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Processo nº 84/96
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. J... propôs no Tribunal da Comarca de Lisboa, contra A... e M..., uma acção declarativa de condenação, com a forma sumária, na qual, em síntese, pediu que as rés fossem solidariamente condenadas a pagarem-lhe a indemnização de
300.000$00, acrescida dos juros legais, por ofensas às sua personalidade moral, pelos fundamentos que descreve. Na contestação, para além de arguirem a incompetência territorial do tribunal de Lisboa, o que veio posteriormente a resultar no envio dos autos para o Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, as rés impugnaram os factos alegados pelo autor e pediram a sua condenação como litigante de má fé, acusando-o de estar a fazer um 'uso impróprio e reprovável do processo', pedido a que o demandante se opôs. Realizada a audiência de julgamento, na qual, com uma excepção parcial, foram dados como não provados todos os factos quesitados, o autor veio alegar a
'inconstitucionalidade dos artºs. 342º. nº 1, do CC e 456º do CPC, numa certa interpretação que pode vir a ser adoptada pelo tribunal (...). O artº 342º, nº
1, tem sido interpretado no sentido de o mesmo não ser aplicável aos danos não patrimoniais, os quais têm de ser tidos em conta para efeitos de indemnização, mesmo que não sejam alegados nem provados (...). Se interpretado no sentido de o lesado ter de provar os danos não patrimoniais que sofreu e quer ver indemnizados, o que é impossível por pertencentes ao foro íntimo (além de que os mesmos são factos notórios cuja verificação resulta da experiência), tal artº é inconstitucional, por violação dos princípios da protecção da dignidade humana ( artº 1º), e da protecção da integridade moral e da honra (artºs 25º, nº 1, e
26º, nº 1), todos da Lei Fundamental. O Artº 456º tem sido interpretado no sentido de ser considerado apenas litigante de má fé aquele que, sendo parte processual, alegou factos que se veio a provar serem falsos, ou impugnou factos pessoais que ficaram provados (...). O artº em causa, se interpretado no sentido de autorizar a condenação como litigante de má sem ficar provada a falsidade dos factos alegados ou a veracidade dos factos impugnados, criaria um tipo sancionatório demasiado amplo e de conteúdo vago e indeterminado, feridente, nomeadamente, dos princípios da dignidade da pessoa humana (artº 1º), do Estado de direito democrático (artº
2º), da determinabilidade das leis (artº 18º, nº 3) e da culpa (artº 32º, nº 2), todos da Lei Básica. Assim se os artºs referidos forem interpretados no sentido exposto, os mesmos devem ser julgados inconstitucionais e recusar-se a sua aplicação, nessa mesma interpretação (...)'. Pela sentença de fls. 60, verso, a acção foi julgada improcedente por falta de prova dos factos constitutivos do direito alegado, nos termos do disposto no nº
1 do artigo 342º do Código Civil. Quanto ao pedido de condenação como litigante de má fé, em que as rés pretendiam a indemnização de 100.000$00, foi julgado parcialmente procedente. O tribunal entendeu que era 'claro ter o A. litigado de má fé, não podendo ignorar não corresponderem à verdade os factos por si alegados ..., tanto mais que os mesmos haviam já sido objecto de investigação no âmbito do processo disciplinar, que foi arquivado'. Assim, condenou-o no pagamento de uma multa de 20.000$00 e, quanto ao pedido de indemnização, considerando não dispor dos elementos necessários para a determinar, decidiu que havia 'que proceder nos termos do art. 457º nº 2 do CPC', mandando notificar as partes para se pronunciarem para o efeito. A sentença não tomou conhecimento das inconstitucionalidades alegadas. Respondendo, o autor manifestou-se pela improcedência do pedido de indemnização, essencialmente por, em seu entender, tal indemnização se destinar a reembolsar a parte das despesas que as autoras teriam suportado com o processo. Ora, litigando as rés com apoio judiciário, não realizaram qualquer despesa. Caso assim não fosse interpretado o nº 1 do artigo 457º em causa, seria inconstitucional, 'por violação, nomeadamente, dos princípios da dignidade da pessoa humana (artº 1º), da justiça e do Estado de direito democrático (artº
2º), e da protecção da propriedade privada (artº 62º, nº 1, da Lei Básica, à qual pertencem todos os artºs citados)', não podendo, portanto, ser aplicado.
2. Por requerimento de fls. 66, o autor veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, pedindo que sejam julgados inconstitucionais o nº 1 do artigo 342º do Código Civil e o artigo 456º do Código de Processo Civil, pelas razões atrás indicadas, acrescidas, quanto àquele, do 'princípio da proibição do excesso (artº 18º)'. Sustenta que a circunstância de a sentença não ter apreciado as inconstitucionalidades que suscitara, não obstante a sua oportuna alegação, demonstra que os mesmos preceitos foram interpretados de forma inconstitucional. Não refere a alegação de inconstitucionalidade do nº 1 do artigo 457º, também do Código de Processo Civil, razão pela qual está excluída do objecto do presente recurso. Por despacho de fls. 67, o juiz decidiu não atribuir qualquer indemnização às rés, por litigância de má fé do autor, por, não obstante terem suportado as despesas correspondentes aos honorários do advogado que constituiram, não haverem fornecido elementos para o respectivo cálculo (nºs 1 e 2 do artigo 457º do Código de Processo Civil). Igualmente por despacho de fls. 67 admitiu o recurso interposto para este Tribunal. Notificado para alegar, o autor veio sustentar e desenvolver a posição já atrás referida quanto à inconstitucionalidade das normas que impugna. Resumidamente, a inconstitucionalidade da interpretação perfilhada do nº 1 do artigo 342º do Código Civil decorreria de se ter considerado aplicável à prova de danos não patrimoniais, não obstante serem factos notórios, segundo 'a doutrina e a jurisprudência', que seriam, neste ponto, 'unânimes'. Quanto ao artigo 456º do Código de Processo Civil, a sua inconstitucionalidade decorreria de se terem interpretado os 'nºs 1 e 2 no sentido de dispensarem a prova dos factos materiais consubstanciadores da má fé'. As recorridas não contra-alegaram.
3. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. Cabe começar por apreciar a alegada inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 342º do Código Civil, quando interpretada no sentido de abranger os factos relativos a danos não patrimoniais, ou seja, quando interpretada no sentido de, nas acções destinadas a obter uma indemnização por danos não patrimoniais, caber ao autor o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que invoca. Diga-se desde já que não tem qualquer fundamento a alegação de inconstitucionalidade deste preceito por serem notórios ou impossíveis de provar os factos que sustentam o pedido de indemnização por danos não patrimoniais. Não pode o Tribunal Constitucional discutir se os factos alegados se devem ou não considerar como notórios, para o efeito de ser dispensado o autor de os provar, ou de serem havidos como de prova impossível; trata-se de interpretação de normas de direito ordinário, que lhe não compete discutir, mas que antes tem de tomar como objecto do pedido de apreciação de inconstitucionalidade, posto que hajam sido aplicadas com esse sentido (cfr., nomeadamente, o acórdão nº
187/95, Diário da República, II Série, de 22 de Junho de 95). Ora é manifesto que, não obstante não o ter afirmado expressamente, a sentença recorrida considerou aplicável o nº 1 do artigo 342º do Código Civil às acções em que se pretende uma indemnização por danos morais. Mas igualmente manifesto é que essa aplicação não fere, de modo nenhum, a Constituição, e nomeadamente as normas e princípios constitucionais indicados pelo recorrente. Em primeiro lugar, é ponto assente na doutrina que podem ser objecto de prova factos pertencentes ao foro íntimo dos litigantes (ver, por todos, ANTUNES VARELA, JOSÉ MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1995, pág. 407); solução contrária levaria, naturalmente, a que não fossem admissíveis acções judiciais em que estivessem em causa direitos com eles relacionados. Igualmente indiscutível é a possibilidade de, nestas acções, poder ocorrer uma situação de falta de prova relativamente a todos ou a algum dos factos relevantes para a decisão. Ora da Constituição não se consegue retirar nenhuma imposição de que deva existir, nem uma inversão do ónus da prova (que, a ser sistemática, ofenderia de forma intolerável a posição da parte contrária), nem uma dispensa de prova, o que impossibilitaria o exercício do direito de defesa dos demandados. Aliás, se o recorrente considera que a inconstitucionalidade decorre de lhe ser imposto um ónus impossível de cumprir, sempre se dirá que estas alternativas transfeririam essa impossibilidade para a parte contrária, com a agravante de, em regra, se traduzirem na necessidade de fazer prova de factos negativos e respeitantes a outra pessoa (ao autor, a quem bastaria alegá-los). Finalmente, não faz qualquer sentido falar-se aqui em factos notórios; esta afirmação só pode denotar confusão entre os factos alegados para justificar uma ofensa à personalidade moral e o sentimento generalizado de que a integridade moral das pessoas carece de tutela. Não se vê, pois, que possa de alguma forma lesar o princípio da protecção da dignidade da pessoa humana a circunstância de, para as acções em que está em causa um pedido de indemnização por danos não patrimoniais, valer a regra geral de repartição do ónus da prova, que, no fundo, assenta na ideia de que a cada parte incumbe o encargo de demonstrar os factos que lhe aproveitam. O mesma se diga quanto à alegada violação 'da protecção da integridade moral e da honra'. Finalmente, quanto à invocada violação do ' princípio da proibição do excesso', também não é de forma alguma posto em causa pela imposição ao autor do ónus de provar os factos constitutivos do direito à indemnização que apretende. Regime diverso, repita-se, é que seria desproporcionado e inadmissível.
4. Quanto à eventual inconstitucionalidade do artigo 456º do Código de Processo Civil, 'interpretado por forma a não considerar ser necessário provar-se a falsidade dos factos alegados pelo A. para se concluir pela litigância de má fé' incumbe, em primeiro lugar, relembrar que a sentença recorrida afirmou que a condenação como litigância de má exigia, como pressuposto, o dolo do agente
(cfr. fls.63). Não se pode, pois, sustentar ter sido adoptada uma interpretação inconstitucional do preceito por violação do princípio da culpa, que o recorrente filia no nº 2 do artigo 32º da Constituição. Esta evidência torna desnecessário indagar da aplicabilidade deste preceito constitucional a esta sanção, manifestamente não penal. Em segundo lugar, entendeu a sentença que, ' na base da litigância de mé fé está a consciência de não corresponderem à verdade os factos alegados (...)', o que, no caso, como julgou, se verificava. Implicitamente não considerou necessário que se provasse a falsidade desses factos, autonomamente. Corresponderá essa interpretação do nº 2 do artigo 456º citado à que o recorrente considera contrária à Constituição, por violação 'dos princípios da dignidade da pessoa humana (artº 1º), do Estado de Direito democrático (art. 2º) e da determinabilidade das leis (artº 18º, nº 3)'? Seguramente que não. A condenação por litigância de má fé exprime uma censura – que leva à aplicação de uma sanção – pelo mau uso da máquina da justiça; por isso pode mesmo ser aplicada à parte vencedora, como é sabido. Ao considerar preenchidos os pressupostos que o nº 2 do artigo 456º do Código de Processo Civil define para o efeito com o conhecimento de que os factos que alegou eram contrários à verdade, a sentença deu como assente a sua não ocorrência e o conhecimento, pelo autor, dessa não ocorrência – se se quiser, a falsidade (dolosa) das suas alegações. Não aplicou, pois, a norma com o sentido que o recorrente acusa de inconstitucional.
Nestes termos, decide-se: a) Julgar não inconstitucional a norma constante do nº 1 do artigo 342º do Código Civil, quando interpretada no sentido de ser aplicável às acções em que se pede uma indemnização por danos não patrimoniais, negando, nesta parte, provimento ao recurso; b) Não tomar conhecimento da alegada inconstitucionalidade da norma constante do artigo 456º do Código de Processo Civil, enquanto interpretada no sentido de autorizar a condenação como litigante de má fé sem ficar provada a falsidade dos factos alegados. Lisboa, 23 de Junho de 1999- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida