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Proc. n.º 1/04
1ª Secção Relator: Cons. Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A. recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação de Évora de 18 de Novembro de 2003 que desatendeu a reclamação que a recorrente formulara contra o acórdão de 2 de Junho de 2003 do mesmo Tribunal que negara provimento aos recursos interpostos pela assistente ora recorrente. O requerimento de interposição do recurso é do seguinte teor:
1. O recurso ora interposto tem como fundamento a inconstitucionalidade dos Arts. 127º e 340º do C.P.P., na interpretação que lhes foi dada pelo Tribunal da Relação de Évora, em violação dos Arts. 20º, nº1 e particularmente, 32º, ns
1, 5 e 7 da Constituição da República Portuguesa.
2. O Acórdão recorrido não se pronuncia sobre uma questão levantada pela recorrente, consubstanciando, portanto, uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do Art. 379º, nº1, al. c) ex vi do Art. 425º, nº4, ambos do C.P.P., nulidade essa, que oportunamente arguida pela recorrente não logrou sanação, pelo que se está, na prática, diante de uma coarctação do direito ao recurso, constitucionalmente consagrado no n.º 1 do Art. 32º da Lei Fundamental, bem como no n.º 1 do Art. 20º.
3. Por outro lado, conforme invocado, na ocasião, pela ora recorrente, não pode, o Tribunal a quo na interpretação que faz do Art. 127º do C.P.P., substituir critérios científicos que se prendem com velocidade/distância/tempo, por critérios meramente subjectivos e contingentes, negando assim à assistente o direito à prova e ao contraditório, violando dessa forma o nº5 do Art. 32º da C.R.P..
4. Entende ainda a recorrente que a interpretação feita pelo Acórdão recorrido do Art. 340º do C.P.P., vem colidir com o Princípio da Igualdade de Armas, que mais não é do que o desenvolvimento do Princípio da Igualdade constitucionalmente previsto no Art. 13º, estruturante de todo o sistema jurídico, ao recusar os requerimentos interlocutórios por aquela apresentados, os quais eram essenciais para a descoberta da verdade material, violando deste modo o nº7 do Art.32º da C.R.P . Termos em que, com o Mui Douto suprimento de V. Ex.as. se requer seja considerado interposto o presente recurso.
O recurso foi admitido no Tribunal recorrido por despacho do seguinte teor:
Embora com dúvidas do recurso ser admissível ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 1 do art. 70º da Lei 28/82 de 15 de Novembro (pois a questão de inconstitucionalidade apenas foi invocada ao ser arguida a nulidade do Acórdão desta Relação), admito o recurso interposto pela assistente, o qual sobe imediatamente, nos próprios autos e tem efeito suspensivo.
2. Porém, neste Tribunal foi lavrada decisão sumária – ao abrigo do disposto no artigo 78º-A da LTC – a não conhecer do recurso. A decisão tem o seguinte fundamento:
O recurso é interposto sob invocação expressa da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, o que exige que a questão de inconstitucionalidade haja sido anteriormente suscitada no processo, por forma a que o tribunal recorrido a devesse conhecer. Tal, porém, não acontece no presente caso. Na verdade, a questão de inconstitucionalidade apenas foi suscitada na reclamação formulada pela recorrente contra o acórdão de 2 de Junho de 2003; a Relação recorrida recusou-se a conhecer da questão por não lhe caber
“pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade só agora invocada”. Deve, assim, concluir-se que a decisão recorrida não conheceu da questão de inconstitucionalidade em virtude de tal questão não ter sido suscitada, com pertinência processual, perante a Relação de Évora. Não se verifica, pois, um pressuposto essencial do presente recurso, previsto na citada alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC.
3. É desta decisão que reclama a recorrente nos seguintes termos:
A decisão de rejeição do recurso assenta na consideração de a recorrente não ter suscitado a questão da inconstitucionalidade «durante o processo», apenas o tendo feito pela primeira vez na arguição (datada de 23 de Junho de 2003) da nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido a 2 de Junho de
2003. Todavia, falece razão à decisão tomada nestes precisos termos. Com efeito, a interpretação dada aos artigos 127.º e 340.º do CPP pelo Tribunal da Relação de Évora no Acórdão de 2 de Junho de 2003, objecto de reclamação de nulidade, foi totalmente imprevisível, não podendo razoavelmente o reclamante contar com a sua aplicação. Na verdade, tendo a decisão do Tribunal da Relação interpretado de modo tão particularmente inesperado tais normas do CPP, não era exigível à reclamante prever que essa interpretação viria a ser possível e viesse mesmo a ser adoptada no Acórdão que negou provimento aos três recursos previamente intentados pela recorrente. O uso inesperado e insólito de uma tal interpretação daquelas disposições legais levou a que a reclamante não tenha podido, em momento anterior ao do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, representar a possibilidade de aplicação das normas com tal interpretação. Assim, não se mostrava adequado exigir-lhe, no caso concreto, um qualquer juízo de prognose relativo a essa aplicação, em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando a questão da inconstitucionalidade. Só perante a decisão proferida em sede do Acórdão de 2 de Junho de 2003 se viu a reclamante na possibilidade de arguir a inconstitucionalidade em causa, tendo-o feito logo no primeiro momento que se lhe impunha fazê-lo, ou seja, no requerimento de arguição da nulidade desse mesmo Acórdão. Tal é perfeitamente compreensível, uma vez que a interpretação dos preceitos do CPP, supra referidos, foi efectuada pela primeira vez nos presentes autos, pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora no douto Acórdão, cuja nulidade se arguiu. De resto, é posição jurisprudencial, assumida pelo Tribunal Constitucional, de que existem certos casos excepcionais, em que o interessado, por não ter disposto de oportunidade processual para levantar a questão antes de proferida a decisão, o pode fazer após a sua prolacção. Isso mesmo sucedeu no Acórdão no
61/92 (em que foi Relator o Sr. Dr. Juiz Conselheiro Monteiro Diniz); no Ac. nº
181/96 (cujo Relator foi o Sr. Dr. Juiz Conselheiro Guilherme da Fonseca e ainda no Ac. nº 596/96 (em que foi Relator o Sr. Dr. Juiz Conselheiro Tavares da Costa), entre outros. Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, conhecer-se do objecto do recurso.
4. O representante do Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer em que sustenta que a reclamação é “manifestamente improcedente”.
5. Apura-se que na presente reclamação a recorrente não contesta o que aliás
é óbvio: não foi por si suscitada durante o processo qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. O que pretende é colocar-se ao abrigo dos casos em que excepcionalmente o Tribunal tem admitido conhecer da norma impugnada, mesmo sem uma adequada suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade normativa.
É assim desnecessário insistir nesta matéria, afigurando-se, no entanto, oportuno responder à reclamação a propósito dos referidos casos em que, a título excepcional, se tem admitido conhecer da questão sem essa suscitação atempada.
E aqui deve começar-se por apontar à reclamação uma deficiência grave: é que, apesar de a recorrente afirmar repetidamente, por diversas formas, que «a interpretação dada aos artigos 127.º e 340.º do Código de Processo Penal pelo Tribunal da Relação de Évora no Acórdão de 2 de Junho de 2003, objecto de reclamação de nulidade, foi totalmente imprevisível, não podendo razoavelmente o reclamante contar com a sua aplicação», o certo é que não explica por que razão essa interpretação (que aliás não chega a concretizar) é surpreendente e imprevisível.
É, no entanto, de exigir que o invocado elemento surpresa decorra de regras de interpretação e aplicação lógicas e, por isso, se impõe que sobre aquele que alega essa circunstância recaia o ónus de explicitar os factores, objectivos, que possam conduzir o tribunal a aceitar uma tal conclusão. É assim insuficiente afirmar, de modo conclusivo, que a aplicação da norma foi inesperada ou surpreendente, se não se aponta com o necessário rigor quer a formulação da interpretação normativa usada, quer a razão pela qual, em atenção à fase processual verificada, foi impossível ao interessado suscitar atempadamente a questão. Na verdade, a jurisprudência do Tribunal tem vincado que «só em casos excepcionais e anómalos» em que o recorrente não dispôs processualmente da possibilidade da suscitação atempada da questão é que será «admissível» a arguição em momento subsequente (Acórdãos 62/85, 90/85 e 160/94 in AcTC, 5º vol., p. 497 e 663 e DR, II, de 28MAI94) o que faz recair sobre o recorrente o dito ónus de expor, com a devida concretização, as circunstâncias pelas quais lhe foi impossível suscitar a questão de forma adequada.
A já aludida deficiência agrava-se irremediavelmente quando o recorrente não concretiza, como ocorre no caso presente, qual a interpretação da norma acusada de inconstitucional que o tribunal recorrido terá usado. Neste caso, não é fornecido ao Tribunal qualquer elemento do qual possa sequer extrair a conclusão de que uma determinada norma foi aplicada na decisão sob recurso, antes de poder concluir que essa interpretação constitui objectivamente um dado processual inesperado e surpreendente.
Nada mais será necessário adiantar para concluir pela improcedência da reclamação.
6. Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação do despacho de não admissão do recurso, com custas pela reclamante. Taxa de justiça: 20 UC.
Lisboa, 30 de Março de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos