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Procº nº 460/2000.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Do despacho proferido em 7 de Junho de 2000 pelo Presidente do Tribunal da Relação do Porto foi indeferida a reclamação ao mesmo dirigida por P, S.A., DS e GC do despacho prolatado em 19 de Novembro de 1999 pelo Juiz do 2º Juízo Criminal de Guimarães e por intermédio do qual não foi, com base no disposto no nº 1 do artº 291º do Código de Processo Penal, admitido o recurso intentado interpor de um outro despacho, de 15 de Julho do mesmo ano e que indeferiu a inquirição, em instrução, de determinadas testemunhas, inquirição essa requerida por aqueles arguidos.
Na peça processual consubstanciadora da reclamação, os arguidos sustentaram a inconstitucionalidade do referido normativo, pois que, na sua
óptica, o mesmo violaria os artigos 20º e 32º da Lei Fundamental, o artº 6º, nº
3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e os artigos 10º, parte final, e
11º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Não tendo o despacho tirado pelo Presidente do Tribunal da Relação do Porto sufragado o ponto de vista dos arguidos quanto à invalidade constitucional da norma em causa, desse despacho recorreram os ditos arguidos para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro..
2. Determinada a feitura de alegações, remataram os recorrente a por si formulada com as seguintes «conclusões»:-
'I. A impossibilidade de recursos das decisões que indeferem diligências probatórias na fase de instrução afecta o princípio da presunção de inocência do arguido e não permite o exercício do direito à não submissão a julgamento sem a verificação de indícios suficientes. II . A aceitar-se a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação pública (nº 1 do artigo 310º) ter-se-á, no mínimo, de permitir o recurso de despachos de indeferimento de diligências probatórias requeridas no âmbito da instrução. III. A opção por posição divergente é esvaziar por completo o sentido e a razão de ser da instrução, sem que existam fundamentos jurídicos bastantes para, nos termos do nº 2 do artº 18º da CRP restringir ou afastar nesta sede o direito ao recurso. IV. A admissão que a faculdade de recorrer pode ser «restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz possa mesmo não existir», apenas pode ocorrer «desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido. V. A irrecorribilidade do despacho de pronúncia nas situações previstas no nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal apenas não ofende as garantias de defesa se englobada no regime em que estejam salvaguardadas as garantias de defesa nas fases de inquérito e de instrução, nomeadamente através da possibilidade de requerer diligências probatórias e de recorrer de um eventual indeferimento. VI. A faculdade concedida pela lei através da instrução de colocar em crise a acusação deduzida, apenas poderá ser conseguida através da ponderação de provas da inexistência de dolo, da inocência do Arguido ou da não participação dos factos que lhes são imputados. VII. Considerar de ‘forma simplista’ que o legislador determina a irrecorribilidade do despacho que decide ‘não inquirir as testemunhas arroladas no requerimento de abertura de instrução’ é, em concreto, atingir o conteúdo essencial das garantias de defesa consagradas no artº 32º, nº 1, da CRP. VIII. Não pode a instrução ficar reduzida de forma a que, através do princípio da ‘investigação autónoma’, se atinja, desde logo, o conteúdo essencial das garantias de defesa do Arguido mas, igualmente, o própria consagração legal do direito de os arguidos requererem a abertura de instrução por forma a efectuar-se a comprovação da acusação em ordem à submissão ou não da causa a julgamento. IX. A ‘investigação autónoma’ conferida ao Juiz de instrução está balizada pelos princípios constitucionais das ‘garantias de defesa’ do nº 1 do artº 32º da CRP, devendo a selecção de actos de instrução nortear-se sempre pelas próprias finalidades da instrução. X. Em bom rigor, talvez não possa falar-se aqui de ‘discricionariedade’, pois, tal como no âmbito da administração pública, o poder discricionário não constitui, verdadeiramente, uma excepção ao princípio da legalidade: o poder discricionário de que a Administração goza para, em casos concretos, escolher, dentre as várias possíveis, a medida que considere mais adequada à satisfação da necessidade pública (...) não significa (...) que no exercício desses poderes a Administração não esteja submetida à lei e que essa submissão não se traduza na regra de conformidade; pois que (...) o poder discricionário, por um lado, só existe quando conferido por lei e, por outro, não, pode o órgão administrativo, ao exercê-lo, optar por qualquer comportamento não proibido. XI. Ao invés, a sua actuação só será legal se o comportamento escolhido, o acto praticado, for aquele que a lei o autoriza a praticar; e a lei é, em última instância, a Constituição da República Portuguesa, mormente as garantias de defesa consagradas no nº 1 do artº 32º. XII. E estas garantias de defesa consagradas no nº 1 do artº 32º englobam todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. XIII. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação
(normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas. XIV. Um dos pressupostos da garantia de defesa do processo criminal é, precisamente, o direito dos arguidos requererem a abertura de instrução, configurada esta pelo conjunto de actos que a terem lugar e dominados pela mesma ideia comum que caracteriza esta fase do processo penal: a comprovação da acusação em ordem à submissão ou não da causa a julgamento. XV. E, se com um acto decisório configurado como gozando de ‘total discricionariedade’ e dependente apenas da livre resolução do tribunal, sem possibilidade de ser sindicado em sede de recurso, se negar os actos de instrução requeridos pelo arguido, estaremos a deixar o caminho aberto para o livre arbítrio e, de forma directa e sem quaisquer rodeios, frustrar um dos direitos consagrados aos arguidos no âmbito do processo penal: o de efectuarem a comprovação da acusação em ordem à submissão ou não da causa a julgamento. XVI. O permitir-se, na instrução, que o arguido esgrima a sua defesa, apresente a sua versão dos factos que lhe são imputados e os possa refutar, carreando para os autos elementos de prova que ilidam aquela recolhida em fase de inquérito, é a consignação cabal das garantias de defesa consagradas no nº 1 do artº 32º, CRP. XVII Levar o princípio da investigação autónoma do juiz do caso submetido a instrução ao extremo da livre discricionariedade sobre os actos de instrução a praticar é, em concreto, atingir o conteúdo essencial das garantias de defesa consagradas no artº 32º, nº 1, da CRP. XVIII. Essa discricionariedade só deverá ocorrer - e, por certo, mais não quis o legislador, - nos casos em que, de forma fundamentada, seja manifesto que os actos de instrução requeridos assumam, manifestamente, um carácter dilatório e sejam de todo inúteis. XIX. A preterição dos actos de instrução requeridos e a configuração, tout court, da irrecorribilidade do despacho que sobre essa decisão incidiu redunda num grave atentado aos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagradas ao Arguido, mormente numa denegação da garantia da via judiciária, assegurada pelo nº 2 do artº 20º e nº 1 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa'.
De seu lado, o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste
órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa finalizou a sua alegação concluindo do seguinte jeito:-
'1º - O princípio constitucional das garantias de defesa do arguido não implica a plena recorribilidade de todos os actos praticados pelo juiz ao longo do processo penal, apenas se devendo considerar consagrada tal garantia quanto às decisões condenatórias e às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou outros direitos fundamentais.
2º - Não pode considerar-se como arbitrário ou totalmente discricionário o juízo prudencial realizado pelo juiz que preside à instrução acerca da necessidade de realizar diligências probatórias requeridas pelo arguido em tal fase do processo penal, adequando-as à função típica de tal fase processual – que visa um mero juízo indiciário sobre a responsabilidade imputada ao arguido pela acusação – e
às exigências de celeridade e eficácia do processo penal.
3º - Dessa forma, o artigo 291º, nº 1, do Código de Processo Penal, enquanto estabelece a irrecorribilidade do despacho do juiz que indefere os actos requeridos pelo arguido na instrução, que não interessam a esta ou que sirvam apenas para protelar o andamento do processo, não viola o principio das garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição) nem qualquer outro princípio ou preceito constitucional, não sendo, por isso, inconstitucional.inal recursos atinentes a uma fase do processo penal cuja típica funcionalidade'.
Cumpre decidir.
II
3. Sobre a questão de constitucionalidade ora em apreço já este Tribunal, por várias vezes, teve oportunidade de se pronunciar.
Fê-lo, verbi gratia, nos seus Acórdãos números 371/2000, 375/2000 e
459/2000, por ora inéditos.
3.1. Disse-se, inter alia, no primeiro dos citados arestos:-
'.......................................................................................................................................................................................................................................................................................
Especificamente acerca do confronto entre a norma então objecto de recurso com o artigo 20º, nº 1, da Constituição, bem como com o direito ao recurso e a um duplo grau de jurisdição, remeteu-se então para a doutrina do Acórdão nº 265/94 (Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1994), na parte se referira:
‘A Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies.
É certo que a Constituição garante a todos o «acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» (artigo 20º, nº 1) e, em matéria penal, afirma que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa» (artigo 32º, nº 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal.
A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
Sendo embora a faculdade de recorrer em processo penal uma tradução da expressão do direito de defesa (veja-se, nesse sentido, o Acórdão nº 8/87 do Tribunal Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., p.
235), a verdade é que como se escreveu no Acórdão nº 31/87 do mesmo tribunal,
«se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido»’. Sobre a questionada regra da irrecorribilidade, quando confrontada com o
«princípio da plenitude das garantias de defesa», recordou-se o afirmado no Acórdão nº 610/96 (Diário da República, II Série, de 6 de Julho de 1996), em que se escrevera:
‘[...] o que se questiona no presente recurso é se o desígnio de celeridade, que
é consagrado constitucionalmente, legitima a irrecorribilidade de certas decisões instrutórias: justamente os despachos de pronúncia que não alteram os factos constantes da acusação do Ministério Público. E a resposta a esta questão indica que a celeridade não só é compatível com as garantias de defesa, podendo coincidir com os fins de presunção de inocência, como é instrumental dos valores
últimos do processo penal – a descoberta da verdade e a justa decisão da causa
–, próprios de um Estado democrático de direito.
[...]
Apenas é irrecorrível, portanto, a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.
Ora, este regime especial não é arbitrário, encontrando fundamento na existência de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo Ministério Público, dominus do inquérito, e pelo juiz de instrução. E o Ministério Público é configurado constitucionalmente como uma magistratura autónoma (artigo 221º, nº 2, da Constituição), sendo concebido, no processo penal, como um sujeito isento e objectivo que pode, nomeadamente, determinar o arquivamento do inquérito em caso de dispensa da pena, propugnar, findo o julgamento, a absolvição do arguido e interpor recurso da decisão condenatória em exclusivo benefício do arguido [...].
Acrescentou-se, ainda:
A lei assegura, como lhe compete para dar cumprimento aos objectivos constitucionais, que o arguido tenha possibilidade de recorrer de uma decisão condenatória. Multiplicar as possibilidades de recurso ao longo do processo seria comprometer outro imperativo constitucional: o da celeridade na resolução dos processos-crime (artigo 32º, nº 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa). Ou seja, entre assegurar sempre o duplo grau de jurisdição, arrastando interminavelmente o processo, e permitir apenas o recurso das decisões condenatórias, permitindo uma melhor fluência do processo, o legislador optou decididamente pela segunda via.
Esta opção foi aliás confirmada pela revisão constitucional de 1997, que aditou ao nº 1 do artigo 32º o segmento ‘incluindo o recurso’. Como se escreveu no acórdão nº 101/98 (inédito) deste Tribunal, a intenção do legislador constituinte não foi ‘significar que haveria de ser consagrada, sob pena de inconstitucionalidade, a recorribilidade de todas as decisões jurisdicionais proferidas em processo criminal, mas sim que do elenco das garantias de defesa que tal processo há-de assegurar se contará a possibilidade de impugnação das decisões judiciais de conteúdo condenatório, na esteira do que já era entendido pela jurisprudência deste órgão de fiscalização’ (veja-se também, no mesmo sentido, o acórdão nº 299/98, inédito). O arguido pode sempre, pois, recorrer da decisão condenatória que lhe seja dirigida, e aí contestar todos os vícios que derivem de uma má apreciação de qualquer questão interlocutória.
E, assim, concluiu-se que «a irrecorribilidade da parte do despacho de pronúncia que decide questões prévias ou incidentais não é contrária à Constituição da República Portuguesa».
6. Pois bem: os argumentos então aduzidos, que mantêm inteira validade, são inteiramente transponíveis para a questão de constitucionalidade que agora nos ocupa, conduzindo igualmente a um juízo de não inconstitucionalidade da norma ora objecto de recurso
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3.2. Por outro lado, pode ler-se no Acórdão nº 375/2000:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................ A instrução não constitui uma fase de obrigatória verificação, antes é colocada na disponibilidade do arguido ou do assistente, com vista à ‘comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento’, conforme se prescreve no nº 1 do artigo
286º. É essa a sua vocação e (...) não constitui julgamento prévio da causa. Ao requerer a instrução, poderá o arguido indicar os actos que pretende sejam levados a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que através de uns e outros se espera provar, como resulta do nº 2 do artigo 287º, que mais acrescenta não poderem ser indicadas mais de 20 testemunhas. O momento culminante desta fase, ao qual se pré-ordenam as diligências a fazer, é o debate instrutório - cuja realização foi determinada no caso concreto - pois que com ele se visa ‘permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento’ (artigo 299º,nº 1). Com certeza que o arguido poderá em resultado desse debate obter satisfação da sua possível pretensão de não ser submetido a julgamento, mas do debate, quando dele não resulta a dispensa de julgamento, não pode derivar decisão condenatória nem o despacho de pronúncia tem efeito condenatório.
4. - Não se nega que os actos de instrução, requeridos pelo arguido, constituam uma garantia de defesa do mesmo, pois poderão condicionar a própria realização do julgamento. Acusado o agente do crime, a instrução surge como meio colocado ao seu dispor para infirmar a acusação que sobre ele impende, e assim, para, pelo menos em alguma medida que lhe venha a ser favorável, contribuir de forma imediata para o sentido do despacho de pronúncia ou, mais relevantemente para ele, de não pronúncia, que a final haverá de ser proferido pelo juiz. Mas mesmo neste plano, «a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação de existência das razões que indiciem a sua presumível condenação. O que a Constituição determina no nº 2 do artigo 32º é que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação’. (cfr. Acórdão nº 474/94, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., pag. 402, transcrevendo o Acórdão nº 31/87, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol.) As coisas são assim considerada a posição do arguido. Vistas as coisas na perspectiva da ordenação funcional do processo, se não for requerida a instrução
- uma vez que esta é facultativa (nº 2 do artigo 286º) - o processo é submetido ao juiz para o exclusivo efeito do artigo 311º do Código de Processo Penal. A instrução não elimina a necessidade de uma decisão do juiz, antes a difere no tempo para entretanto permitir inserir na marcha da tramitação elementos de contraditório sobre se se justifica a submissão do arguido a julgamento (cfr. artigo 298º). Nesta perspectiva, a instrução não perde a natureza de fase preparatória de um acto decisivo na estrutura do processo que aprecia os indícios de facto e os elementos de direito até então reunidos do ponto de vista da sua suficiência para neles se fundar um julgamento. É essa a sua destinação principal e é por isso que, embora seja facultativa, por depender da iniciativa das partes, uma vez decidida a sua abertura, também nela o próprio juiz poderá praticar ou ordenar oficiosamente actos que considerar úteis (nº 1 do artigo 291º, já transcrito, bem como artigo 299º).
5. - O intérprete inserido no espírito do sistema terá de concluir que a finalidade principal não deverá ser prejudicada por meios postos ao dispor do arguido que este, legitimamente, operará com vista a defender-se da acusação. A opção legislativa não merecerá porém censura se às garantias de defesa de que o arguido pode lançar mão, relacionadas com a contradita e demonstração da insubsistência da prova ou da inaplicabilidade das disposições incriminatórias, estiver assegurada efectivação no desenvolvimento do processo. Nomeadamente, é legítimo ao legislador reservar para a efectivação de certas garantias a instância ou fase processual que julgar adequada e entender que essa é a fase de julgamento. A razão é simples: só verdadeiramente nesta fase terminal é que o arguido se vê confrontado directamente com a eventualidade de contra ele ser decidida uma condenação. Assim sendo, os actos de instrução inserem-se em uma cadeia de momentos todos eles encaminhados para a decisão final, que, uma vez obtida, apaga a autonomia relativa de cada um dos actos e momentos antecedentes. Cada fase desempenha uma determinada função que aproveita, complementa, aperfeiçoa e corrige, quando necessário, o que anteriormente foi sendo carreado para o processo, e a decisão final acaba por consumir, no seu sentido último, que é a absolvição ou a condenação, todos os elementos que para ela relevaram. Precisamente porque assim
é, a fase do julgamento é aquela em que a defesa do arguido requer o mais elevado grau de garantias, para além do respectivo núcleo essencial e, nomeadamente, nos termos da jurisprudência do Tribunal, o ‘direito de recorrer da sentença condenatória e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afectem outros direitos fundamentais seus’ (cfr. Acórdão nº 474/94, citado, ibidem, pág. 400). No caso, a norma em apreciação não incorre em vício por violação do artigo 32º da Constituição, nem nela se encontra uma restrição do conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido, situadas, atendendo ao perfil do caso concreto e ao que vem alegado, no asseguramento do princípio do contraditório (nº 5 do artigo 32º). Essas garantias de conteúdo imediatamente processual, impõe-se que sejam perspectivadas na unidade funcional do processo, e não necessariamente em cada fase separada daquela ou daquelas que se lhe poderão seguir. Na procura de uma solução em que à partida surge afastada a conversão da instrução em antecipação de julgamento, o legislador ponderou em termos adequados a utilização de meios de defesa pelo arguido, não procedendo sequer a uma sua restrição em sentido próprio, antes, limitando-os no quid plus que os mesmos constituem, se se tiver presente qual a vocação própria da instrução.
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............................o indeferimento da inquirição de testemunhas não foi, como também não é no plano da lei adjectiva, óbice à determinação da marcação de debate instrutório, que não se pode entender que se torna inútil apenas por ter sido rejeitada a audição de testemunhas. Não sendo antecipação do julgamento, será incongruente transpor para ele, na íntegra, o regime aplicável
à produção da prova na fase final. E não será legítimo desvalorizar o debate, por definição de estrutura contraditória, como meio de defesa por si só, realizado como é sob a direcção (artigo 301º do Código) e na presença do juiz, com a presença e participação das partes, as quais, no seu decurso, poderão inclusivamente requerer ‘a produção de provas indiciárias suplementares que se proponham apresentar, durante o debate, sobre questões concretas controversas’
(nº 2 do artigo 202º). Aí se dá tradução à exigência contida no nº 5 do artigo
32º da Constituição. Acresce que o legislador condiciona a aplicação da norma constante do artigo
291º, nº 1, do Código, sempre exigindo ao juiz a verificação de que os actos requeridos não interessam à instrução ou servem apenas para protelar o andamento do processo. Por outro lado, admite a reconsideração da decisão tomada, por via de reclamação a apresentar pelo requerente. Na opção legislativa a ponderação realizada pelo legislador entre a posição do arguido e a exigência de consideração do processo como unidade funcional por si só pode justificar a solução encontrada. Nesta perspectiva, esta solução situa-se na mesma linha da irrecorribilidade do despacho de pronúncia que acolhe os termos da acusação do Ministério Público. Por outro lado, é aqui relevante o princípio constitucional da celeridade do processo (artigo 20º, nº 4, da Constituição), o qual exige que se evite que o andamento do processo seja protelado «por constantes envios do processo à segunda instância para apreciação de decisões interlocutórias» (Ac. cit., ibidem, pag. 401). A Constituição, relativamente à instrução, institui uma garantia em sentido próprio, visando dar ao arguido, em conformidade com a estrutura acusatória do processo, a possibilidade de infirmar a prova com base na qual poderá ser acusado, em concreto, estabelecendo que os actos instrutórios que a lei determinar estarão subordinados ao princípio do contraditório (artigo 32º, nº
5). Tal comando constitucional não chegou a ser posto em crise pelo direito aplicado na decisão sob recurso. Das considerações que antecedem, centradas nos aspectos nucleares da problemática suscitada, resultam elementos que permitem concluir, sem necessidade de aprofundamentos significativos, pela improcedência da arguição de vícios por violação de outras normas da Constituição. Com efeito, não ocorre violação dos artigo 20º, nº 1, 209º, nº 1, alínea a), e
210º, nº 1, da Constituição. Em termos gerais, o direito de acesso aos tribunais está, no caso, garantido pelo direito ao recurso da decisão final na qual se poderão projectar insuficiências de elementos de prova, que constituirão fundamentos de recurso dessa decisão. Da Constituição não se retira a plena recorribilidade de todos os actos praticados pelo juiz ao longo do processo penal ainda que sejam susceptíveis de afectar o arguido. A jurisprudência do Tribunal apenas reconhece a aplicabilidade do princípio de recorribilidade às decisões condenatórias e
àquelas que impliquem privação ou restrições da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido. Por isso, o Tribunal não julgou inconstitucionais normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido impugnar determinados despachos interlocutórios do juiz, que se limitam a fazer prosseguir o processo (v. Acórdão nº 353/91, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., entre outros) e, como refere o Ministério Público, também não julgou inconstitucional a norma do artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal, que considera insusceptível de recurso a decisão instrutória que haja pronunciado o arguido pelos factos constantes da acusação pública (v. Acórdão nº 266/98, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1998).
Assim, não consentindo a lei que o despacho, que em sede de instrução indefere a realização de diligências requeridas, seja arbitrário ou discricionário, devendo antes ser fundamentado num juízo que tenta obviar à utilização de expedientes dilatórios através da prática de acto sem interesse para a instrução e para a descoberta da verdade material, não é inconstitucional a norma que prevê a irrecorribilidade de tal despacho, pois as garantias de defesa do arguido não impõem, como se referiu, a recorribilidade de todas as decisões do juiz mas tão somente das decisões condenatórias e das respeitantes à privação da liberdade e outros direitos fundamentais.
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Releva também transcrever aqui o que, em dados passos, se escreveu no Acórdão nº 459/2000, subscrito pelos mesmos Juízes que intervêm no vertente aresto:-
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Obrigatório e importante na dita fase da instrução é o debate instrutório, oral e contraditório, que visa permitir uma discussão perante o juiz ‘sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento’ (artigos 289º, nº 1, e 298º), sendo ele regulado com a minúcia nos artigos 297º a 305º (culminando, após o seu encerramento, com o despacho de pronúncia ou não pronúncia – artigo 307º, o que não se sabe se teve já lugar no presente caso e com que resultado).
Quer a instrução requerida pelo arguido e reduzida a auto, ‘ao qual são juntos os requerimentos apresentados pela acusação e pela defesa nesta fase, bem como quaisquer documentos relevantes para apreciação da causa’ (artigo
296º), quer o debate instrutório obrigatoriamente realizado, não são o julgamento da causa, são antes uma antecâmara do julgamento, se for o caso de ele ter de se efectuar, havendo ‘indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento’. Aliás, o arguido pode mesmo obter a satisfação do seu interesse em não ser submetido a julgamento, se se chegar a um despacho de não pronúncia, após o encerramento do debate instrutório (e também não se sabe se tal resultado foi aqui alcançado).
6. É inquestionável que os actos de instrução requeridos pelo arguido, na medida em que se podem reflectir na sequência processual instrução-julgamento, conduzindo até, na melhor das hipóteses, a um despacho de não pronúncia, são momentos relevantes para garantir a defesa do arguido. Havendo acusação deduzida contra ele, os actos de instrução podem infirmar a acusação ou enfraquecê-la, de modo a que o arguido venha a confiar na prolação de um despacho de não pronúncia ou então na futura absolvição na fase de julgamento, se vier a ser, mesmo assim, pronunciado.
Nesta óptica, o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de dizer, no acórdão nº 474/94, nos Acórdãos, vol. 28, pág. 402 que a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação de existência de razões que indiciem a sua presumível condenação. O que a Constituição determina no nº 2 do artigo 32º é que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, pelo que o simples facto de se ser submetido a julgamento não pode constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado ao bom nome e reputação’ (cfr. ainda o acórdão nº 54/2000, inédito)
Só que, face àquele desenho do ritualismo processual criminal, a opção legislativa da natureza irrecorrível do despacho previsto na norma questionada do nº 1 do artigo 291º não pode nunca brigar com as garantias de defesa de que o arguido pode lançar mão, relacionadas com a contradita e demonstração da insubsistência da prova ou da inaplicabilidade das disposições incriminatórias.
Com efeito, a instrução, quando requerida, nos termos expostos, não deixa de ser uma fase preparatória na estrutura do processo, podendo nela o juiz praticar ou ordenar oficiosamente actos que considere úteis (o mesmo nº 1 do artigo 291º). A instrução é, assim, uma fase processual que não visa propriamente um complemento [do inquérito], antes visa a comprovação pelo juiz do acto acusatório, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Integra, além dos actos que o juiz considera úteis e pertinentes, uma fase obrigatória - o debate instrutório - com a finalidade especifica de apurar se, do decurso do inquérito e da instrução ‘resultam indícios de acto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido ao julgamento’ (artigo 298º).
Esse debate está pensado pelo legislador em termos de permitir, sob o signo dos princípios dispositivo e do contraditório, e também inquisitório, uma ampla produção de prova, com a prática de todos os actos de instrução - e até novos actos de instrução - que permitam apurar os tais indícios de facto e elementos de direito, estando sempre presente o ‘interesse para a descoberta da verdade’ (nº 1 do artigo 299º). E não resulta do Código a proibição de se realizarem, no decurso do debate, os actos de instrução que foram requeridos na fase facultativa e o juiz indeferiu por despacho.
Sendo isto assim, e porque, no rigor das coisas, é a fase do julgamento aquela em que a defesa do arguido implica maiores garantias, incluindo o ‘direito de recorrer da sentença condenatória e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afectem outros direitos fundamentais seus’ (citado acórdão nº 474/94, pág. 400) – e a sua plena operatividade, já que é aí que o arguido se vê confrontado directamente com a eventualidade de uma condenação -, tem de concluir-se que a norma questionada, eliminando a via de recurso, não incorre na violação dos artigos 20º, 29º e 32º da Constituição (manifestada, segundo o recorrente, ‘na impossibilidade de o recorrente requerer diligência probatória relevante para a causa'). Pois que, verdadeiramente, essa impossibilidade não chega a manifestar-se, na medida em que na fase do debate instrutório pode efectivar-se essa mesma diligência probatória (e nem sequer há nos autos elementos para constatar se isso se verificou ou não).
Além de que a Constituição não consagra um princípio de plena recorribilidade de todos os actos praticados pelo juiz ao longo do processo criminal, ‘apenas se devendo considerar consagrada tal garantia quanto às decisões condenatórias e às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou outros direitos fundamentais’ (para usar a linguagem do Ministério Público).
E compreende-se, aliás, face ao que acaba de se expor, que a Constituição não exija a reapreciação, por via de um recurso, da decisão do juiz sobre os actos de instrução que considerou inúteis ou impertinentes.
Por isso, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucionais normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido impugnar certos despachos interlocutórios do juiz, que se limitam a fazer prosseguir o processo (cfr., entre outros, o acórdão nº 353/91, nos Acórdãos, vol. 19º) e também não julgou inconstitucional a norma do artigo 310º, nº 1, do citado Código, sobre a decisão instrutória que ‘pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público’ (cfr. acórdão nº 266/98, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1998).
7. Também não se vê onde possa estar a invocada violação dos artigos
205º, nº 2, e 208º, nº 1, da Constituição, na versão anterior à última revisão constitucional de 1997, e traduzida no essencial, segundo o recorrente, ‘na atribuição ao juiz de um poder discricionário, escapando à exigência de fundamentação, pois não assume tal configuração o despacho previsto no artigo
291º, nº 1, desde logo porque não é um acto equiparável a um despacho de mero expediente, este sim, de livre e total discricionariedade, como se prevê no artigo 400º, nº 1, b), do Código de Processo Penal (cfr. os artigos 156º, nº 4, e 679º, do Código de Processo Civil, aquele contendo a definição).
Depois porque o poder-dever conferido ao juiz para proferir o indeferimento está balizado pelo limite do ‘apuramento da verdade’ e pela consideração de ‘os actos requeridos não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo’.
Não é só um ‘prudente arbítrio do julgador’, de que fala o citado nº
4 do artigo 156º, mas ainda e essencialmente, como regista o Ministério Público,
‘nos termos e dentro dos limites da lei, de um juízo prudencial, traduzido na densificação e concretização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, em harmonia com o fim e a função do processo (nomeadamente, a tutela dos valores da celeridade e da realização da verdade e da justiça materiais)’, sendo que o juiz, com a liberdade própria para aceitar ou rejeitar diligências probatórias, tem de indicar minimamente os motivos da decisão, como se constata no presente caso.
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4. No caso em apreciação, não se vislumbra que seja necessário acrescentar o que quer que seja à corte argumentativa utilizada nos acórdãos acima citados, vincando- -se unicamente que, destinando-se a instrução à comprovação judicial do juízo indiciário que serviu de base à dedução da acusação, constitui ela mesma já um meio garantístico do arguido. Ora, pretender-se que, para além dessa garantia, uma outra deveria existir, e que seria, justamente, a da recorribilidade dos despachos que indeferem a realização de diligências instrutórias requeridas (e não se olvide que o indeferimento só poderá ter lugar se esses actos não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo, razão pela qual se não poderá falar numa discricionariedade que conduza o juiz de instrução a, ad libitum, proferir despachos de indeferimento), isso equivaleria a defender que a «essencialidade» do nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental seria sempre atingida desde que, sobre uma garantia, não estivesse previsto o funcionamento de uma outra.
E que não é, de certo, esse o escopo da Constituição, é algo que este Tribunal tem por líquido.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se os recorrentes nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 14 de Fevereiro de 2001 Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto aposta ao Acórdão nº 459/2000) José Manuel Cardoso da Costa