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Processo n.º 576/12
Plenário
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
Relatório
O Representante da República para a Região Autónoma da Madeira requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos dos n.ºs 2 e 3, do artigo 278.º, da Constituição da República Portuguesa (Constituição), e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação da conformidade com a Constituição das normas constantes dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 7.º, n.ºs 1 e 2, 10.º e 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto que «aprova normas para a proteção dos cidadãos e medidas para a redução da oferta de “drogas legais”», aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em sessão plenária de 31 de julho de 2012.
O pedido de fiscalização de constitucionalidade apresenta a seguinte fundamentação:
[…]
III – Fundamentação
17.º
O artigo 1.º do decreto sob apreciação institui a proibição de venda ou disponibilização por qualquer forma, de substâncias psicoativas, não especificamente controladas ao abrigo de legislação própria.
18.º
Por sua vez, o artigo 2.º determina que estão abrangidas todas as substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer estado físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela contendo substância, com ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central, sem indicação especifica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias.
19.º
O artigo 3.º sujeita a uma contraordenação quem anunciar ou publicitar, vender ou ceder, por qualquer forma, substâncias psicoativas consideradas no presente diploma, sendo determinadas e aplicadas coimas nos termos dos artigos 8.º, 9.º e 10.º.
20.º
Nos termos do artigo 7.º, é proibida toda a atividade comercial associada à produção e comercialização das substâncias consideradas no diploma (n.º1), devendo a Inspeção Regional das Atividades Económicas (IRAE) intervir de imediato e proceder ao encerramento de todos os espaços onde sejam disponibilizadas estas substâncias (n.º 2).
21.º
Conjugando estas últimas disposições com o disposto no artigo 10.º, a atividade comercial associada à produção e comercialização das substâncias consideradas no diploma constitui também uma contraordenação punível com uma coima.
22.º
As disposições invocadas visam “implementar na Região um regime contraordenacional de proibição genérica de qualquer substância psicoativa, que não possua regime próprio, sem prejuízo do quadro penal adequado que venha a ser aprovado na Assembleia da República”, como, aliás, resulta do preâmbulo do decreto em causa.
23.º
O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual, contém o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, conferindo à matéria uma natureza penal.
24.º
Esclarece o preâmbulo do diploma regional em apreciação que “a dimensão do problema para a saúde, subjacente à proliferação destes consumos, constitui fundamento bastante para que seja tomada uma opção legislativa diferente.”
25.º
Não se ignora que o direito e o dever de proteção da saúde têm consagração constitucional, sendo qualificados pela Constituição como direitos e deveres fundamentais. Na verdade, a Constituição da República Portuguesa reconhece no artigo 64.º o direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover, dispondo, pelo seu n.º 1, que “Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover”. O direito à proteção da saúde é realizado, segundo a alínea b) do n.º 2 do artigo 64.º da lei fundamental, designadamente, “(…) pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável”, dispondo o n.º 3 do mesmo preceito constitucional que, para assegurar o direito à proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado ”estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência” (alínea f)).
26.º
No âmbito dos “Direitos e deveres económicos”, a Constituição estabelece ainda, pelo n.º 1 do artigo 60.º, o direito dos consumidores à “proteção da saúde”, dispondo no n.º 2 que “A publicidade é disciplinada por lei, sendo proibidas todas as formas de publicidade oculta, indireta ou dolosa”.
27.º
Na caracterização jurídico-constitucional do direito à proteção da saúde, a doutrina e a jurisprudência constitucionais reconhecem que este direito fundamental não apresenta sempre a mesma natureza, podendo nele avultar a veste de direito, liberdade e garantia ou, em outros casos, de direito económico ou social.
28.º
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, pág. 825, em anotação ao artigo 64.º, sustentam que “Tal como muitos outros “direitos económicos, sociais e culturais”, também o direito à proteção da saúde comporta duas vertentes: uma, de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de qualquer ato que prejudique a saúde; outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas.”
29.º
Noutra perspetiva, Carla Amado Gomes, Defesa da saúde pública vs. Liberdade individual, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1999, págs. 9 e segs: escreveu: “Daí que se possa dizer (…) que, no quadro do Estado Social, a intervenção pública das autoridades administrativas de saúde se desdobra em duas facetas: por um lado regulamentando, interditando, autorizando, impondo, enfim, determinadas formas de atuação aos particulares, quando se movam em áreas relacionadas com a saúde pública; por outro lado, assumindo o encargo de assegurar todo um conjunto de prestações de caráter material (e não só) (…). É contudo, na Lei Fundamental de 1976 que surgem bem patentes as duas vertentes do bem saúde, no artigo 64.º. Por um lado, a faceta de direito subjetivo à saúde – “todos têm direito à proteção da saúde” -, a par de um dever fundamental de a defender e promover (n.º 1); por outro lado, a dimensão objetivo-programática, que se traduz na imposição de tarefas ao Estado, de criação e manutenção de uma estrutura de prestação de cuidados de saúde à coletividade (o Serviço Nacional de Saúde – n.ºs 2 e 3) (…). Esta tarefa fundamental do Estado (…) bem como assim a dimensão subjetiva do direito à saúde, correspondem à explicitação de uma perspetiva predominantemente positiva, de promoção do bem saúde. No entanto, o direito à saúde comporta uma vertente negativa, “que consiste no direito a exigir do Estado (e de terceiros) que se abstenham de qualquer ato que prejudique a saúde”. (…) Há, assim, uma bifacetação do Estado – e da Administração (..) – no domínio da saúde. À friendliness do Estado que cria e mantém uma estrutura administrativa de prestação de cuidados de saúde tendencialmente gratuita, junta-se uma roughness (do outro lado) da Administração que tem por missão prevenir e debelar situações de risco sanitário, se necessário com o sacrifício de direitos dos cidadãos”.
30.º
Também Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora 2005, pág. 661, em anotação ao artigo 64.º, admitem que “A consagração constitucional do dever fundamental de defender e promover a saúde configura-se como norma habilitadora da introdução de normas proibitivas ou de obrigações legais em vista à defesa da saúde pública. Sem dúvida que o referido dever fundamental deve ser conjugado com outros direitos fundamentais, não se podendo obliterar, na sua concretização legislativa, os limites constitucionais às restrições de direitos, liberdades e garantias”
31.º
Admitindo-se legítima a preocupação expressa pelo legislador regional, sobretudo em face dos direitos e interesses em presença, avultando o direito à saúde, nas suas múltiplas dimensões, as questões suscitadas pelas normas em apreciação prendem-se, prima facie, com a eventual natureza penal das matérias nelas tratadas.
32.º
Como vimos, o enquadramento normativo, nacional, internacional e europeu, da “venda ou disponibilização por qualquer forma de substâncias psicoativas” aponta para a tutela penal dos bens e direitos afetados pelo acesso e consumo dessas substâncias.
33.º
Ora, a definição dos ilícitos de mera ordenação social operada pelas normas do decreto regional agora submetido à apreciação do Tribunal Constitucional é feita a partir da consideração da incompletude (logo, ineficácia) das listagens das substâncias psicotrópicas proibidas ou condicionadas na legislação nacional, dada a proliferação de substâncias com efeitos semelhantes aos das substâncias proibidas, com “ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central” (como se lê no artigo 2.º), proibindo-se, por isso, “a venda ou disponibilização de substâncias psicoativas não especificamente controladas ao abrigo de legislação própria” (artigo 1.º).
34.º
A opção pelo regime de ilícito de mera ordenação social fica ainda esbatida quando a mesma Assembleia Legislativa aprovou, alguns dias antes (em 17 de julho pp.), uma Resolução - a Resolução n.º 32/2012/M, de 1 de agosto - que consubstancia uma proposta de lei à Assembleia da República com o seguinte teor:
“Artigo 1º
Objeto
O regime previsto pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que definiu o regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes e psicotrópicos, com as alterações posteriormente concretizadas, é aplicável a todas as outras substâncias psicoativas que não sejam controladas por legislação própria e que não estejam contempladas nas tabelas de substâncias proibidas, não obstante produzirem os mesmos efeitos.
Artigo 2º
Âmbito
O presente diploma entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.”
35.º
A esta luz, poder-se-ia equacionar que o legislador optasse por um regime penal ou por um regime contraordenacional para estas condutas.
36.º
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão suscitada, recordando-se aqui, um trecho do Acórdão n.º 336/2008, publicado no Diário da República, 2ª série, n.º 138, de 18 de julho de 2008:
“… existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contraordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 144-152, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).
A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.
É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das contraordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.” (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 146).
Da autonomia do ilícito de mera ordenação social resulta uma autonomia dogmática do direito das contraordenações, que se manifesta em matérias como a culpa, a sanção e o próprio concurso de infrações (vide, neste sentido, Figueiredo Dias na ob. cit., pág. 150).
Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (FIGUEIREDO DIAS em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in “Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, I, pág. 331, da ed. de 1983, do Centro de Estudos Judiciários).
E por isso, se o direito das contraordenações não deixa de ser um direito sancionatório de caráter punitivo, a verdade é que a sua sanção típica “se diferencia, na sua essência e nas suas finalidades, da pena criminal, mesmo da pena de multa criminal (…) A coima não se liga, ao contrário da pena criminal, à personalidade do agente e à sua atitude interna (consequência da diferente natureza e da diferente função da culpa na responsabilidade pela contraordenação), antes serve como mera admoestação, como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas; e o que esta circunstância representa em termos de medida concreta da sanção é da mais evidente importância. Deste ponto de vista se pode afirmar que as finalidades da coima são em larga medida estranhas a sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização.” (FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 150-151, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).”
37.º
A distinção entre os ilícitos penais e os ilícitos de mera ordenação social pode ainda ser relevante na perspetiva das garantias associadas ao processo penal. Nessa linha tem o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem aplicado o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que estabelece o direito a um processo equitativo, a infrações classificadas no direito interno de cada Estado como administrativas ou disciplinares, como ilustrado, a partir do Acórdão Öztürk. Tem sido entendido que se os Estados pudessem, à sua vontade, qualificar uma infração de «administrativa» em vez de «penal», afastando as garantias fundamentais dos artigos 6.º e 7.º da Convenção, a aplicação destas normas ficaria subordinada à sua vontade soberana. Ora uma tão ampla latitude poderia conduzir a resultados incompatíveis com o objeto e fim da Convenção.
38.º
No ensaio do reconhecimento da natureza de uma sanção como penal, o mesmo Tribunal Europeu utilizou três critérios:
- A qualificação dada pelo direito interno do Estado em causa, a examinar à luz de um denominador comum às legislações dos vários Estados contratantes;
- A própria natureza da infração;
- O grau de severidade ou gravidade da sanção, tendo como referência o máximo da pena aplicável;
39.º
A relação dialética estabelecida entre o regime que foi aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira e o regime que vigora ao nível nacional, previsto no sempre citado Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, manifestamente ignora a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social, ao fazer-se aplicar um regime sancionatório administrativo a situações similares às sancionadas com uma pena criminal.
40.º
Isto, na medida em que o diploma regional se dirige à proibição de venda e disponibilização de substâncias não tipificadas como substâncias psicotrópicas ou estupefacientes, mas que, a reconhecer-se a produção dos mesmos efeitos nefastos para a saúde dos seus consumidores, poderão vir a ser integradas no tipo penal aplicável, através do aditamento das substâncias em causa às listagens constantes das Convenções internacionais já citadas e à própria legislação nacional.
41.º
Aliás, a própria Assembleia Legislativa, por via do exercício da sua iniciativa legislativa junto da Assembleia da República nos termos atrás referidos, reconhece natureza penal às condutas em causa. Nem podia ser de outro modo pois existe aqui – como é natural num ilícito criminal – uma censura ética dirigida à personalidade do agente.
42.º
Não pode, por conseguinte, aceitar-se que, assumindo a Assembleia Legislativa, numa Resolução, a dimensão penal da matéria em causa, procure degradar a mesma numa pretensa ótica contraordenacional face à incompetência legislativa para a primeira perspetiva.
43.º
Por isso, as normas contidas nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 7.º e 10.º do diploma sob sindicância poderão estar feridas do vício de inconstitucionalidade orgânica, já que versam sobre matéria da reserva de competência legislativa do parlamento nacional, no domínio da definição de crimes e penas, por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º e da alínea a), do n.º 1 do artigo 227.º, da Constituição.
44.º
Na eventualidade de o Tribunal Constitucional reconhecer ao parlamento regional competência legislativa para aprovar as normas em crise à luz deste enquadramento orgânico, considerando tratar-se tão só da definição de contraordenações, nos termos da alínea q) do n.º 1 do artigo 227.º, sempre caberá indagar, agora numa perspetiva e num enquadramento material, se para tanto goza de inteira disponibilidade ou se, pelo contrário, tal competência deverá ser exercida no quadro de determinados parâmetros condicionadores.
45.º
Ora, importa também no ordenamento jurídico português aquilatar se as normas contidas nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 7.º, n.ºs 1 e 2 e 10.º do decreto em análise, ao proibirem a venda ou disponibilização, por qualquer forma, de substâncias psicoativas, não especificamente controladas ao abrigo de legislação própria, e bem assim, o anúncio, a publicitação, a venda ou cedência por qualquer forma e toda a atividade comercial associada à produção e comercialização das substâncias consideradas no diploma, associando-lhes a instauração de um processo contraordenacional, estão feridas do vício de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios consagrados no artigo 29.º da Constituição, em especial, o princípio da legalidade, na vertente da determinabilidade da lei.
46.º
A resposta às questões enunciadas encontra-se, como não podia deixar de ser, na própria Constituição.
47.º
Isto, sem cair na “tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social”, como adverte o já citado Acórdão n.º 336/2008 do Tribunal Constitucional.
48.º
A autonomia do direito de mera ordenação social decorre desde logo das ideias expressadas no preâmbulo do diploma legal que aprova o respetivo regime jurídico (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro), já que se sentiu a necessidade de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal, afirmada essa diferença não apenas no plano formal como também e sobretudo na natureza dos respetivos bens jurídicos e na desigual ressonância ética.
49.º
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar a diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções entre o ilícito contraordenacional e o ilícito penal, considerando que os princípios e as regras do direito penal não se aplicam automaticamente ao direito de mera ordenação social (Acórdãos n.ºs 344/93; 278/99; 160/2004; 537/2011 e 85/2012).
50.º
Efetivamente, o Acórdão n.º 85/2012, considerando o princípio da tipicidade do direito penal, na vertente nullum crimen, nulla poena sine lege coerta, conclui mesmo tratar-se de um “erro pretender estender tais exigências ao domínio contraordenacional” pelo que “a exigência de determinabilidade do tipo predominante no direito.criminal não opera no domínio contraordenacional”.
51.º
Contudo, há uma dimensão da exigência de determinabilidade das normas sancionatórias que não tem sido descurada pelo Tribunal Constitucional, mesmo neste aresto da jurisprudência constitucional, que averigua, sem embargo da posição assumida, se o tipo previsto na norma então sindicada “viola as exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional” (sublinhado acrescentado).
52.º
Assim, e mesmo que se consinta nalguma flexibilidade que pode caber na definição do tipo legal contraordenacional e, consequentemente, numa menor exigência na aplicação dos princípios constitucionais contidos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º CRP ao domínio das contraordenações, que não será «automática», certo é que as normas contidas nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 7.º e 10.º do decreto da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em análise não podem deixar de se submeter ao parâmetro normativo constitucional de um mínimo de determinabilidade e previsibilidade, para ver cumprido o princípio da legalidade.
53.º
É esse mínimo que falta no caso em apreço.
54.º
As normas em crise determinam a aplicação de uma contraordenação, punível com uma coima e suscetível de cumulação com uma sanção acessória, às infrações ao disposto no diploma (artigos 10.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1).
55.º
As infrações ao disposto no diploma correspondem ao incumprimento da “proibição de venda ou disponibilização, por qualquer forma, de substâncias psicoativas, não especificamente controladas ao abrigo de legislação própria” (artigo 1.º), sendo sujeito à aplicação de uma contraordenação “quem anunciar ou publicitar, vender ou ceder por qualquer forma, substâncias psicoativas consideradas no presente diploma” (artigo 3.º), sendo “proibida toda a atividade comercial associada à produção e comercialização das substâncias consideradas no presente diploma” (artigo 7.º, n.º 1), estando ”abrangidas todas as substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer estado físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela contendo substância, com ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central, sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias” (artigo 2.º).
56.º
Não se questiona aqui a técnica de tipificação dos ilícitos contraordenacionais em causa, ao obrigar à conjugação das normas sancionatórias com as demais normas do regime estabelecido para delimitar o âmbito do ilícito, pois e como decorre do citado Acórdão n.º 85/2012, tal, só por si, não viola qualquer princípio constitucional.
57.º
Por outro lado, o recurso a conceitos indeterminados também não é condição automática para a formulação de um juízo de inconstitucionalidade sobre as normas que preveem ilícitos de mera ordenação social, como já ponderado no Acórdão n.º 338/2003, em que estava em causa uma norma que estabelecia uma contraordenação, numa argumentação retomada, designadamente, nos Acórdãos n.ºs 358/2005 e 352/2005:
58.º
Mas com a advertência, no que concerne aos conceitos indeterminados, que não haverá violação do princípio da legalidade e da sua teleologia garantística, desde que a sua utilização não obste à determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos.
59.º
Nessa linha, pode ler-se no já citado Acórdão n.º 338/2003:
“Com efeito, nem sempre é possível – nem será mesmo desejável – uma determinação do tipo de tal modo acabada que se possa libertar de conceitos «algo imprecisos», sendo certo que uma rigorosa enumeração casuística pode representar-se como contraproducente, dada a multiplicação de espaços lacunares que inevitavelmente comportaria.
Nem por isso a verificação de uma relativa indeterminação tipológica significa violação dos princípios da legalidade e da tipicidade. Assim será sempre que se não saia da «órbita daquilo que razoavelmente pode exigir-se em rigor descritivo ou limitativo, de molde a não esvaziar de conteúdo a garantia consubstanciada naqueles princípios» (….).
O mínimo de determinabilidade há de, em todo o caso, de se revestir de um grau de precisão tal que permita identificar os tipos de comportamentos descritos, na medida em que integram noções correntes da vida social, aferidas pelos padrões em vigor” (sublinhados e negrito acrescentados).
60.º
E em que consistirá esse mínimo de determinabilidade? Há uma resposta no Acórdão n.º 85/2012: Quando é “perfeitamente possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas, como ainda antecipar, com segurança, a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito. E é nisto que consiste a necessária determinabilidade dos tipos contraordenacionais” (sublinhado acrescentado).
61.º
O que equivale a dizer que a norma deve ser minimamente clara e precisa para que o agente possa saber, a partir do texto legal, quais os atos ou omissões que acarretam a sua responsabilidade.
62.º
Verifica-se, porém, no caso vertente, que a definição operada pelo parlamento regional das condutas proibidas não cumpre o mínimo de determinabilidade que deve ser associado ao direito sancionatório, de modo ao cumprimento do princípio da legalidade, por mais baixa ou mínima que seja a exigência que se lhe possa conferir.
63.º
Com efeito, associar um regime sancionatório, traduzido na aplicação de coimas e de sanções acessórias, à “proibição genérica de venda ou disponibilização por qualquer forma, de substâncias psicoativas, não especificamente controladas ao abrigo de legislação própria” (artigo 1.º do diploma regional) não deixa de suscitar a questão da determinação, com um mínimo de clareza e de rigor, do que está a ser genericamente proibido.
64.º
Ora, a definição do âmbito da proibição, constante do artigo 2.º do mesmo diploma, não responde à pergunta feita. A definição de substância psicoativa abrange “todas as substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer estado físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela contendo substância, com ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central, sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias.
65.º
A conjugação das duas disposições transcritas permite concluir que a proibição (e punição) se dirige às substâncias psicoativas não especificamente previstas e controladas na legislação própria.
66.º
Considerando os efeitos associados às substâncias psicoativas (querendo com isso significar que atuam direta ou indiretamente ao nível do sistema nervoso central) e considerando o propósito do legislador regional de regular as “conhecidas «drogas legais», que não se enquadram nas tabelas de substâncias proibidas” (socorremo-nos aqui do preâmbulo como auxiliar de interpretação), aquelas substâncias deverão corresponder às substâncias psicotrópicas e aos estupefacientes que, por qualquer razão, escapam à listagem constante das tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93.
67.º
Acontece que todas as definições vigentes de substâncias psicotrópicas e de estupefacientes, quer ao nível nacional, quer à escala europeia e internacional, remetem para as listagens constantes dos diplomas relevantes na matéria.
68.º
Não encontramos conceitos compreensivos nestas definições. Estamos muito longe das “noções correntes da vida social, aferidas pelos padrões em vigor”.
69.º
Se assim fosse, e partindo do pressuposto que substância psicoativa é a que tem ou pode ter efeitos diretos ou indiretos no sistema nervoso central, provocando alterações, designadamente, no humor, comportamentos, memória, perceção, sensações, lembrar-nos-íamos de produtos, tais como, exemplificativamente, plantas, cogumelos, substâncias ou parte delas, como o café, o álcool, o absinto, vários chás e infusões, o chocolate ou o cacau, vários frutos, como o medronho, o açúcar, plantas de bagos silvestres, cogumelos ou trufas.
70.º
Depois sempre seria de verificar se cumpriam os outros quesitos, agora de delimitação negativa, como o de não estarem sujeitos a legislação própria. A tarefa de delimitação do universo das substâncias proibidas no âmbito do diploma em causa torna-se, porventura, ainda mais difícil, pois para além do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, sempre seria de chamar à colação a legislação vigente, nomeadamente, nos domínios agroalimentar e dos medicamentos.
71.º
Quanto ao primeiro aspeto focado, o da identificação das substâncias proibidas, bastará atentar na complexidade dos processos de construção das listagens das substâncias psicotrópicas e estupefacientes, para aferir da enorme especificidade técnica e científica e da necessidade de uma ponderação valorativa que escapam ao decisionismo dos poderes públicos.
72.º
O rigor aqui exigido revela-se na remissão feita pela lei nacional de combate à droga (Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro) para as tabelas anexas ao diploma (artigo 2.º, n.º 1) e para a obrigatoriedade de atualização das mesmas em função das alterações que venham a ser introduzidas ao nível da Organização das Nações Unidas e, bem assim, tendo em conta a regulamentação da União Europeia (artigo 2.º, n.ºs 2 e 3).
73.º
A leitura do artigo 2.º da Convenção Sobre Substâncias Psicotrópicas é elucidativa quanto à complexidade do processo, transcrevendo-se apenas uma passagem que refere a intervenção da Organização Mundial de Saúde nesse processo:
“l - Se uma Parte ou a Organização Mundial de Saúde estiver na posse de informações ligadas a uma substância ainda não submetida à fiscalização internacional que, na sua opinião, possam tornar necessária a sua inscrição numa das listas da presente Convenção, deverá dirigir ao Secretário-Geral(…)
2 – (…)
3 – (…)
4 - Se a Organização Mundial de Saúde constatar:
a) Que a dita substância pode provocar:
i) 1) Um estado de dependência, e 2) Um estímulo ou uma depressão do sistema nervoso central, dando lugar a alucinações ou a perturbações da função motora, do julgamento, do comportamento, da perceção ou da disposição, ou
ii) Abusos e efeitos nocivos comparáveis aos de uma substância da lista I, II, III ou IV, e
b) Que existem razões suficientes para crer que a substância dá ou pode dar lugar a abusos tais que constitua um problema de saúde pública e um problema social, justificando a sua fiscalização internacional, deverá transmitir à Comissão um parecer sobre esta substância, onde indicará nomeadamente em que medida a substância dá ou pode dar lugar a abusos, a gravidade do problema de saúde pública e do problema social que constitui e o grau de utilidade da substância na terapêutica, assim como as recomendações sobre medidas eventuais de fiscalização a que seria oportuno sujeitá-la à luz desta avaliação.
5 - Tendo em conta a comunicação da Organização Mundial de Saúde, cujas opiniões serão determinantes em matéria médica e científica, e tendo ainda em consideração os fatores de ordem económica, social, jurídica, administrativa e todos os outros que possa julgar pertinentes, a Comissão poderá acrescentar a dita substância à lista I, II, III ou IV. Poderá pedir informações complementares à Organização Mundial de Saúde ou a outras fontes apropriadas.”
74.º
Por seu turno, a preocupação com o aparecimento de novas (ou até agora desconhecidas) substâncias psicoativas também não tem sido descurada, ao nível União Europeia.
75.º
A DECISÃO n.º 2005/387/JAI do CONSELHO, de 10 de maio de 2005, relativa ao intercâmbio de informações, avaliação de riscos e controlo de novas substâncias psicoativas, estabelece importantes mecanismos de informação e de avaliação de riscos dessas novas substâncias, tendo em vista a sua identificação e a adoção das medidas adequadas ao seu controlo, sobretudo penal.
76.º
Também aqui se procura a identificação das novas substâncias psicoativas suscetíveis de risco para a saúde humana, para a adoção de medidas de controlo necessárias.
77.º
Recorde-se, por último, que para além da definição de ilícitos penais em matéria de tráfico de estupefacientes e de psicotrópicos, vigora um regime contraordenacional dirigido ao seu consumo, nos termos da Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro.
78.º
Sublinhe-se o seguinte aspeto do regime agora invocado: mesmo no domínio das contraordenações, a tipificação dos ilícitos é feita por referência às plantas, substâncias e preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.o 15/93, de 22 de janeiro.
79.º
Também aqui se revela o cuidado na delimitação do âmbito de previsão das normas que se dirigem ao sancionamento das condutas de consumo de substâncias psicotrópicas e de estupefacientes, com a prévia identificação das plantas, substâncias e preparações cujo consumo se considera ilícito (ponderados e avaliados pelos meios próprios os efeitos, riscos para a saúde e perigosidade das substâncias em causa).
80.º
Assim, voltando ao diploma a sindicar, não podemos deixar de concluir pela impossibilidade de conferir um conteúdo minimamente preciso aos conceitos contidos nas normas citadas, não sendo conhecidas ou identificáveis as substâncias cuja venda ou disponibilização é proibida.
81.º
Não parece estar qualquer destinatário das normas em causa habilitado a conhecer com um mínimo de segurança o âmbito das proibições agora estabelecidas. Por outro lado, a falta de determinabilidade das previsões normativas do diploma regional também irá necessariamente e de forma negativa refletir-se na aplicação e no controlo do direito sancionatório que lhes corresponde.
82.º
Deste modo, mostra-se desrespeitado o requisito constitucional de exigência de um mínimo de determinabilidade dos ilícitos contraordenacionais, violando-se o princípio da legalidade que decorre do n.º 1 do artigo 29.º da Lei Fundamental.
83.º
Cumpre ainda invocar as razões que justificam que a sindicância do Tribunal Constitucional se dirija ainda a uma norma que estabelece uma sanção acessória em termos que não parecem admissíveis à luz da repartição orgânica de competências feita na Constituição portuguesa.
84.º
O artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do diploma em apreciação prevê a possibilidade de ser fixada, como sanção acessória, a “interdição do exercício da profissão ou da atividade.”
85.º
O Regime Geral do ilícito de mera ordenação social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.º 356/89, de 17 de outubro e 244/95, de 14 de setembro e a Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro determina, no artigo 21.º, n.º 1, alínea b), a possibilidade de a lei fixar, como sanção acessória, a “interdição do exercício de profissões ou atividades cujo exercício dependa de título público ou de autorização ou homologação de autoridade pública”.
86.º
O que significa, por outras palavras, que o Regime Geral restringe a possibilidade de ser fixada a sanção acessória de “interdição do exercício de profissões ou atividades” apenas relativamente àquelas “cujo exercício dependa de título público ou de autorização ou homologação de autoridade pública.”
87.º
Ora, neste domínio, o artigo 11.º, n.º 1, alínea b) da proposta amplia a possibilidade resultante do Regime Geral na medida em que permite que a sanção acessória abranja a “interdição do exercício da profissão ou da atividade” sem especificar a eventual natureza dessa profissão ou atividade.
88.º
Pode, por conseguinte afirmar-se que o segmento da norma agora em apreciação derroga o “regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social”, matéria que é da competência exclusiva da Assembleia da República, como resulta do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição.
89.º
Ora, como resulta do artigo 227.º, n.º 1, alínea q) da Constituição, quando as Regiões Autónomas houverem de “definir atos ilícitos de mera ordenação social e respetivas sanções”, haverão de fazê-lo “sem prejuízo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º”.
90.º
Existe, por conseguinte, nesta parte, violação da alínea d) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.
91.º
Registe-se, aliás, que este entendimento foi, no passado, assumido pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 91/84 no qual foi afirmado o seguinte:
“A norma sub iudicio, para além da interdição do exercício de atividade, continuou a prever - reeditando nessa parte o artigo 5º do Decreto-Lei nº 30 290, de 13 de fevereiro de 1940 - a medida de encerramento de estabelecimento, que a lei-quadro das contraordenações (cit. Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de outubro) não prevê possa aplicar-se como medida acessória das coimas. Nesse aspeto, por isso - que não enquanto reduz a duração de tais medidas - o segmento da norma agora em apreciação derroga o «regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social», - o que é da competência exclusiva da Assembleia da República, como se vê do artigo 168º, nº 1, alínea d), da Constituição.
Ora, quando as regiões autónomas houverem de «definir atos ilícitos de mera ordenação social e respetivas sanções», haverão de fazê-lo «sem prejuízo do disposto na alínea d) do artigo 168º» - preceitua o artigo 229°, alínea m), da Constituição.”(sublinhado nosso).
IV Síntese conclusiva
Do que vem de se expor, poderá concluir-se que as normas contidas nos artigos 1.º, 2.º e 3.º, 7.º, n.ºs 1 e 2, 10.º, 11.º, n.º 1, alínea b) do decreto em apreço, por ultrapassarem o âmbito da competência legislativa da Assembleia Legislativa, violando as normas dos artigos 165.º, n.º 1, alíneas c) e d), 227.º, n.º 1, alíneas a) e q), e 228.º, n.º 1, todas da Constituição, se encontram feridas do vício de inconstitucionalidade orgânica e os artigos 1.º, 2.º e 3.º, 7.º, n.ºs 1 e 2, 10.º, porque desrespeitam ainda o princípio da legalidade, decorrente do n.º 1 do artigo 29.ºda Constituição, padecem também de inconstitucionalidade material.
Notificado para se pronunciar, ao abrigo do disposto no artigo 54.º da LTC, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira juntou cópia do Diário da Assembleia donde consta a discussão sobre o diploma em causa na Sessão Plenária e ofereceu o merecimento dos autos.
Elaborado o memorando a que se refere o artigo 58.º, n.º 2, da LTC, e tendo este sido submetido a debate, cumpre agora decidir de acordo com a orientação que o tribunal fixou.
Fundamentação
1. O presente pedido de apreciação preventiva de constitucionalidade formulado pelo Representante da República para a Região Autónoma da Madeira tem por objeto as normas constantes dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 7.º, n.ºs 1 e 2, 10.º e 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto que «aprova normas para a proteção dos cidadãos e medidas para a redução da oferta de “drogas legais”», aprovado pela Assembleia Legislativa dessa Região, em sessão plenária realizada em 31 de julho de 2012.
O diploma onde se inserem estes artigos tem o seguinte conteúdo (evidenciando-se neste acórdão, a negrito, as normas sujeitas a fiscalização):
“Artigo 1º
Objeto
O presente diploma institui a proibição de venda ou disponibilização por qualquer forma, de substâncias psicoativas, não especificamente controladas ao abrigo de legislação própria.
Artigo 2º
Âmbito
Estão abrangidas todas as substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer estado físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela contendo substância, com ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central, sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias.
Artigo 3º
Infrator
Quem anunciar ou publicitar, vender ou ceder por qualquer forma, substâncias psicoativas consideradas no presente diploma, fica sujeito à aplicação de uma contraordenação.
Artigo 4º
Ações de prevenção
Os serviços governamentais competentes na área da educação e da prevenção da toxicodependência devem promover ações de prevenção e informação de forma concertada, por forma a abranger o máximo da população escolar e a comunidade em geral.
Artigo 5º
Entidades competentes
1 - Os serviços de fiscalização municipal e a Inspeção Regional de Atividades Económicas, doravante designada IRAE, devem atuar no sentido de fazer cumprir o disposto no presente diploma.
2 - As situações de assistência em qualquer unidade de saúde na Região Autónoma da Madeira devem ser comunicadas à Autoridade de Saúde Pública para posterior comunicação à IRAE, a qual deve atuar no sentido de aplicar este diploma.
Artigo 6º
Controlo prévio
Em caso de suspeita razoável da perigosidade de um produto para a saúde do indivíduo, a IRAE deve mandar retirar o produto para análise e pode ordenar a suspensão da atividade comercial por um período necessário até esclarecimento da situação, para remover a ameaça.
Artigo 7º
Proibição de atividade e encerramento de espaços comerciais
1 - É proibida toda a atividade comercial associada à produção e comercialização das substâncias consideradas no presente diploma.
2 - A IRAE deve intervir de imediato e proceder ao encerramento de todos os espaços onde sejam disponibilizadas estas substâncias.
3 - Caso o espaço inclua a venda de outros produtos não enquadráveis neste diploma, mantém-se em funcionamento, sem prejuízo de encerramento temporário por um período máximo de 3 meses, caso se comprove ser necessário para remover a ameaça.
Artigo 8º
Responsabilidade das pessoas coletivas ou equiparada
1 - As coimas previstas no presente diploma aplicam-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas e associações sem personalidade jurídica.
2 - As pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.
Artigo 9º
Determinação da medida da coima
1 - A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da localização do espaço onde se desenrola a atividade, do impacto no meio social envolvente, dos prejuízos provocados na saúde do indivíduo e do benefício económico que o infrator retirou da prática da contraordenação.
2 - Se o agente retirou da infração um benefício económico calculável superior ao limite máximo da coima, e não existirem outros meios de o eliminar, pode a coima elevar-se até ao montante do benefício, não devendo todavia a elevação exceder um terço do limite máximo legalmente estabelecido.
3 - Quando houver lugar à atenuação especial da punição por contraordenação, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade.
Artigo 10º
Contraordenações
1 - As infrações ao disposto no presente diploma constituem contraordenações puníveis, no caso das pessoas singulares, com coimas no valor mínimo de (euro) 750 e máximo de (euro) 3.700 e no caso das pessoas coletivas, no valor mínimo de (euro) 5.000 e máximo de (euro) 44 000.
3 - A tentativa e a negligência são puníveis.
Artigo 11º
Sanções acessórias
1 - Cumulativamente com a coima prevista no artigo anterior e nos termos da lei, podem ser aplicadas as seguintes sanções acessórias:
a) Perda a favor da Região Autónoma da Madeira dos objetos pertencentes ao agente e que estejam na origem da infração ou estavam destinados a servir para a prática de uma contraordenação, ou por esta foram produzidos;
b) Interdição do exercício da profissão ou da atividade;
c) Privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidades ou serviços públicos;
d) Privação do direito de participação ou arrematação a concursos públicos promovido por entidades ou serviços públicos, de fornecimento de bens e serviços, ou de concessão de serviços, licenças ou alvarás;
e) Suspensão de autorizações, licenças e alvarás.
2 - As sanções referidas nas alíneas b) a e) do número anterior têm a duração máxima de dois anos, contados a partir da decisão condenatória definitiva.
3 - O caráter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão de perda determina a transferência da propriedade para a Região Autónoma da Madeira.
Artigo 12º
Objetos pertencentes a terceiro
A perda de objetos pertencentes a terceiro só pode ter lugar:
a) Quando os seus titulares tiverem concorrido, com culpa, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem tirado vantagens; ou
b) Quando os objetos forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo os adquirentes a proveniência.
Artigo 13º
Encargos nas unidades de saúde
O infrator assumirá também a responsabilidade pelos encargos decorrentes da assistência médica em unidades de saúde, sem prejuízo do direito a qualquer indemnização ou retribuição do consumidor das substâncias.
Artigo 14º
Receitas
O produto das coimas é distribuído da seguinte forma:
80% para a Região Autónoma da Madeira;
10% para o IASaúde IP-RAM, destinado a politicas de prevenção da toxicodependência;
10% para o SESARAM, EPE destinado ao tratamento da toxicodependência.
Artigo 15º
Regulamentação
O presente diploma é objeto de regulamentação, através de portaria do Secretário Regional dos Assuntos Sociais.
Artigo 16º
Entrada em vigor
O presente diploma entra em vigor no dia posterior ao da sua publicação.”
Estes preceitos são antecedidos da seguinte fundamentação preambular:
“A Lei nº 13/2012, de 26 de março, procedeu à décima nona alteração ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, que define o regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes e psicotrópicos, com o aditamento à tabela II-A de substâncias proibidas da mefedrona e da tapentadol.
A alteração legislativa entrou em vigor no passado dia 27 de março, mas não constituiu uma solução eficaz para o problema gerado pelas chamadas “smart shops”, as quais mantêm a sua atividade comercial, com substâncias psicoativas, as conhecidas “drogas legais”, que não se enquadram nas tabelas de substâncias proibidas.
O entendimento é unânime quanto aos danos irreversíveis para a saúde física e mental do indivíduo e, consequentemente para a saúde pública, identificando-se danos ao nível do sistema nervoso central, designadamente, o aparecimento de indivíduos com “Perturbações Psicóticas Induzidas por Substância”, caracterizados por alucinações e delírios de vária ordem, dependência ou alterações significativas da função motora.
A dimensão do problema para a saúde, subjacente à proliferação destes consumos, constitui fundamento bastante para que seja tomada uma opção legislativa diferente. Importa inverter o quadro legislativo em vigor, a exemplo do que tem sido concretizado noutros países europeus, com a instituição de uma proibição genérica das substâncias psicoativas, com enquadramento criminal, acabando, assim, com o vazio legislativo que encobre estas práticas, na medida em que não se espera pelo aditamento de substâncias. Paralelamente foram realizadas ações inspetivas que resultaram no encerramento das lojas de venda o que contribuiu decisivamente para reduzir a oferta das substâncias.
Com esta iniciativa legislativa pretende-se implementar na Região um regime contraordenacional de proibição genérica de qualquer substância psicoativa, que não possua regime próprio, sem prejuízo do quadro penal adequado que venha a ser aprovado na Assembleia da República. Criamos assim um regime de ilícito de mera ordenação social para assegurar a proteção dos cidadãos e para a redução da oferta das denominadas “drogas legais”.
O regime ora criado representa uma medida de caráter administrativo, com o objetivo de proibir a disponibilização de produtos não integrados nas tabelas previstas no referido Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, ou noutra legislação específica sobre esta matéria, que escapam ao controlo das entidades judiciais.”
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira havia aprovado em 17 de julho de 2012 a Resolução n.º 32/2012/M, com o seguinte conteúdo:
“A Lei n.º 13/2012, de 26 de março, procedeu à décima nona alteração ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que define o regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes e psicotrópico, com o aditamento de mais duas substâncias à tabela II-A de substâncias proibidas, nomeadamente a mefedrona e a tapentadol.
A alteração legislativa concretizou-se após um moroso processo de análise às substâncias, concluindo-se rapidamente que esta alteração legislativa não gerou quaisquer resultados positivos para a resolução do problema das drogas sintéticas, ditas «drogas legais», precisamente porque continuam a ser vendidas, com alteração das moléculas em laboratório para excluir as duas substâncias agora proibidas.
Isto só revela que a opção do legislador deverá ser outra, a exemplo do que tem sido concretizado noutros países europeus. Isto significa que devem ser consideradas proibidas todas as substâncias psicoativas.
O entendimento é unânime quanto aos danos irreversíveis para a saúde destas novas substâncias, identificando-se danos físicos e mentais ao nível do sistema nervoso central, designadamente, aparecimento de indivíduos com «Perturbações Psicóticas Induzidas por substância», caracterizados por alucinações e delírios de vária ordem, dependência ou alterações significativas da função motora.
Tendo em conta que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não tem competência em matéria penal, incumbe à Assembleia da República legislar nesta matéria, para eliminar o vazio legislativo que permitiu proliferação de locais de venda de drogas sintéticas, pelo facto de não integrarem as tabelas de substâncias proibidas previstas no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que define o regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes e psicotrópicos, nem estarem abrangidas por outro regime legal.
Assim a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição da República Portuguesa e da alínea c) do n.º 1 do artigo 37.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 31/91, de 5 de junho, com as alterações introduzidas pela Leis n.os 130/99, de 21 de agosto e 12/2000, de 21 de junho, decreta o seguinte:
Artigo 1.º
Âmbito
O regime previsto pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que definiu o regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes e psicotrópicos, com as alterações posteriormente concretizadas, é aplicável a todas as outras substâncias psicoativas que não sejam controladas por legislação própria e que não estejam contempladas nas tabelas de substâncias proibidas, não obstante produzirem os mesmos efeitos.
Artigo 2.º
Entrada em vigor
O presente diploma entra em vigor no dia posterior ao da sua publicação.”
E no dia 18 de julho a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira aprovou ainda a Resolução n.º 34/2012/M, em que recomendou à Assembleia da República que:
«1 – Torne célere o processo de direito comparado com outras legislações em vigor em outros países, nomeadamente com o que está a ser estudado e aplicado na Polónia, na Dinamarca e em Inglaterra, no âmbito do grupo de trabalho criado para o efeito.
2 – Procure adotar legislação com referência específica a «grupos de substâncias» e não a substâncias individualizadas.
3 – Procure encontrar através de uma conjugação de esforços e trabalho conjunto com os diversos ministérios cujo assunto está sob a alçada dos mesmos – Ministérios da Saúde, da Justiça, da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território e da Economia e do Emprego – um alinhamento de legislação em matéria de controlo de estupefacientes, segurança alimentar, defesa do consumidor e medicamentos de forma a abranger a grande variedade de substâncias que aparecem no mercado.»
Nas últimas décadas assistiu-se à multiplicação de novas substâncias psicoativas, denominadas “drogas lícitas” ou “alternativas lícitas às drogas ilícitas” (legal highs), que abrangem uma vasta categoria de compostos psicoativos não regulamentados, ou produtos que os contêm, os quais são vendidos como alternativas lícitas a drogas, cuja comercialização é proibida ou controlada, normalmente através da Internet ou em lojas intituladas de smartshops ou headshops.
O legislador regional, preocupado com a proliferação na Região Autónoma da Madeira destes estabelecimentos que comercializam livremente substâncias que, no seu entendimento, são suscetíveis de provocar danos irreversíveis para a saúde física e mental de quem as consome, estando, por isso, em risco a saúde pública, após ter recomendado à Assembleia da República uma intervenção legislativa neste domínio, tendo inclusive proposto, nos termos do artigo 167.º, n.º 1, da Constituição, a extensão do regime previsto no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, a todas as substâncias psicoativas que não se encontrem controladas por legislação própria, “não obstante produzirem os mesmos efeitos” com a aprovação do diploma sob fiscalização pretendeu, entretanto, limitar a “oferta” dessas substâncias na Região, criando um regime de ilícito de mera ordenação social, ao abrigo do poder que lhe é conferido pelo artigo 227.º, n.º 1, q), da Constituição.
Para esse efeito, no artigo 1.º deste diploma, estabelece-se a proibição de venda ou de disponibilização, por qualquer forma, de substâncias psicoativas, não especificamente controladas por legislação própria.
No artigo 2.º pretende-se identificar estas substâncias através de uma formulação positiva que abranja qualquer origem, estado, forma ou produto em que elas se apresentem ou que integrem (“de origem natural ou sintética, em qualquer estado físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela contendo substância”) e indica-se o sistema funcional do corpo humano em que atuam (“com ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central”), procurando-se, simultaneamente, delimitar o espectro desta definição, através de dois elementos negativos (“sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias”). Se este último visa atribuir um cariz residual a esta proibição, de modo a que ela só opere, relativamente a substâncias cujo fabrico ou comercialização não se encontre regulado por legislação já existente, o primeiro é de difícil interpretação, uma vez que não se compreende se a indicação específica para uso humano dessas substâncias resulta da sua rotulagem, de qualificação efetuada por entidade credenciada para o efeito ou de simples uso social.
Verifica-se que a definição do conceito de “substâncias psicoativas”, constante do artigo 1.º, corresponde ao de “substâncias com ação direta sobre o sistema nervoso central” que é referido no artigo 2.º. Na verdade, nos termos formulados pela OMS, a definição de “substância psicoativa” efetua-se em função dos seus efeitos no sistema nervoso central. Integram esse conceito todas as substâncias, naturais ou sintéticas, com a capacidade de alterar a consciência, a disposição ou os pensamentos, com manifestações muito diferentes. Como se diz no Relatório da OMS de 2004, Neurociências: consumo e dependência de substâncias psicoativas (acessível em www.who.org):
“As substâncias psicoativas mais comuns podem ser divididas em depressores (por exemplo, álcool, sedativos/hipnóticos, solventes voláteis), estimulantes (por exemplo, nicotina, cocaína, anfetaminas, ecstasy), opióides (por exemplo, morfina e heroína) e alucinógenos (por exemplo, PCP, LSD, cânabis).
As diferentes substâncias psicoativas têm maneiras diferentes de agir no cérebro para produzir os seus efeitos. Ligam-se a tipos diferentes de recetores, e podem aumentar ou diminuir a atividade dos neurónios graças a vários mecanismos diferentes. Em consequência, têm diferentes efeitos sobre o comportamento, diferentes taxas de desenvolvimento de tolerância, diferentes sintomas de abstinência, e diferentes efeitos a curto e a longo prazo”.
A designação de “substâncias psicotrópicas”, também abrange todas as substâncias que atuem sobre funções cerebrais, o que lhe confere o mesmo conteúdo material do conceito de “substâncias psicoativas”. Não obstante afirmar essa identidade material, a OMS tem promovido o abandono dessa designação, considerada menos neutra e descritiva na medida em que o adjetivo “psicotrópico” passou em certos lugares a integrar o léxico comum com o sentido de dependência, o que não é exato (cfr. Lexicon, OMS, 1994, acessível em www.who.org), uma vez que nem todas as “substâncias psicoativas”, ou “psicotrópicas”, geram dependência.
No artigo 3.º o diploma em análise concretiza as condutas proibidas relativamente às substâncias referidas no artigo anterior, tipificando o seu anúncio, publicitação, venda ou cedência por qualquer forma, como uma contraordenação.
No artigo 10.º estabelecem-se os limites das coimas aplicáveis à contraordenação tipificada nos artigos 1.º, 2.º e 3.º, prevendo-se no artigo 11.º, n.º 1, b), a possibilidade de aplicação ao infrator, cumulativamente com essas coimas, da sanção acessória de interdição do exercício da profissão ou da atividade, sem qualquer limitação.
No artigo 7.º, após se reafirmar a proibição de toda a atividade comercial associada à produção e comercialização daquelas substâncias (n.º 1), determina-se o encerramento imediato pela Inspeção Regional das Atividades Económicas (IRAE) de todos os espaços onde as mesmas sejam disponibilizadas (n.º 2).
A proibição da produção está prevista apenas quando esta atividade se encontre associada à comercialização, não se afigurando que deste artigo resulte um alargamento das condutas proibidas no artigo 3.º e sancionadas no artigo 10.º ao fabrico ou cultivo dessas substâncias desacompanhado da sua comercialização.
A medida de encerramento de todos os espaços onde as substâncias se encontrem a ser disponibilizadas ao público, não se apresenta como uma sanção acessória da coima, não só porque não está elencada no artigo 11.º deste diploma, mas também porque é de execução imediata, o que a situa fora do processo de contraordenação, a qual tem como pressuposto fundamentador a proibição descrita no n.º 1, do mesmo artigo 7.º.
Em suma, pode dizer-se que as normas sujeitas a fiscalização preveem uma contraordenação (artigos 3.º, 10.º e 11.º, n.º 1, b) e uma medida de polícia (artigo 7.º, n.º 2), as quais têm como pressuposto uma proibição da venda ou disponibilização por qualquer forma de todas as substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer estado físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela, contendo substância, com ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central, sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias (artigos 1.º, 2.º e 7.º, n.º 1).
2. O Requerente fundamentou o seu pedido de fiscalização preventiva, defendendo que as normas constantes dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 7.º, n.º 1 e 2, 10.º, e 11.º, b), do Decreto enfermavam dos seguintes vícios:
- inconstitucionalidade orgânica, por versarem matéria de competência legislativa dos órgãos de soberania, no domínio da definição de crimes e penas, por força da alínea c), do n.º 1, do artigo 165.º, e da alínea a), do n.º 1, do artigo 227.º, da Constituição, acrescendo, relativamente à norma constante do artigo 11.º, b), que a mesma constitui uma derrogação do regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social, o que também integra a competência legislativa dos órgãos de soberania, por força da alínea d), do 165.º, n.º 1, da Constituição;
- inconstitucionalidade material, por violação do princípio da legalidade, na vertente da determinabilidade dos tipos de ílicito contraordenacionais, que decorre do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.
3. Considera o Requerente que o diploma sob fiscalização, ao legislar em “situações similares às sancionadas com uma pena criminal” e também dirigida à tutela da saúde dos consumidores de “substâncias não tipificadas como substâncias psicotrópicas ou estupefacientes”, mas que poderão, em virtude dos seus efeitos, vir a constar das tabelas anexas ao Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, invadiu a reserva relativa de competência da Assembleia da República na definição de crimes e penas. Acrescenta que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, ao aprovar uma Resolução, em exercício da sua iniciativa junto da Assembleia da República, no sentido da extensão do regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes e psicotrópicos a todas as “substâncias psicoativas” não incluídas nas referidas tabelas anexas, “reconhece natureza penal” a essas condutas, ao mesmo tempo que, mediante a aprovação do decreto legislativo regional em apreço, as procura “degradar”, através da instituição de mera tutela contraordenacional.
Na lógica deste raciocínio, apesar de formalmente ter sido criado um tipo de ilícito contraordenacial, uma vez que o mesmo sanciona comportamentos que materialmente têm relevância penal, o legislador regional, ao efetuar essa opção, não deixa de intervir no domínio da definição de crimes e penas, o qual está reservado aos órgãos de soberania, designadamente à Assembleia da República ou ao Governo, mediante autorização daquela, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, c), da Constituição.
Admitindo-se a possibilidade de violação das regras de competência por este modo, há que ter presente que a opção por um dos dois ilícitos para sancionar uma determinada conduta, tutelando um determinado bem jurídico, constitui uma decisão discricionária para o legislador, o qual, contudo, deverá respeitar a ordem axiológica jurídico-constitucional, sendo certo que, fora dos casos de injunções constitucionais de criminalização expressa, o direito penal só deverá atuar quando as necessidades de tutela o exijam. Figueiredo Dias (em “Direito Penal – Parte Geral”, tomo I, pág. 164, 2.ª ed., da Coimbra Editora) aponta dois exemplos de escola de violação de um critério distintivo material: “considerar o homicídio doloso como contraordenação, ou como crime contra o ambiente o desfolhar uma modesta flor selvagem numa mata nacional”. Necessário é, para que se justifique uma intervenção fiscalizadora da constitucionalidade, que se torne possível individualizar, a partir da ordem axiológica constitucional, condutas que indiscutivelmente pertencem ou ao direito penal ou ao direito de mera ordenação social e que se verifique uma manifesta e gritante desadequação da escolha do legislador.
De acordo com o seu preâmbulo, o diploma regional em apreço inscreve-se na tutela geral do bem jurídico saúde pública, perante a danosidade social representada pelo consumo de “substâncias psicoativas”, referidas como responsáveis por “danos irreversíveis para a saúde física e mental do indivíduo”.
No domínio da proteção daquele bem jurídico, a disponibilização e publicitação de substâncias nocivas para a saúde humana, no nosso ordenamento, é um comportamento que muitas vezes é encarado como encerrando um perigo de ofensa daquele bem jurídico, uma vez que induz ao consumo dessas substâncias, sendo, contudo, objeto da previsão de sanções de natureza diferente.
Na verdade, no domínio do condicionamento à comercialização e publicitação de substâncias cujo consumo é nocivo para a saúde humana, designadamente de substâncias psicoativas, encontram-se em vigor no território nacional regimes distintos, de acordo com distintas opções legislativas, incidentes sobre a perigosidade social da conduta e a devida censurabilidade ética, pese embora todas ordenadas pela defesa do direito à saúde.
Estes comportamentos são tipificados como ilícito penal quando se reportam, de acordo com o conteúdo do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, “a plantas, substâncias e preparações referidas nas convenções relativas a estupefacientes ou substâncias ratificadas por Portugal e respetivas alterações, bem como outras substâncias incluídas nas tabelas anexas ao presente diploma” (artigo 3.º).
Porém, outras substâncias também psicoativas com forte prevalência epidemiológica mundial – o álcool e as substâncias presentes no tabaco (cfr. o Relatório da OMS de 2004, Neurociências: consumo e dependência de substâncias psicoativas, acessível em www.who.org) - merecem igualmente condicionamento, na prossecução da defesa do mesmo bem jurídico.
Nos termos do Decreto-Lei n.º 9/2002, de 24 de janeiro, tendo em atenção as graves consequências para a saúde do consumo excessivo de álcool, para além da sua associação com outras condutas socialmente desvaliosas, estabelece-se a proibição de venda e a colocação à disposição, com objetivos comerciais, em locais públicos e em locais abertos ao público, de álcool a menores de 16 anos (alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º) e a quem se apresente notoriamente embriagado ou aparente possuir anomalia psíquica (alínea b), do n.º 1, do artigo 2.º). Também a venda de bebidas alcoólicas nas cantinas, bares e outros estabelecimentos de restauração e de bebidas acessíveis ao público localizados nos estabelecimentos de saúde e a venda de bebidas alcoólicas em máquinas automáticas encontra-se igualmente proibida (alíneas a) e b), do artigo 3.º). No plano sancionatório, o mesmo diploma instituiu um tipo contraordenacional para a violação dessas proibições de venda e de disponibilização (artigo 7.º, n.ºs 1 e 2), podendo ser aplicada, para além da coima, a perda do produto da venda e a interdição, até um período de dois anos, do exercício da atividade diretamente relacionada com a infração praticada, nos casos da venda a menor de 16 anos, a quem se encontre notoriamente embriagado ou aparente possuir anomalia psíquica, em função da gravidade e reiteração das infrações (alíneas a) e b), do artigo 8.º).
Por seu turno, no domínio da proteção dos cidadãos da exposição involuntária ao fumo do tabaco e criação de medidas de redução da procura relacionadas com a dependência e a cessação do seu consumo, e em execução da Convenção Quadro da Organização Mundial de Saúde, aprovada pelo Decreto n.º 25-A/2005, de 8 de novembro, a Lei n.º 37/2007, de 14 de agosto, veio, no seu artigo 15.º proibir a venda de produtos do tabaco num conjunto de locais (alínea a), do n.º 1), em certas circunstâncias em máquinas de venda automática (alínea b), do n.º 1), a menores de 18 anos (alínea c), do n.º 1) e através de televenda (alínea d), do n.º 1). Também aqui, o regime sancionatório, previsto no capítulo VIII deste diploma, envolve a previsão de infrações contraordenacionais, encontrando-se a violação da proibição de venda tipificada no artigo 25.º, n.º1, al. e).
Desta descrição parece resultar que a opção pelo recurso ao direito penal ou ao direito de mera ordenação social depende do tipo de substância cujo consumo se visa impedir, tendo em conta não só o seu grau de danosidade para a saúde humana, mas também a divulgação e aceitação social do seu consumo.
Tudo indica que estamos num daqueles casos em que «não existirá óbice indispensável a que – em zonas delimitadas, onde a distinção, por virtude de historicidade inevitável dos valores, se torne particularmente duvidosa – um substrato essencial e objetivamente idêntico possa constituir em certos casos um ilícito penal, noutros um ilícito de mera ordenação social» (Figueiredo Dias, na ob. e loc. cit.).
Acresce que, estando nós perante o sancionamento de um comportamento justificado apenas pela sua perigosidade típica para um determinado bem jurídico, a intervenção do direito penal, apesar de possível, reveste um caráter excecional, pressupondo a verificação de exigentes requisitos.
Por estas razões, dificilmente se poderá afirmar que nos encontramos perante condutas que, face à ordem axiológica constitucional, pertençam indiscutivelmente ao direito penal.
A esta conclusão não se opõe a consideração de que a mesma Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira aprovou Resolução que consubstancia iniciativa legislativa dirigida à Assembleia da República no sentido de inscrever no âmbito do regime penal todas as substâncias psicoativas, acrescentando às plantas, substâncias e preparações controladas por legislação própria, previstas nos termos do artigo 3.º, da Lei 15/93, de 22 de janeiro, as demais, (ainda) não controladas, “não obstante produzirem os mesmos efeitos”.
A apreciação do mérito e da oportunidade dessa iniciativa legislativa, assim como do programa político-criminal que lhe está subjacente, não suspende ou restringe por qualquer forma a atuação da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, no exercício das competências que lhe são atribuídas pela Constituição, entre as quais a de definir atos ilícitos de mera ordenação social e respetivas sanções (artigo 227.º, n.º1, al. q) da Constituição), respeitados que sejam os princípios materiais que regem essa qualificação.
Cabe referir que, em todos os regimes apresentados, seja no regime penal do tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, seja nos regimes sancionatórios contraordenacionais acima referidos, encontramos previsões que procuram uma antecipação da tutela, através da proibição e sancionamento de condutas consideradas potencialmente perigosas para o bem jurídico que se visa proteger.
Ora, neste prisma, importa reconhecer ao legislador regional, no exercício da sua autonomia político-administrativa, e estando-lhe vedada a definição da política criminal através da criação de tipos penais, a possibilidade de promover, através da intervenção no plano contraordenacional, a contramotivação de condutas que apresentem tal perigosidade, designadamente no desenvolvimento de políticas regionais de promoção e tutela da saúde pública.
É neste enquadramento que se compreende a aprovação das Resoluções que recomendaram e propuseram à Assembleia da República a adoção de medidas legislativas para os quais apenas os órgãos de soberania têm competência, enquanto, quase simultaneamente, no uso das suas competências para definir políticas de tutela da saúde pública na região, incluindo a tipificação de contraordenações, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira aprovou o presente Decreto, proibindo e sancionando como contraordenação os atos de publicitação e disponibilização das substãncias psicoativas cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias.
Daí que, no caso em apreço, não se encontre no diploma sob fiscalização a expressão da aplicação do critério material que conduzisse ao afastamento da opção axiologicamente fundada pela tutela penal – antes pelo contrário, como resulta do preâmbulo – mas esse raciocínio não consente a afirmação do Requerente de que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira vem “degradar” a proteção do bem jurídico através do diploma em apreço, dirigido ao controlo de substâncias psicoativas não contempladas nas tabelas constantes do regime penal do tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, nem incluídas noutro regime. Como acontece com os regimes de controlo da venda de álcool e de tabaco a que se fez referência, a escolha pelo regime contraordenacional não envolve, ou, melhor dizendo, não envolve necessariamente, uma afirmação de menor perigosidade, cingida à perspetiva epidemiológica, pois a escolha legislativa obedece a ponderação mais vasta, onde a aferição científica rigorosa da perigosidade assume função predominante, mas sem dispensar considerações socioculturais. Essa necessidade de ponderação prudencial nas várias perspetivas do fenómeno e, em especial, na inscrição de plantas, produtos e substâncias nas várias tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, encontra tradução no respetivo preâmbulo, quando se afirma: «a decisão de uma graduação mais ajustada tem de assentar na aferição científica rigorosa da perigosidade das drogas nos seus diversos aspetos, onde se incluem motivações que ultrapassam o domínio científico para relevarem de considerandos de natureza sócio-cultural não minimizáveis». Quando essa aferição não se encontra ainda efetuada, existindo um vazio legislativo nessa matéria, não há impedimento a que o legislador opte por recorrer a mecanismos de reação fora do direito penal que, entretanto, deem uma resposta à eventual perigosidade do consumo dessas substâncias.
Estamos, assim, perante um dos domínios difusos na delimitação científica e sociocultural das substâncias psicoativas, cuja venda e distribuição apresenta desvalor ético-social que, independentemente de poder vir a fundar a inscrição na tutela penal, justificou de imediato, na avaliação da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, em exercício da autonomia político-administrativa reconhecida pela Constituição, uma tutela contraordenacional, sem que isso possa significar uma invasão na definição das condutas que constituem crime, a qual se encontra reservada aos órgãos de soberania.
Assim não aconteceria caso se verificasse que o regime em apreço comportaria coincidência no seu âmbito objetivo com o regime penal em vigor, em termos de comportar a descriminalização ou a despenalização de qualquer das condutas compreendidas na esfera de proteção do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na região autónoma da Madeira. Porém, quer na definição do seu objeto (artigo 1.º), quer do seu âmbito (artigo 2.º), a delimitação negativa constante dos segmentos “não especificamente controladas ao abrigo de legislação própria” e “não regulado por disposições próprias”, conduz à sua aplicação subsidiária, residual, destinada a preencher um vazio legislativo, cedendo sempre que as substâncias psicoativas contém já uma regulação própria, como acontece com todas as incluídas nas tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
Face ao exposto, afasta-se a invocada inconstitucionalidade orgânica dos artigos 1.º, 2.º e 3.º, 7.º, n.ºs 1 e 2, 10.º e 11.º, n.º 1, alínea b) do Decreto em questão, por violação da reserva legislativa decorrente dos artigos 165.º, n.º 1, alíneas c), 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, todos da Constituição.
4. O Requerente suscita uma segunda questão, que se coloca no plano material, da caracterização do conteúdo do ilícito contraordenacional. Embora aceitando a distinta natureza ontológica das infrações contraordenacionais e a impropriedade da transposição de todos os princípios que regem o ordenamento jurídico-penal para o domínio contraordenacional, entende que a descrição efetuada pelo Decreto sob fiscalização dos comportamentos proibidos e sancionados como contraordenação não obedece ao mínimo de determinabilidade e previsibilidade, pois a concretização das substâncias psicoativas escapa às “noções correntes da vida social, aferidas pelos padrões em vigor”.
Num Estado de direito democrático a prevenção do crime deve ser levada a cabo com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, estando sujeita a limites que impeçam intervenções arbitrárias ou excessivas, nomeadamente sujeitando-a a uma aplicação rigorosa do princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). É neste sentido que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, dispõe que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
Essa descrição da conduta proibida e de todos os requisitos de que dependa em concreto uma punição tem de ser efetuada de modo a que “se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos (Figueiredo Dias, na ob. cit. pág. 186). Daí que, incindivelmente ligado ao princípio da legalidade se encontre o princípio da tipicidade, o qual implica que a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos de medida de segurança), bem como tipificar as penas (ou as medidas de segurança). A tipicidade impede, assim, que o legislador utilize fórmulas vagas, incertas ou insuscetíveis de delimitação na descrição dos tipos legais de crime, ou preveja penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto. É um princípio que constitui, essencialmente, uma garantia de certeza e de segurança na determinação das condutas humanas que relevam do ponto de vista do direito criminal.
O princípio da tipicidade tem que ver, assim, com a exigência da determinabilidade do conteúdo da lei criminal. Conforme escreve Taipa de Carvalho (em “Constituição Portuguesa anotada”, organizada por Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo I, pág. 672, da 2.ª edição, revista, atualizada e ampliada, da Wolters Kluwer Portugal - Coimbra Editora), «dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade ou mesmo contra a discricionariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que ações e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança”.
Não se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal. Aliás nem sequer existe no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante àquele que existe no artigo 32.º, a respeito das garantias processuais, alargando-as, com as necessárias adaptações, a todos os outros processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10).
Contudo, sendo o ilícito de mera ordenação social sancionado com uma coima, a qual tem repercussões ablativas no património do infrator, também aqui se devem respeitar os princípios necessariamente vigentes num Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), como o da segurança jurídica e da proteção da confiança.
Como se disse no Acórdão n.º 41/2004 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt):
“Está, porém, consolidado no pensamento constitucional que o direito sancionatório público, enquanto restrição relevante de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, isto é, do núcleo de garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 158/92, de 23 de abril, 263/94, de 23 de março, publicados no D.R., II Série, de 2 de setembro de 1992 e de 19 de julho de 1994, e nº 269/2003, de 27 de maio, inédito). E se tal não resulta diretamente dos preceitos da chamada Constituição Penal, resultará, certamente, do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição.”
A determinabilidade do conteúdo de proibições cujo desrespeito é sancionado com uma coima é um pressuposto da existência de uma relação equilibrada entre Estado e cidadão. Na verdade, essa exigência é um fator de garantia da proteção da confiança e da segurança jurídica, uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente as suas condutas se souber qual a margem de ação que lhe é permitida e quais as reações do Estado aos seus comportamentos.
E se a menor danosidade da sanção das contraordenações (as coimas), que nunca afetam o direito à liberdade, conjuntamente com a necessidade de prosseguir finalidades próprias da ordenação da vida social e económica, as quais são menos estáveis e dependem, muitas vezes, de políticas sectoriais concretas, permitem uma aplicação mais aberta e maleável do princípio da tipicidade, comparativamente ao universo penal, o caráter sancionatório e a especial natureza do ilícito contraordenacional não deixam de exigir um mínimo de determinabilidade do conteúdo dos seus ilícitos. Uma vez que nas contraordenações a proibição legal assume especial importância na valoração como ilícitas de condutas de ténue relevância axiológica, a sua formulação tem que necessariamente constituir uma comunicação segura ex-ante do conteúdo da proibição aos seus destinatários.
A verificação do cumprimento desta exigência constitucional, no caso concreto, envolve a prévia caracterização das realidades envolvidas, incidindo sobretudo na definição de “substâncias psicoativas” ou de “substâncias com ação direta sobre o sistema nervoso central”.
Na verdade, o artigo 1.º do Decreto sob fiscalização, “institui a proibição de venda ou disponibilização por qualquer forma, de substâncias psicoativas, não especificamente controladas ao abrigo de legislação própria”, e o artigo 2.º, do mesmo diploma, pretendendo melhor esclarecer quais são essas substâncias, refere que aquele conceito abrange “todas as substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer estado físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela contendo substância, com ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central, sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias.”, sendo proibida o seu anúncio, publicitação, venda ou cedência por qualquer forma” (artigo 3.º). As infrações a estas proibições são consideradas contraordenações pelos artigos 3.º e 10.º, estando previstas neste último artigo as respetivas coimas.
Como acima se constatou a definição do conceito de “substâncias psicoativas”, constante do artigo 1.º, corresponde ao de “substâncias com ação direta sobre o sistema nervoso central” que é referido no artigo 2.º, pelo que este nada veio a acrescentar ao elemento identificativo inicialmente avançado e que abrange todas as substâncias, naturais ou sintéticas, com a capacidade de alterar a consciência, a disposição ou os pensamentos, com manifestações muito diferentes.
Qualquer um desses conceitos não se apresenta como elemento típico diretamente operativo, nem no domínio do regime jurídico-penal do tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, constante do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, nem no regime contraordenacional do consumo introduzido pela Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, na medida em que, em ambos os diplomas, a delimitação do objeto da conduta proibida efetua-se por referência para as tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, em vigor na data dos factos, as quais contém um elenco individualizado das plantas, substâncias e preparados cujo tráfico e consumo é punido.
Os atos de tráfico, onde se incluem as condutas de comercialização, disponibilização e publicidade, no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, são tipificados como ilícito penal quando se reportam “a plantas, substâncias e preparações referidas nas convenções relativas a estupefacientes ou substâncias ratificadas por Portugal e respetivas alterações, bem como outras substâncias incluídas nas tabelas anexas ao presente diploma” (artigo 3.º). Definidas a ordenação e o elenco dessas tabelas, estipula-se no artigo 2.º a sua atualização obrigatória “de acordo com as alterações aprovadas pelos órgãos próprios das Nações Unidas, segunda as regras previstas nas convenções ratificadas por Portugal ou por diploma das Comunidades Europeias”. Pode, assim, afirmar-se, uma identidade entre o critério subjacente à classificação portuguesa e aquele decorrente do regime convencional, assente na elaboração científica da Organização Mundial de Saúde (OMS), e também do direito da União Europeia. Desde a sua publicação, foram aditadas às tabelas anexas plantas, substâncias ou preparados pelos Decretos-Lei n.º 214/2000, de 2 de setembro, 69/2001, de 24 de fevereiro, 47/2003, de 22 de agosto, 14/2005, de 26 de janeiro, 18/2009, de 11 de maio e 13/2012, de 26 de março. Para todas essas plantas, substâncias e preparados, a sua venda ou disponibilização ao público, apenas pode ter lugar em farmácias, mediante prescrição médica (artigos 15.º e 16.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro).
O elenco das substâncias enumeradas nessas tabelas resulta de um procedimento de âmbito internacional complexo e rigoroso que indica um padrão no que respeita à determinação das substâncias psicoativas que encerram um determinado nível de perigosidade para a saúde humana, o qual se apoia nas informações prestadas pelos organismos responsáveis nacionais e internacionais e por estudos médico-científicos, nomeadamente os pareceres da OMS, que sopesam fatores de saúde pública e de impacto social.
Nos termos do preâmbulo do diploma em apreço, a iniciativa legislativa foi justificada pelo aparecimento das denominadas “smart shops” e a venda do que se designa por “drogas legais”, fenómeno que não teria encontrado solução eficaz no aditamento efetuado pela Lei n.º 13/2012, de 26 de março, de mais duas substâncias à tabela II-A, anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
O problema do acréscimo de consumo de novas substâncias psicoativas sintéticas e a emergência do comércio, seja em estabelecimentos abertos ao público, seja por via online, tem constituído preocupação de diversas instâncias internacionais.
No relatório anual, incidente sobre o ano de 2011, elaborado pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT) e pela Europol, sobre a aplicação da Decisão 2005/387/JAI, do Conselho da União Europeia, de 10 de maio de 2005, relativa ao intercâmbio de informações, avaliação de riscos e controlo de novas substâncias psicoativas (publicada no Jornal Oficial da União Europeia, L127, de 20 de maio de 2005, pág. 32-37), no que concerne ao surgimento destas substâncias não contempladas em qualquer das listas previstas nas convenções internacionais neste domínio, designadas por “euforizantes legais”, informa-se da notificação, ao abrigo do sistema de alerta instituído na UE, de múltiplas novas substâncias psicoativas nos anos recentes e a proliferação de lojas especializadas – denominadas head shops ou smart shops.
Essa situação convoca a reflexão sobre a reação ao fenómeno e, na pronúncia do OEDT, a necessidade de adoção de medidas sancionatórias não apenas reativas, mas também proactivas, tendo em atenção a capacidade da produção de novas substâncias psicoativas apenas com a alteração de um dos seus componentes, sem postergar a necessidade de identificar, com o mínimo de precisão e clareza, a substância psicoativa controlada.
Reconhecendo-se os elevados custos e a complexidade em detetar e identificar as novas substâncias, afirma-se a impossibilidade jurídica de criminalizar a distribuição não autorizada de todas as substâncias psicoativas, e por isso, a inevitabilidade da legislação apenas poder reagir às substâncias à medida que elas vão surgindo e vão sendo identificadas e classificadas como perigosas para a sáude humana, tendo para o efeito sido criado um sistema de alerta rápido, com funcionamento simultâneo a nível europeu e internacional, implementado pela OEDT e a Europol, enquanto rede pluridisciplinar, que recolhe, analisa e divulga as informações sobre novas drogas, procedendo à avaliação dos seus riscos, o que reforça a ideia da necessidade da clara e especifica definição das substâncias psicoativas de modo a legitimar o seu controlo legislativo.
Este sistema de definição individualizada das substâncias psicoativas em que a oferta deve ser proibida e punida, fornece uma mensagem precisa e credível sobre o perigo associado à substância, de modo a incutir à avaliação de riscos, que preside a uma opção legislativa proibicionista, uma fundamentação científica sólida.
O preâmbulo do diploma em apreço alude à concretização “noutros países europeus”, que não especifica, de “uma proibição genérica das substâncias psicoativas, com enquadramento criminal”. Contrapõe o Requerente que “todas as definições vigentes de substâncias psicotrópicas e de estupefacientes, quer ao nível nacional, quer à escala europeia e internacional, remetem para as listagens constantes dos diplomas relevantes na matéria”.
Porém, o panorama de direito comparado apresentado pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência não confirma inteiramente qualquer uma dessas asserções.
Na Nota publicada em dezembro de 2011, intitulada “respondendo às novas substâncias psicoativas”, faz-se o seguinte resumo do panorama penal em vigor no espaço da União Europeia:
«A Irlanda e o Reino Unido utilizam as definições genéricas das famílias químicas controladas. Nas substâncias análogas ou derivadas de drogas controladas podem incluir-se as substâncias com estruturas ou efeitos semelhantes, abrangendo, assim, uma gama mais vasta do que a definição genérica; estas classificações podem ser aplicadas a todas as substâncias sob controlo da legislação em matéria de droga (como acontece na Bulgária e na Noruega), a categorias selecionadas (Letónia e Malta), ou apenas a um pequeno grupo de substâncias (Luxemburgo). Contudo, alguns Estados-Membros indicaram que teriam dificuldade em aplicar uma definição genérica, por isso exigir alterações da legislação primária ou ser contrária aos princípios constitucionais».
E no Relatório do mesmo organismo, relativo ao ano de 2011, refere-se o seguinte:
«A rápida difusão de novas substâncias está a impelir os Estados-Membros a repensarem e reverem algumas das suas respostas habituais ao fenómeno da droga.
Em 2010, tanto a Irlanda como a Polónia procederam à rápida aprovação de medidas legislativas destinadas a limitar a venda livre de substâncias psicoativas não controladas pela legislação em matéria de droga. Para o efeito, os dois países tiveram de elaborar uma definição jurídica cuidadosa dessas substâncias. A legislação irlandesa define-as como substâncias psicoativas, não especificamente controladas pela legislação existente, que têm a capacidade de estimular ou deprimir o sistema nervoso central, causando alucinações, dependência ou alterações significativas da função motora, do pensamento ou do comportamento. Estão excluídos os medicamentos e produtos alimentares, os medicamentos veterinários, as bebidas alcoólicas destiladas e o tabaco. A legislação polaca refere-se a «drogas substitutas», definidas como uma substância ou planta consumida em vez de uma droga controlada, ou para os mesmos fins que esta, e cujo fabrico ou colocação no mercado não estão regulamentados por disposições autónomas. Não é especificamente referido se a droga deve ou não ser considerada perigosa».
Assim, de acordo com aquele Observatório, regista-se uma evolução para a inclusão na previsão legal do ordenamento penal de maior generalidade, por referência a classes, estruturas ou famílias específicas de substâncias psicoativas, tendo mesmo, relativamente à adoção de medidas limitativas, alguns países recorrido a cláusulas gerais, não estando, contudo, a grande maioria dos ordenamentos dispostos a dispensar uma delimitação das concretas substâncias proibidas e sujeitas a tutela penal, evocando-se, para tanto, imperativos constitucionais e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Se é certo que a rapidez com que, atualmente, as novas substâncias psicoativas podem surgir e ser distribuídas põe em causa o procedimento atual de adoção de legislação para controlar uma substância estabelecido em cada país, exigindo não só uma agilização de procedimentos como uma maior imaginação na escolha de meios alternativos de intervenção legislativa, no sentido de reduzir e dificultar a sua oferta, isso não pode ser pretexto para a menorização de princípios essenciais à afirmação do Estado de direito democrático.
Com isto não se quer dizer que o modelo a seguir na definição das substâncias cuja comercialização deva ser proibida ou restringida só possa corresponder ao atual método de pré-elaboração de tabelas, contendo uma enumeração individualizada das substâncias proibidas, mas apenas que a escolha do meio adequado para responder a estas novas realidades terá que respeitar os princípios constitucionais, quer em matéria penal, quer em matéria contraordenacional, nomeadamente o da exigência do mínimo de determinabilidade das normas que tipifiquem as condutas proibidas.
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, depois de recomendar à Assembleia da República que interviesse em matéria de controlo de estupefacientes, adotando legislação com referência específica a “grupos de substâncias” e não a substâncias individualizadas, e de apresentar uma Proposta de Lei no sentido de estender o regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes e psicotrópicos, atualmente vigente, a todas as outras substâncias psicoativas que não sejam controladas por legislação própria e que não estejam contempladas nas tabelas de substâncias proibidas, não obstante produzirem os mesmos efeitos, aprovou o presente diploma, proibindo e sancionando como contraordenação, na região, o anúncio, publicitação, venda ou cedência por qualquer forma, das substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer estado físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela contendo substância, com ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central, sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias.
Analisando a definição do âmbito de previsão do diploma em apreço constante do artigo 2.º, verificamos que a sua delimitação repousa inteiramente no efeito da substância sobre o sistema nervoso central, o que, materialmente, não oferece maior concretização do que aquela que já resultava da indicação no artigo 1.º, segundo a qual o objeto da proibição de venda e de disponibilização são todas as substâncias naturais ou sintéticas, com a capacidade de alterar a consciência, a disposição ou os pensamentos, com manifestações muito diferentes, cujo fabrico ou comercialização não se encontre especificamente controlada por lei.
Visando o presente diploma, nas intenções declaradas pelo legislador no preâmbulo, impedir o consumo de substâncias que provoquem danos irreversíveis para a saúde física e mental dos indivíduos, a definição genérica utilizada não permite restringir o seu âmbito a essa específica categoria de substâncias, uma vez que o estende ao universo alargado de toda e qualquer substância idónea a produzir qualquer tipo de efeito, independentemente da sua natureza e por mais insignificante que seja, sobre o sistema nervoso central.
É uma definição de tal modo ampla e genérica que, abrangendo um tão largo espectro de substâncias, algumas de uso corrente generalizado, não permite aos destinatários desta legislação saberem quais são efetivamente as substâncias cuja comercialização e disponibilização é verdadeiramente proibida por este diploma, não lhes permitindo conformar autonomamente as suas condutas, tendo em conta a margem de ação que lhes é permitida.
É certo que a definição do âmbito também oferece, como elemento negativo adicional, além da inexistência de controlo ao abrigo de legislação própria, a circunstância da substância não ter uma “indicação específica para uso humano”, mas esse aditamento não acrescenta clareza à determinação (positiva) das condutas tipificadas, desde logo porque não concretiza minimamente a origem da indicação a que se refere, como acima se fez notar.
Neste contexto, e tendo ainda em atenção que o tipo contraordenacional encontra-se previsto igualmente na forma negligente, não se vê que esteja ao alcance do destinatário mediano e previdente, um meio que lhe seja exigível, de modelar o seu dever de cuidado e garantir que não disponibiliza a outros substâncias psicoativas perigosas para a saúde.
Assim, mesmo tendo presente que estamos perante um tipo de ilícito de mera ordenação social, ele revela um tal grau de indeterminação na definição dos comportamentos proibidos que não satisfaz as exigências dos princípios do Estado de direito democrático da segurança jurídica e da confiança, pelo que as normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 10.º e 11.º, n.º 1, b), são materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 2.º da Constituição.
Esse vício estende-se também consequencialmente às normas constantes do artigo 7.º, n.º 1 e 2, uma vez que a medida nelas prevista tem como pressuposto precisamente a proibição sobre a qual acabou de recair o juízo de inconstitucionalidade.
5. O Requerente suscitou a inconstitucionalidade orgânica da norma constante do artigo 11.º, n.º 1, b), do Decreto em apreço, alegando ainda que a mesma derroga o disposto no Regime Geral das Contraordenações, o que se insere na competência dos órgãos de soberania, nos termos dos artigos 165.º, n.º 1, d) e 227.º, n.º 1, q), da Constituição.
Tendo-se já concluído pela inconstitucionalidade material desta norma, conjuntamente com as demais, pelas razões acima invocadas, torna-se dispensável o seu confronto com outros parâmetros constitucionais invocados pelo Requerente, pelo que se revela prejudicado o conhecimento do mérito deste fundamento.
Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade, por violação do artigo 2.º, da Constituição, das normas contidas nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 7.º, n.ºs 1 e 2, 10.º e 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto que «aprova normas para a proteção dos cidadãos e medidas para a redução da oferta de “drogas legais”», aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, em sessão plenária de 31 de julho de 2012.
Lisboa, 28 de agosto de 2012 – João Cura Mariano –Ana Guerra Martins – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral – Maria José Rangel de Mesquita – Maria João Antunes (vencida nos termos da declaração que se anexa) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Acompanho o ponto 3. da Fundamentação, sem prejuízo de ponderação ulterior quanto à questão de saber se é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre matérias relativamente às quais o critério da necessidade de tutela penal confere ao legislador a liberdade de criminalizar determinado comportamento ou de o sancionar com uma coima. Havendo um bem jurídico-penal – um bem jurídico digno de tutela penal por referência à ordem axiológica jurídico-constitucional – é questionável que as regiões autónomas tenham o poder de criar um ilícito de mera ordenação social, exercendo o poder previsto na alínea q) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição. É de ponderar se a reserva relativa de competência legislativa em matéria de definição dos crimes, penas e medidas de segurança e respetivos pressupostos (artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição) significa, também, que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre matérias em relação às quais, não obstante a dignidade penal do bem jurídico, há margem para optar entre a criminalização e o sancionamento através de coima, de acordo com o critério necessidade de tutela penal. É de ponderar, consequentemente, se o poder para definir atos ilícitos de mera ordenação social (artigo 227.º, n.º 1, alínea q), da Constituição) se cinge aos comportamentos relativamente aos quais está excluída a criminalização por falta de um bem jurídico político-criminalmente tutelável.
2. Pronunciei-me no sentido da não inconstitucionalidade das “normas contidas nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 7.º, n.ºs 1 e 2, 10.º e 11,º, n.º 1, alínea b) do Decreto que «aprova normas para a proteção dos cidadãos e medidas para a redução da oferta de ‘drogas legais’»” por violação do artigo 2.º da Constituição.
Diferentemente do entendimento maioritário, tenho para mim que os comportamentos proibidos e sancionados com coima/coima e interdição do exercício da profissão ou da atividade são objetivamente determináveis do ponto de vista do destinatário da normas, daquele que anunciar ou publicitar, vender ou ceder por qualquer forma, as substâncias psicoativas consideradas no diploma.
As exigências de tipicidade ao nível do ilícito de mera ordenação social estão satisfeitas, na medida em que se parte de um conceito determinado (técnico-científico) – substância psicoativa – e de uma delimitação que permite determinar objetivamente o comportamento contraordenacional. Estão em causa substâncias psicoativas não especificamente controladas ao abrigo de legislação própria e entre estas as substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer estado físico, ou um produto, planta cogumelo, ou parte dela, contendo substância com ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central, sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por disposições próprias. A questão já não será atinente à da tipicidade, quando se conclua que, apesar desta delimitação/restrição, são ainda abrangidas substâncias que afinal não provocam “danos irreversíveis para a saúde física e mental dos indivíduos” (uma ação direta ou indireta significativa sobre o sistema nervoso central).
Maria João Antunes