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Proc. nº 393/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. R, Lda. interpôs perante o Supremo Tribunal Administrativo recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Leiria que julgou improcedente o recurso contencioso do despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que havia indeferido o pedido de pagamento em prestações mensais de dívidas provenientes de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), relativas aos anos de 1992 a 1994, e de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), relativa ao ano de 1992.
A decisão de improcedência do recurso, proferida pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância de Leiria (a fls. 98 e seguintes dos presentes autos), fundamentou-se, quanto às dívidas provenientes de IVA, no artigo 279º, nº 2, do Código de Processo Tributário (que proíbe o pagamento em prestações de certas dívidas tributárias), e, quanto às dívidas provenientes de IRC, na extemporaneidade do pedido, face ao disposto no artigo 285º, nº 1, alínea a), do mesmo Código (que fixa em 20 dias a contar da citação o prazo para deduzir oposição, e por isso, o prazo para requerer o pagamento em prestações).
Nas alegações que apresentou no Supremo Tribunal Administrativo, a recorrente sustentou, em síntese, que:
– o prazo para requerer o pagamento em prestações, no âmbito da execução fiscal, é o prazo para deduzir oposição, nos termos do artigo 273º, nº
2, do Código de Processo Tributário;
– uma vez que tal prazo tem natureza judicial, o pedido de pagamento em prestações foi apresentado pela recorrente dentro do prazo de vinte dias após a notificação, pelo que 'a decisão do SEAF que indeferiu o pedido de pagamento em prestações do IRC, por ser intempestivo, violou e interpretou erradamente o nº 2 do artigo 273º do CPT';
– a norma em que se fundamentou a decisão recorrida para indeferir o pagamento em prestações das dívidas provenientes de IVA (a norma do artigo 279º, nº 2, do Código de Processo Tributário, que proíbe o pagamento em prestações do imposto repercutido a terceiros), é inconstitucional, por violar a norma de autorização legislativa, no caso, o nº 5 do artigo 2º da Lei nº 37/90, de 10 de Agosto.
A recorrente R, Lda. formulou então as seguintes conclusões:
'A) – Dispõe o nº 2 do artigo 273º do CPT que, até ao termo do prazo de oposição
à execução, pode o executado, se ainda não o tiver feito nos termos das leis tributárias, requerer o pagamento em prestações. B) – O que significa que o prazo para requerer o pagamento em prestações é o mesmo prazo para deduzir oposição. C) – Sendo o prazo referido de natureza judicial, significa que não se contam sábados, domingos e feriados. D) – Tendo a recorrente sido citada na execução fiscal do IRC em 31-5-1996 e requerido o pagamento em prestações em 28-6-96, significa que nessa data só tinham decorrido dezoito dias, pelo que o prazo de pedido de pagamento em prestações para o IRC, foi respeitado. E) – Dispõe o nº 5 do artigo 2º da L 37/90 que a execução fiscal será alterada com a criação duma fase prévia destinada a regularizar o pagamento da dívida exequenda. F) – A fase prévia não pode deixar de se entender como a possibilidade do pagamento em prestações da dívida, após a citação e antes da penhora. G) – Fase prévia que o legislador autorizante não discrimina entre dívidas repercutidas a terceiros e as não repercutidas, pelo que não existe fundamento para a discriminação introduzida no nº 2 do artigo 279º do CPT. H) – Até porque não existe uma relação de simultaneidade obrigatória e imperativa entre a liquidação do IVA e o respectivo recebimento por parte do sujeito passivo. I) – Não existe razão que justifique que se apelide o sujeito passivo como um exclusivo depósito do dinheiro dos contribuintes e consequentemente considerar a faculdade do pagamento em prestações do IVA como forma de financiamento das empresas. J) – A interpretação conferida ao nº 2 do artigo 279º do CPT viola a lei de autorização e é por conseguinte inconstitucional. L) – Por último, o despacho do SEAF não contendo nem a menção da delegação de competências nem a publicação viola o artigo 37º do CPA e a alínea c) do artigo
280º do CPT. M) – A douta decisão recorrida fez errada interpretação e aplicação do nº 2 do artigo 273º do CPT, fez uma interpretação e uma aplicação do nº 2 do artigo 279º do CPT em violação do nº 5 do artigo 2º da L 37/90 e consequentemente violou a Constituição, mais concretamente o nº 2 do artigo 168º.'
A Fazenda Pública não contra-alegou.
2. Por acórdão de 12 de Abril de 2000 (fls. 131 e seguintes), o Supremo Tribunal Administrativo concedeu provimento parcial ao recurso, revogando a decisão recorrida e anulando o despacho impugnado, no que diz respeito ao pedido de pagamento em prestações da dívida proveniente de IRC, por considerar que tal pedido foi apresentado dentro do prazo fixado na lei.
Quanto ao pedido de pagamento em prestações das dívidas provenientes de IVA, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, fundamentando assim a sua decisão:
'Já quanto à invocada inconstitucionalidade do art. 279º/2 do CPT (na redacção anterior à vigência do art. único do DL 202/97, de 8.8), relativo à ressalva do pagamento em prestações para as dívidas por falta de entrega do IVA, pretensamente decorrente da infracção da lei de autorização legislativa ao abrigo da qual se elaborou o CPT (Lei nº 37/90, de 10.8), a razão é da decisão recorrida. Embora o nº 5 do art. 2º desta lei aponte para a criação de uma fase prévia destinada a regularizar o pagamento da dívida exequenda, tal injunção, aposta numa lei de autorização legislativa, que apenas deve definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização (art. 168º/2 da CR), não exclui a liberdade de conformação do legislador para estabelecer restrições de admissibilidade do pagamento em prestações em função de um fundamento material bastante para a diferenciação entre os vários tipos de dívidas tributárias. E esse fundamento diferenciador para as dívidas por impostos a reter na fonte ou legalmente repercutível a terceiros, está precisamente na qualidade de substituta tributária assumida pela devedora, que dispõe para si de montantes de impostos de que nem sequer é originária devedora (caso da retenção na fonte), ou na situação da devedora do IVA, que dispõe de montantes deste imposto após o ter repercutido (ou podido repercutir) a terceiros agentes ou consumidores finais.
É sempre um apossamento ilícito de quantias do Estado, só facultado pela via da acção tributária, que merecerá tratamento diferenciador por parte do legislador e que a autorização legislativa não impedirá que se traduza na inadmissibilidade do pagamento em prestações na fase prévia da execução fiscal. Assim, não enferma o nº 2 do art. 279º do CPT da alegada inconstitucionalidade por violação da autorização legislativa da Lei nº 37/90, de 10.8. Nessa parte, consequentemente, desatende-se a pretensão da Rte.'
3. Notificada do referido acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, dele veio R, Lda. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, para apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 279º do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, afirmando no requerimento de interposição do recurso (fls. 136) que a questão de inconstitucionalidade foi invocada quer no recurso interposto para o Tribunal Tributário de 1ª Instância quer nas alegações de recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo. O recurso foi admitido por despacho de fls. 137.
4. No Tribunal Constitucional, foi determinada a notificação da recorrente, nos termos ao artigo 75º-A, nº 6, da LTC, para completar o requerimento de interposição do recurso, indicando:
– qual o sentido atribuído na decisão recorrida à norma do artigo
279º, nº 2, do Código de Processo Tributário que considera inconstitucional e que pretende que este Tribunal aprecie;
– qual a norma ou princípio constitucional que considera violado.
A recorrente respondeu (requerimento de fls. 141):
'– O sentido atribuído, na douta decisão recorrida, ao nº 2 do artigo 279º do Código de Processo Tributário, foi o da exclusão da aplicação do regime previsto no referido normativo legal (pagamento em prestações no âmbito da execução fiscal) às dívidas por falta de entrega do imposto sobre o valor acrescentado, sentido que se pretende que este Tribunal aprecie;
– As normas que se consideram violadas são o nº 2 do artigo 5º da Lei 37/90 de
10/08 (Lei da autorização legislativa do Código do Processo Tributário) e o nº 2 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa.'
5. Proferido despacho para a produção de alegações, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
'A) – Dispõe o nº 5 do artigo 2º da L 37/90 de 10.8, que a execução fiscal será alterada com a criação duma fase prévia destinada a regularizar o pagamento da dívida exequenda. B) – A fase prévia não pode deixar de se entender como a possibilidade do pagamento em prestações da dívida, após a citação e antes da penhora. C) – Fase prévia que o legislador autorizante não discrimina entre dívidas repercutidas ou não a terceiros e retidas ou não na fonte, pelo que não existe fundamento para a diferenciação introduzida no nº 2 do artigo 279º do Código do Processo Tributário. D) – Por um lado, constituindo o facto gerador do imposto como a operação económica de transmissão dum bem ou prestação do serviço, abstraindo-se da componente financeira conexa com o facto gerador, a falta de pagamento do imposto por parte do sujeito passivo não significa que se esteja a apropriar do próprio imposto. E) – Não existe razão que justifique que se apelide sem mais, o sujeito passivo como um exclusivo depositário do dinheiro dos contribuintes e consequentemente considerar a faculdade do pagamento em prestações do IVA como forma de financiamento das empresas. F) – Por outro lado, os demais institutos estruturantes do sistema fiscal como são as normas de caducidade e de prescrição do imposto, não fazem qualquer diferenciação entre impostos repercutidos ou não a terceiros. G) – O que significa que para o legislador fiscal os impostos repercutidos a terceiros não são um princípio ou um dogma absolutos. H) – A regulamentação consagrada no nº 2 do artigo 279º do Código de Processo Tributário viola o nº 5 do artigo 2º da L 37/90 de 10.8 e indirectamente o nº 2 do artigo 168º da Constituição da República. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser declarado inconstitucional a redacção do nº 2 do artigo 279º do Código do Processo Tributário e em consequência deve ser reformulada nessa parte a douta decisão recorrida.'
A Fazenda Pública nada disse.
II
6. O presente recurso tem como objecto a apreciação da conformidade constitucional da norma constante do nº 2 do artigo 279º do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril.
É o seguinte o teor da norma impugnada (na redacção anterior à alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 202/97, de 8 de Agosto, por ter sido aplicada nos autos a versão inicial da norma, anterior a essa alteração): Artigo 279º Pagamento em prestações e outras medidas
[1. As dívidas exigíveis em processo executivo poderão ser pagas em prestações mensais, mediante requerimento apresentado na repartição de finanças competente no prazo referido no nº 2 do artigo 273º.]
2. O disposto no número anterior não é aplicável às dívidas liquidadas pelos serviços por falta de entrega, dentro dos respectivos prazos legais, de imposto retido na fonte ou legalmente repercutido a terceiros.
Na perspectiva da recorrente, a norma seria inconstitucional por violar o nº 5 do artigo 2º da Lei nº 37/90, de 10 de Agosto, e indirectamente o nº 2 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa. A recorrente pretende a apreciação da eventual violação, pelo artigo 279º, nº 2, do Código de Processo Tributário, da Lei de autorização legislativa, com base na qual foi aprovado este Código – a Lei nº 37/90, de 10 de Agosto – e, consequentemente, a apreciação da questão da inconstitucionalidade da mesma norma, com fundamento na violação do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa.
Importa assim averiguar neste processo se a norma impugnada invade ou não a esfera de competência legislativa da Assembleia da República, concretamente a competência legislativa prevista no artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição (versão de 1989).
7. A norma do nº 2 do artigo 279º do Código de Processo Tributário exclui a possibilidade do pagamento em prestações, em processo executivo, relativamente a determinadas dívidas fiscais: as 'dívidas liquidadas pelos serviços por falta de entrega, dentro dos respectivos prazos legais, de imposto retido na fonte ou legalmente repercutido a terceiros', como é precisamente o caso das dívidas provenientes de IVA
A norma em causa, regulando o pagamento em prestações das dívidas tributárias – e excluindo a possibilidade de tal modalidade de pagamento quanto a algumas dessas dívidas – deve caracterizar-se como norma respeitante à cobrança de impostos, matéria que, segundo o entendimento constante e uniforme deste Tribunal, não se inclui na reserva de lei relativa à 'criação de impostos e sistema fiscal' prevista no artigo 168º, nº 1, alínea i), da Constituição
(versão de 1989).
Na verdade, disse o Tribunal Constitucional no acórdão nº 504/98
(Diário da República, II Série, nº 284, de 10 de Dezembro de 1998, p. 17481 ss), reiterando jurisprudência anterior:
'[...] só constituem a reserva de lei mencionada na alínea i) do nº 1 do citado artigo 168º a criação de impostos, que abarca a «criação e a definição dos elementos essenciais daquelas receitas, unilateralmente impostas, que hão-de custear o financiamento em geral das despesas públicas (dir-se-á: das ‘despesas gerais’), e hão-de ser repartidas pela ‘generalidade’ dos contribuintes de harmonia com os critérios genericamente apontados nos artigos 106º e 107º da Constituição da República Portuguesa», como vem sendo sublinhado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr., v.g., os acórdãos nºs 205/87,
461/87 e 497/89, publicados no Diário da República, I Série, de 3 de Julho de
1987, 15 de Janeiro de 1988 e II Série, de 1 de Fevereiro de 1990, respectivamente). Como, por sua vez, se ponderou no recente acórdão nº 268/97 (publicado na II Série do citado jornal oficial, de 22 de Maio de 1997), por isso, apenas uma lei parlamentar (ou um decreto-lei parlamentarmente autorizado) pode «criar impostos», determinar-lhes a incidência e a taxa, e estabelecer os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes (citando-se, a propósito, os acórdãos nºs 321/89 e 231/92, publicados no Diário citado, I Série, de 20 de Abril de
1989, e II Série, de 4 de Novembro de 1992, respectivamente) mas essa «lei
(formal) já não tem, porém, que versar sobre o lançamento, a liquidação e a cobrança dos impostos: tais matérias podem, com efeito, ser reguladas por decretos-leis (reserva de lei material) [cfr., entre outros, os citados acórdãos nºs 205/87 e 461/87]».'
A esta luz, por conseguinte, a norma do artigo 279º, nº 2, do Código de Processo Tributário não viola o disposto na alínea i) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa (versão de 1989), pois não versa sobre matéria para a qual é exigida intervenção parlamentar.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do nº 2 do artigo
279º do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de
23 de Abril (na redacção anterior à alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº
202/97, de 8 de Agosto);
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à matéria de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2001 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa