já disposto a praticar(...)'). Ora, transpondo esta linha de rumo do citado acórdão nº 578/98 para o caso dos autos, e seguindo-a de perto, é de concluir que também aqui não se alcança nenhuma situação de proibição de prova, à luz do questionado artigo 126º, nº 2, a) e no que toca ao tal sentido restritivo da expressão 'meios enganosos', não se deparando nenhum vício de inconstitucionalidade na sua aplicação com esse sentido. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, apelando a interesses do processo criminal e aos limites da dignidade humana e dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, não podem deixar de ser consideradas 'provas de valoração proibida' os 'meios de prova que representem grave limitação da liberdade de formação e manifestação da vontade do arguido,, transformando este em meio de prova contra si próprio' (Constituição anotada, 3ª ed., pág. 207). Para Costa Andrade, e como métodos proibidos de prova, 'hão-de igual e seguramente valorar-se os demais atentados que realizam a mesma danosidade social de afronta à dignidade humana, à liberdade de decisão ou de vontade ou à integridade física ou moral das pessoas' (Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, pág. 216). Mas não é este o cenário do presente caso. Decisivamente, mesmo que se queira ver na montagem da operação policial a utilização da figura do homem de confiança – e aqui seria o JM, 'o corruptor activo', como é chamado pelo recorrente -, a verdade é que com ele não foi proporcionada do lado do arguido uma decisão criminosa, até então inexistente, antes foi criada uma oportunidade com vista à obtenção de uma decisão criminosa prévia, já que 'havia sido estabelecido o acordo quanto à quantia a pagar para pôr em andamento o processo de reembolso do IVA', como se lê no acórdão recorrido (Costa Andrade, aceitando que 'o recurso ao homem de confiança configurará normalmente um meio enganoso', não deixa contudo de afirmar que, aos
'olhos da lei portuguesa o mais decisivo terá sido o respectivo potencial de danosidade social, enquanto atentado à liberdade de declaração' – loc. cit. pág.
231, o que em todo o caso se não reconduz à situação descrita).
'Com efeito, na distinção e caracterização da proibição dum meio de prova pessoal é pertinente o respeito ou desrespeito da liberdade de vontade ou de decisão da capacidade de memorizar ou de avaliar. Desde que estes limites sejam respeitados, não será abalado o equilíbrio e a equidade entre os direitos das pessoas enquanto fontes ou detentoras da prova e as exigências públicas do inquérito e da investigação. A provocação, em matéria de proibição de prova só intervém se essas actuações visam incitar outra pessoa a cometer uma infracção que sem essa conduta não existiria' (nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal, págs. 667/668). Por tudo isto é de concluir que a interpretação feita no acórdão recorrido, mesmo que seja a 'interpretação restritiva da expressão ‘meios enganosos’ por forma a dela excluir a operação policial que determinou a conduta do arguido', não é contrária 'à regra constitucional inscrita no artº 32º, nº 8 da CRP', diferentemente do que sustenta o recorrente, improcedendo, assim, as doze primeiras conclusões das suas alegações. L. Termos em que DECIDINDO: a. nega-se provimento ao recurso; e b. condena-se o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em
1. unidades de conta. Lisboa, 14 de Fevereiro de 2001 Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa