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Proc. nº 174/2004
2ª Secção Rel.: Cons.ª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de reclamação vindos do Tribunal da Comarca de Ponta Delgada, em que figura como reclamante A., e como reclamada B., a reclamante interpôs recurso de constitucionalidade da decisão que havia julgado procedente a excepção peremptória de pagamento da dívida peticionada, através de requerimento com o seguinte teor:
A., autora nos autos de Acção Especial para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias à margem melhor identificados, Não se podendo, e muito menos devendo conformar com o despacho proferido a fls.- dos autos, Vem do mesmo INTERPÔR RECURSO para o Tribunal Constitucional, a fim de que esse Tribunal declare a inconstitucionalidade da norma tirada pelo tribunal “a quo” em resultado da sua surpreendente aplicação do alegadamente disposto na segunda parte do art. 664° e 264° nº 3 do C.P.Civil ao menos na interpretação que afirma que não é necessário facultar à contra-parte, aqui autora, o pleno exercício do contraditório, quer em face da surpreendente e inesperada factualidade que o próprio tribunal entendeu incluir na “relação da matéria de facto provada” - sem que tal específica factualidade tivesse sido objecto de articulação por qualquer das partes litigantes -, quer em face da surpreendente e nunca antes anunciada qualificação jurídica que veio a ser construída e tirada dessa nova e inesperada, porque nunca antes alegada, factualidade. Por violação, entre outros, dos princípios Constitucionais da Confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito, da Proporcionalidade, da Equidade, da Igualdade e ainda dos princípios Constitucionais, do Acesso à Justiça, da Igualdade de Armas entre os litigantes e particularmente do Princípio Constitucional da Proibição da Indefesa contidos, entre outros, nos arts. 2°, 3° n° 3, 9°, 13°, 17º, 18° e 20° da Constituição da República Portuguesa. A Recorrente suscitou estas questões de inconstitucionalidade logo após ter tido conhecimento da sentença onde tais vícios foram plasmados, tendo então invocado os mesmos pela única via processualmente adequada, ou seja, através de Reclamação deduzida a fls. dos autos - arts. 70° n° 1, al. b), 72° e 75°-A, da Lei n° 28/82 de 15 de Novembro - TERMOS EM QUE E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXA. DOUTAMENTE SUPRIRÁ, SE REQUER A JUNÇÃO DESTE AOS AUTOS PARA TODOS OS DEVIDOS E LEGAIS EFEITOS.
O recurso de constitucionalidade não foi admitido por despacho de 29 de Janeiro de 2004, nos seguintes termos:
Não se conformando com a decisão que indeferiu a arguição de nulidades da sentença vem o autor interpor recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. O recurso em apreço tem por fundamento o previsto na al. b) do artigo 70° da Lei n.º 28/82 de 15/11 - aplicação de norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo. A questão foi efectivamente suscitada no requerimento de reclamação da sentença de que não cabe recurso ordinário. Tem sido jurisprudência uniforme e reiterada do Tribunal Constitucional que o pressuposto da admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do artigo 70° que exige que a questão da inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, enquanto o poder jurisdicional não se encontra esgotado, o que não é o caso dos autos, pois a questão foi suscitada em reclamação, por alegadas nulidades da sentença. Por ser assim, ao abrigo do disposto no artigo 76° n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 28/82 não admito o recurso ora interposto.
2. A., vem agora reclamar do despacho de 29 de Janeiro de 2004, sustentando o seguinte:
A., autora e Reclamante nos autos à margem melhor identificados, Não se podendo conformar com o despacho proferido a fls. 96, o qual não admitiu o Recurso interposto para este Tribunal Superior, Vem do mesmo deduzir RECLAMAÇÃO, Nos termos e com os seguintes fundamentos:
1° O despacho reclamado proferido pelo Tribunal “a quo” reconhece que:
“O recurso em apreço tem por fundamento o previsto na al. b) da Lei nº 28/82 de
15 de Novembro - aplicação de norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo. A questão foi efectivamente suscitada no requerimento de reclamação da sentença de que não cabe recurso ordinário.”.
2° No entanto fazendo alusão a jurisprudência deste Tribunal Superior que não é aplicável ao caso dos autos, mas sim para outros casos e situações..., acabou por, a nosso ver contraditoriamente, não admitir o recurso interposto. Vejamos o que evidenciam os autos,
3° A sociedade A., estando impedida de interpôr recurso ordinário da sentença proferida nos autos, em razão do valor do respectivo processo ser inferior à alçada do Tribunal de lª Instância - art. 678° n° 1 do C.P.Civil -,
4° Viu-se constrangida a deduzir reclamação contra os diversos vícios e nulidades de que tal Sentença padece, conforme tudo melhor se alcança do respectivo articulado deduzido pela A./Reclamante, o qual se encontra a fls. dos autos e da qual infra se requererá a passagem de certidão para instrução da presente reclamação, caso não se entenda remeter os próprios autos para o Tribunal Constitucional.
5° Aí e para além do mais alegado e invocado, foi suscitada a seguinte questão de inconstitucionalidade:
“A introdução na relação da matéria de facto provada de tais factos - os constantes da factualidade inserida nos citados nºs 11, 12 e 13 – constitui uma verdadeira e inesperada “decisão/surpresa” para a autora. Tal tipo de “decisões/surpresa” são absolutamente proibidas pelo disposto no art. 3° n° 3 do C.P.Civil. E são igualmente proibidas pelo princípio Constitucional que estipula a
“proibição da indefesa”, tal como vem consagrado na aplicação conjugada dos arts. 2° e 20° da Constituição. Daí que é manifesto que a norma tirada pelo Tribunal da aplicação do disposto na segunda parte do art. 664° e 264° n° 3 do C.P.Civil, se for o caso, e na medida em que não foi facultado à autora o pleno exercício do contraditório quer em face dessa surpreendente e inesperada factualidade, quer em face da surpreendente qualificação jurídica que veio a ser obtida em face dessa nova factual idade. Padece do vício de inconstitucionalidade que aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.” Concluindo:
“b) Seja declarado que a norma tirada pelo Tribunal em resultado da aplicação do disposto na segunda parte do art. 664° e 264° n° 3 do C.P.Civil, se for o caso, e na medida em que não foi facultado à autora o pleno exercício do contraditório quer em face dessa surpreendente e inesperada factualidade, quer em face da surpreendente qualificação jurídica que veio a ser obtida em face dessa nova factualidade, padece do vício de inconstitucionalidade que aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.” Conforme tudo melhor se alcança de fls.- dos autos.
6° No Acórdão n° 273/89 deste Tribunal Constitucional de 23/02/1989, publicado no D.R. II Série de 8/06/89, a págs. 5638-95, decidiu-se:
“A reclamação prevista neste artigo 688° constitui meio idóneo para suscitar uma questão de inconstitucionalidade” .
7° No mesmo sentido escreveu-se no douto Acórdão deste Tribunal Constitucional, proferido aos 23/09/1998 nos autos que sob o n° 284/97, correram seus termos pela 2ª secção:
“A inconstitucionalidade de uma norma jurídica, em regra só se suscita durante o processo, quando tal se faz antes de proferida decisão sobre a matéria a que respeita essa questão de inconstitucionalidade. Só assim não será, em casos de todo anómalos e excepcionais, em que o recorrente não teve oportunidade processual de suscitar essa questão antes de proferida a decisão de que recorre.”
8° Também aqui face à imprevisibilidade do Tribunal “a quo” fazer integrar na relação da matéria de facto provada, factos que não constavam da factualidade alegada pelas partes, quer na Petição Inicial da autora, quer na Contestação da R., se deve entender que a respectiva decisão é uma “decisão surpresa”.
9° Por isso há que reconhecer que, nas especiais circunstâncias do processo, não era razoável exigir à Reclamante o ónus de antecipadamente à dita decisão invocar a pertinente inconstitucionalidade.
10° A reclamante não podia, nem tinha obrigação de adivinhar que o Tribunal “a quo” fosse introduzir na relação da matéria de facto provada, factualidade que em concreto e nos respectivos articulados não foi alegada, nem por A., nem por R. - se a A./Reclamante fosse “adivinha” e pudesse ter adivinhado o desfecho do presente processo, nem tinha instaurado o mesmo e sobretudo não tinha vendido à R. os produtos que lhe entregou ... -
11° A este propósito parece-nos até que a A./Reclamante actuou como devia, deduzindo a respectiva reclamação e invocando nessa peça processual a respectiva inconstitucionalidade por forma a permitir que o Tribunal “a quo”, querendo, dela conhecesse.
12° E o certo é que, apesar de o Tribunal “a quo”, em concreto nada ter dito sobre a especifica questão da inconstitucionalidade que ao seu arbítrio foi colocada, pronunciou-se, indeferindo, sobre o alegado vício da “decisão surpresa” , conforme também melhor se alcança dos autos.
13° Mas mesmo que assim não fosse, parece à A./Reclamante que a alegação e invocação da respectiva inconstitucionalidade até poderia ser feita no respectivo requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, como, aliás, foi feito:
“Vem do mesmo INTERPÔR RECURSO para o Tribunal Constitucional, a fim de que esse Tribunal declare a inconstitucionalidade da norma tirada pelo tribunal “a quo” em resultado da sua surpreendente aplicação do alegadamente disposto na segunda parte do art. 664° e 264° nº 3 do C.P.Civil ao menos na interpretação que afirma que não é necessário facultar à contra-parte, aqui A., o pleno exercício do contraditório, quer em face da surpreendente e inesperada factualidade que o próprio tribunal entendeu incluir na “relação da matéria de facto provada” - sem que tal específica factualidade tivesse sido objecto de articulação por qualquer das partes litigantes -, quer em face da surpreendente e nunca antes anunciada qualificação jurídica que veio a ser construída e tirada dessa nova e inesperada, porque nunca antes alegada, factualidade. Por violação, entre outros, dos princípios Constitucionais da Confiança, insito no princípio do Estado de Direito, da Proporcionalidade, da Equidade, da Igualdade, e ainda dos princípios Constitucionais, do Acesso à Justiça, da Igualdade de Armas entre os litigantes e particularmente do Princípio Constitucional da Proibição da lndefesa contidos entre outros, nos arts. 2°, 3° n° 3, 9°, 13°, 17°, 18° e 20° da Constituição da República Portuguesa. A Recorrente suscitou estas questões de inconstitucionalidade logo após ter tido conhecimento da sentença onde tais vícios foram plasmados, tendo então invocado os mesmos pela única via processualmente adequada, ou seja, através de Reclamação deduzida a fls. dos autos - arts. 70° n° 1, al. b) ,72° e 75°A, da Lei n° 28/82 de 15 de Novembro -”
14° Pois, “no caso em apreciação considerando que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça configura uma autêntica “decisão surpresa”, o recorrente tanto poderia ter invocado a questão de inconstitucionalidade no pedido de aclaração como no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. De qualquer modo encontrava-se já esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido. Mas o recurso de constitucionalidade teria de ser admitido precisamente porque o recorrente não teve oportunidade processual para, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, suscitar a questão” - Ac. do T.C. n° 74/2000 (proc. n° 790/99 da 1ª Secção), in BMJ, n° 494, pag. 21-
15° Por tudo isto e sem prejuízo de àquela sentença proferida pelo Tribunal “a quo” ser já aplicável a nova redacção dada ao art. 669° do C.P.Civil, o que significa que o incidente da reforma da sentença tem uma configuração processual de “ quase recurso”,
16° O certo é que a Reclamante/Recorrente suscitou a dita questão de inconstitucionalidade no único momento processual em que o podia ter feito quer se entenda que era o do pedido da reforma da sentença, quer se entenda que era o da interposição de recurso para este Tribunal Constitucional - após a ocorrência nos autos da invocada “questão de inconstitucionalidade”.
17° E isto por forma a ser, finalmente, conhecida e, como se espera, declarada a inconstitucionalidade da atacada norma legal, conforme resulta da aplicação conjugada do disposto nos nºs 2, 3, 4 e 6 do art. 70° da Lei n° 28/82, na sua actual redacção.
18° Por tudo isso, não se conforma a Reclamante/Recorrente, com o despacho do Mmo Juiz do Tribunal “a quo” que decidiu não lhe admitir o recurso para este Alto Tribunal.
19° Repisando a Reclamante/Recorrente que nos termos da aplicação conjugada do disposto nos nºs 1, al. b), 2, 3, 4 e 6 do art. 70° e do art. 75°-A da Lei nº
28/82, devendo o respectivo Recurso interposto pela Reclamante/Recorrente ser devidamente admitido nos termos do disposto no art. 76°, 77° e 78º da dita Lei n° 28/82 de 15 de Novembro - “vidé gratiae” neste sentido, para além dos supra citados, os Ac. n° 273/89 do Trib. Constitucional de 23/02/89: DR, II Série, de
8/06/89, pág. 5638 a 5695; Ac. n° 232/94, in Acs. do Tribunal Constitucional, vol. 27°, pág. 1119; Ac. n.º 43/99/T. Const. D.R. - II Série, pág.4494; Ac. n.º
559/98, Acds do Tribunal Constitucional, Ac. n.º 74/2000, de 10 de Fevereiro, in BMJ, n° 490, Março 2000 -
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE SER ADMITIDO O RECURSO INTERPOSTO PELA RECLAMANTE/RECORRENTE, PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, ORDENANDO-SE A IMEDIATA SUBIDA DO MESMO, COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.
O Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:
A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que as normas questionadas não foram aplicadas com o sentido, alegadamente violador dos princípios dispositivo e do contraditório, invocado pela recorrente. Na verdade, os pontos da matéria de facto postos em crise pela reclamante estribam-se “em documentos juntos com a contestação de que a autora teve conhecimento” o que bem revela que a decisão impugnada não utilizou critério normativo violador dos ditos princípios constitucionais.
Cumpre apreciar.
3. A reclamante pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional no recurso não admitido uma interpretação dos artigos 664º e 264º, nº 3, do Código de Processo Civil, segundo a qual “não é necessário facultar à contra-parte
(...) o pleno exercício do contraditório, quer em face de surpreendente e inesperada factualidade”, incluída na relação dos factos provados, “quer em face de surpreendente e nunca antes anunciada qualificação jurídica (...) construída e tirada dessa nova e inesperada, porque nunca antes alegada, factualidade”. A reclamante faz assentar o carácter surpreendente da decisão na relevância atribuída a documentos juntos aos autos pela então ré e na circunstância de a dívida ter sido considerada extinta por pagamento, com base nesses documentos. Ora, o Tribunal Judicial de Ponta Delgada sublinhou expressamente que os documentos juntos pela então ré foram notificados à autora e que a excepção peremptória de pagamento foi alegada pela ré, tendo a autora, reclamante nos presentes autos, sido devidamente notificada quer da contestação quer dos documentos juntos (cf. fls. 48 e 48, verso). Verifica-se, portanto, que a decisão da qual a reclamante interpôs o recurso de constitucionalidade, que não foi admitido, não fez aplicação da dimensão normativa impugnada. Com efeito, de acordo com a decisão recorrida, o contraditório foi plenamente assegurado, já que a autora, aqui reclamante, foi informada por via da aludida notificação, de todos os elementos que fundamentaram a decisão que veio a ser tomada. Não se verificou, assim, a aplicação dos critérios normativos que a reclamante invoca. Nessa medida, qualquer juízo que o Tribunal Constitucional viesse a formular sobre a questão não teria a virtualidade de alterar a decisão recorrida, sendo desse modo inútil. O recurso não podia, assim, ser admitido (com fundamento diverso do despacho reclamado, mas absolutamente evidente em face dos elementos constantes dos autos), pelo que a presente reclamação se afigura improcedente.
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 23 de Março de 2004
Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos