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Proc. nº 108/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. No Tribunal de Círculo de Anadia, responderam, sob acusação do Ministério Público, os arguidos A..., J..., JS... e F..., S.A., tendo sido condenados, por acórdão de 17 de Fevereiro de 1998:
– os três primeiros arguidos, como co-autores de um crime de desvio de subsídio, previsto e punível pelo artigo 37º, nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº
28/84, de 20 de Janeiro, na pena de um ano de prisão e quarenta e cinco dias de multa (à taxa diária de cinco mil escudos), ficando a execução da pena de prisão suspensa por dois anos com a condição de em trinta dias demonstrarem ter liquidado as quantias que foram condenados a entregar às entidades de que receberam os financiamentos (5.799.719$00, ao Fundo Social Europeu, e
4.745.224$00, à Segurança Social);
– a arguida F..., pela prática de um crime de desvio de subsídio, previsto e punível pelo artigo 37º, nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, com referência ao artigo 3º do mesmo diploma, na pena de quarenta e cinco dias de multa (à taxa diária de vinte e cinco mil escudos).
Todos os arguidos interpuseram recurso desta decisão.
2. O Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, tendo apresentado como conclusões das alegações, 'um extensíssimo texto com 63 números, que se estendem por 22 folhas, o que ainda é agravado pela remissão que é feita para outras peças do processo', 'os recorrentes não foram capazes de resumir as razões do seu pedido, apresentando para o efeito um texto a que melhor caberia a designação de verdadeira motivação'. Observando que tal circunstância implica falta de conclusões e que a falta de conclusões equivale à falta de motivação, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso, invocando os artigos 412º, nº 1, e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal (acórdão de 24 de Setembro de 1998, fls. 1295 a 1320v.).
Os arguidos requereram a aclaração e a reforma deste acórdão, mas o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o pedido (acórdão de 26 de Novembro de
1998, fls. 1328 a 1331v.).
3. A..., J..., JS... e F..., S.A. vieram então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça – para apreciação da constitucionalidade da interpretação dada aos artigos 412º e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal e ao artigo 690º do Código de Processo Civil – e da decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância – para apreciação da constitucionalidade da interpretação dada aos artigos 2º, nº 4, 70º a 73º do Código Penal de 1995, artigo 37º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, artigo 6º do Regulamento CEE nº 2950/83 do Conselho, de 17 de Outubro de 1983, nº 12 do Despacho de 26/9/85 do Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional, nº 20 do Despacho de 13/5/86 do Ministro do Trabalho e Segurança Social, artigos 16º e 28º do Despacho Normativo nº 40/88, artigo 19º do Despacho Normativo nº 94/89, de 13 de Outubro, artigo 9º, nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº
242/88, de 7 de Julho.
O Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, admitiu o recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça exarado de fls.
1295 a 1320v. (o acórdão que rejeitou o recurso dos recorrentes), mas não admitiu o recurso interposto do acórdão da 1ª instância, por este ser passível de recurso ordinário, que foi efectivamente interposto.
4. No Tribunal Constitucional, os recorrentes concluíram assim as suas alegações:
'1 – O recurso interposto pelos ora recorrentes para o S.T.J. foi rejeitado com fundamento no facto de, não obstante estes terem apresentado 'Conclusões' conjuntamente com a sua Motivação de recurso, estas não deverem ser como tal consideradas por não serem 'capazes de resumir as razões do seu pedido';
2 – O Tribunal 'a quo' faz aplicação ao Processo Penal de norma do Processo Civil, ofensiva e limitativa dos direitos de defesa dos arguidos, constitucionalmente consagrados, designadamente o direito de recorrer das decisões que lhe forem desfavoráveis;
3 – O Tribunal 'a quo' efectua errada aplicação das normas dos arts. 412º e 420º do C.P.P., porquanto se socorre da aplicação supletiva de normas de Processo Civil que limitam os direitos de defesa dos arguidos;
4 – Ainda que assim não se entenda, e, ao invés, se perfilhar que seria legítima aquela aplicação das normas do Processo Civil ('ex vi' art. 4º do C.P.P.) sempre se dirá que continua a ser materialmente inconstitucional a aplicação
'desgarrada' da norma do art. 690º, nº 1, desacompanhada do dever constante do número 4 do mesmo artigo – face à falta, deficiência ou obscuridade das conclusões, deveria o Tribunal 'a quo' ter convidado os recorrentes a apresentá-las ou corrigi-las, em vez de ter, tão simplisticamente, considerado as Conclusões não existentes (existindo elas de facto) e como tal rejeitando o recurso com esse fundamento;
5 – Os direitos de defesa dos arguidos encontram-se 'protegidos' pelo princípio da legalidade, isto é: os direitos de defesa só podem ser limitados ou restringidos por lei vigente à data da prática dos factos, pelo que qualquer interpretação, das normas aplicáveis, que restrinja tais direitos de defesa dos arguidos, nomeadamente a quantificação, ou metragem, das conclusões, não constante de qualquer disposição legal – em parte alguma da lei de processo penal (ou até, de processo civil) se estabelece qual a dimensão, ou quantidade, máxima das conclusões – constitui frontal ofensa aos direitos de defesa dos arguidos e flagrante ofensa do princípio da legalidade, sendo, portanto, materialmente inconstitucional.
6 – Tendo as normas dos arts. 412º e 420º, nº 1 do C.P.P. e 690º do C.P.C., este aplicável 'ex vi' art. 4º do C.P.P., sido interpretadas e aplicadas de forma a terem violado as disposições dos arts. 18º e 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, as disposições do art. 8º, 10º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e as disposições do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, as quais vigoram na ordem jurídica interna nos termos do disposto nos arts. 8º e 16º da C.R.P., encontra-se a interpretação daquelas normas feridas de inconstitucionalidade material. Nestes termos, e com o douto suprimento de V. Exªs. (nos termos do disposto no art. 79º-C da L.O.F.P.T.C.), devem tais normas ser julgadas inconstitucionais quando interpretadas e aplicadas em termos de ser permitida a rejeição do recurso devido ao tamanho, extensão ou deficiência das Conclusões de recurso, sem que lhes seja dada a oportunidade de as corrigir e/ou esclarecer, sendo, desse modo, significativa e gravemente restringidos e limitados os direitos de defesa dos arguidos, como é, aliás, de JUSTIÇA.'
Por sua vez, o Ministério Público concluiu:
'1º É inconstitucional, por violação do princípio das garantias de defesa do arguido, a interpretação das normas constantes dos artigos 412º, nº 1, e 420º do Código de Processo Penal, traduzida em considerar que a falta de concisão das conclusões da motivação do recorrente deve conduzir à liminar rejeição do recurso, sem facultar ao arguido a possibilidade de suprir o vício que o tribunal entende inquinar tal peça processual.
2º Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
II
5. Através do presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, os recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade das normas dos artigos 412º e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal e do artigo 690º do Código de Processo Civil, na interpretação que lhes foi dada no acórdão recorrido.
São pressupostos do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional:
· que os recorrentes tenham suscitado, durante o processo, a inconstitu-cionalidade das normas que pretendem que este Tribunal aprecie;
· que tais normas tenham sido aplicadas no julgamento da causa, como ratio decidendi, não obstante essa acusação de inconstitucionalidade.
Ora, como bem sublinha nas suas alegações o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, a norma do artigo 690º do Código de Processo Civil não foi aplicada na decisão recorrida – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Setembro de 1998, exarado de fls. 1295 a
1320v., que rejeitou o recurso dos recorrentes.
Tal norma é invocada pelo Supremo Tribunal de Justiça tão somente para ilustrar a afirmação segundo a qual as conclusões das alegações de recurso devem ser formuladas de modo sintético. Diz-se a esse propósito no acórdão:
'O carácter sintético das conclusões é hoje claramente salientado pelo nº 1 do artº 690º do Cód. Proc. Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro.'
Todavia, a decisão de rejeição do recurso fundamentou-se exclusivamente nas normas dos artigos 412º, nº 1, e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal. Consequentemente só essas normas constituem objecto do presente recurso, pois apenas quanto a elas podem dar-se como verificados os pressupostos exigidos pela alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
6. É o seguinte o teor das normas impugnadas (no texto anterior ao que resulta da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, tal como aplicado na decisão sob recurso):
'Artigo 412º
(Motivação do recurso)
1. A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
[...]'
'Artigo 420º
(Rejeição do recurso)
1. O recurso é rejeitado sempre que faltar a motivação ou for manifesta a improcedência daquele.
[...]'
Os recorrentes entendem que estas normas, interpretadas no sentido de que o carácter prolixo das conclusões das alegações de recurso conduz à rejeição imediata do recurso, são inconstitucionais, por violação dos artigos
18º e 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 8º, 10º e
11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
7. O Tribunal Constitucional teve já ocasião de se pronunciar sobre a questão de constitucionalidade que vem suscitada nos presentes autos: a questão de saber se o sentido atribuído no acórdão recorrido aos artigos 412º, nº 1, e
420º, nº 1, do Código de Processo Penal é compatível com a garantia constitucional de que o processo penal assegura 'todas as garantias de defesa', consagrada no artigo 32º, nº 1, da Constituição.
Nos acórdãos nº 193/97 (inédito) e nº 43/99 (Diário da República, II, nº 72, de 26 de Março de 1999, p. 4494 ss), o Tribunal concluiu que as normas constantes dos artigos 412º, nº 1, e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal são inconstitucionais quando interpretadas no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a rejeição liminar do recurso penal sem que ao recorrente seja previamente dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de concisão.
O Tribunal entendeu que a exigência de apresentação sintética das conclusões das alegações de recurso, representando embora um valor relacionado com a necessidade de estruturação lógica do procedimento na fase de recurso, não pode constituir um entrave burocrático à realização da justiça. Na verdade, o nº 1 do artigo 32º da Constituição, ao assegurar todas as garantias de defesa, garante os mecanismos que possibilitem o exercício efectivo do direito de defesa em processo criminal, incluindo o direito ao recurso (duplo grau de jurisdição), no caso de sentenças condenatórias. Uma interpretação normativa dos preceitos respeitantes à motivação do recurso em processo penal e às respectivas conclusões (artigos 412º e 420º do Código de Processo Penal) que faça derivar da prolixidade ou da falta de concisão das conclusões um efeito cominatório, irremediavelmente preclusivo do recurso, sem dar ao recorrente a oportunidade de suprir a deficiência detectada, constitui uma limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal, restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça.
Não pode obstar a esta conclusão o princípio da celeridade processual, conatural ao processo penal. A necessidade de proceder a uma compatibilização entre os dois princípios em presença – os princípios da celeridade e da plenitude das garantias de defesa –, dando cumprimento ao artigo
18º, nº 2, da Constituição, exige que, perante conclusões de recurso tidas por não concisas, se dê ao recorrente a possibilidade de aperfeiçoar tais conclusões
(à semelhança aliás do que hoje dispõe o artigo 690º, nº 4, do Código de Processo Civil).
Assim sendo, uma interpretação das normas impugnadas que leve à imediata rejeição do recurso, por se entender que a prolixidade ou falta de concisão das conclusões equivale à falta de conclusões e por se entender que a celeridade processual impede a notificação do recorrente para aperfeiçoar a deficiência das conclusões, afecta desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa, na vertente do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que é inconstitucional.
É essa jurisprudência que aqui se reafirma, remetendo para os fundamentos, mais amplos, constantes dos acórdãos nºs 193/97 e 43/99. III
8. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a) julgar inconstitucionais, por violação do artigo 32º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 412º, nº1, e 420º, nº1, do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a rejeição liminar do recurso penal, sem que ao recorrente seja previamente dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de concisão; b) conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 29 de Junho de 1999 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida