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Processo nº 37/97
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 2ª Secção doTribunal Constitucional:
1. Em 7 de Junho de 1995, E... foi acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de 'um crime de introdução em casa alheia, p. e p. pelo artº 176º nºs 1 e 2 do Cód. Penal' e de 'um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições combinadas dos artºs 296º e 297º, nºs 1 e 2 al. d), do C. Penal'.
Não tendo sido possível proceder logo à notificação pessoal do arguido, efectuou-se a sua notificação edital em 29 de Dezembro de 1995. Tendo entretanto sido notificado na sua própria pessoa do despacho que designou dia para a audiência de julgamento, em 17 de Abril de 1996, o arguido veio requerer a abertura de instrução no dia 9 de Maio do mesmo ano. O requerimento foi, porém, indeferido, por extemporaneidade, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal, na redacção então vigente. O arguido recorreu então do despacho de indeferimento para o Tribunal da Relação de Coimbra, defendendo, em síntese, e por entre o mais, que admitir que o nº 5 do artigo 283º do Código de Processo Penal, sempre na redacção então em vigor, pudesse ser interpretado no sentido de que a notificação edital da acusação ao arguido pode produzir os mesmos efeitos que a notificação pessoal, significaria que tal norma contenderia com o nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, enfermando, por conseguinte, do vício de inconstitucionalidade.
2. O Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso. Começando por afirmar que 'mostram os autos que, dada a impossibilidade, incontestada, de a acusação deduzida nos mesmos ser, na devida altura, notificada pessoalmente ao arguido, se procedeu a esta notificação por editais afixados em 29 de Dezembro de 1995', relembrou que, 'por Acórdão do STJ de 25 de Março de 1992 (confr. BMJ
415/124), foi fixada a seguinte jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais (...):
'Deduzida acusação, a mesma tem de ser notificada ao arguido nos termos dos artigos 283º, nº 5, 277º nº 3 e 113º, nº 1, alínea c). Caso se verifique que aquele está ausente em parte incerta, a notificação a fazer-lhe será a edital prevista naquele artigo 113º, nº 1, alínea c), prosseguindo depois o processo para a fase de julgamento'. E, quanto à questão de constitucionalidade suscitada, decidiu:
'Finalmente, interpretado o nº 5 do artigo 283º no sentido de que a notificação edital da acusação ao arguido pode produzir efeitos como se o tivesse sido pessoalmente, não significa que tal norma contende com o nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. Em primeiro lugar, porque o entendimento contrário afrontaria o princípio consagrado no nº 2 do referido artigo 32º da Constituição, segundo o qual o arguido deve ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, resultando do nº 2 do artigo 313º a exclusão da notificação edital deste do despacho que designa dia para a audiência, onde os direitos de defesa terão então de encontrar a sua plena expressão. Em segundo lugar porque tal entendimento afrontaria também os princípios consagrados no nº 1 e no nº 2 do artigo 205º da Constituição, pelos efeitos da não realização da justiça a que conduziria, nomeadamente à frequente prescrição do procedimento criminal. Em terceiro lugar porque a acusação, como bem nota o Exmº procurador da República, nunca corresponde a uma decisão definitiva de submeter o arguido a julgamento, porquanto a mesma passa pela apreciação do juiz, que a pode rejeitar, nomeadamente por manifesta insuficiência de prova indiciária (confr. Assento nº 4/93 in DR-I Série-A, nº 72, de 26 de Março de 1993, págs. 1494 a
1496). Em quarto lugar porque sendo a instrução uma fase facultativa do processo, significa que a não realização da mesma não afecta directamente as garantias de defesa. De resto, a notificação edital em causa procura precisamente conceder as possíveis oportunidades de defesa ao arguido, dando-lhe por esse meio conhecimento de que pode requerer a instrução'.
3. Foi deste acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (requerimento de fls. 44),
'requerendo a apreciação da ilegalidade/inconstitucionalidade' da 'norma do nº 5 do artº 283º do C.P.P. – na sua remissão indirecta, através do nº 3 do artº 277º do C.P.P., para a al. c) do nº 1 do artº 113º do mesmo diploma – no sentido e interpretação efectuados pelo douto acórdão de fls. – de o ordenamento jurídico processual penal comportar a notificação edital da acusação ao arguido e, ainda, de tal notificação produzir efeitos idênticos aos da notificação pessoal, por tal norma violar o nº 1 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa'. Nas alegações apresentadas neste Tribunal, o recorrente sustenta a inconstitucionalidade alegada, especificando, entre os efeitos cuja equiparação
à notificação pessoal decorreriam da norma impugnada, o da 'contagem de prazo para requerer a abertura de instrução'. Por seu turno, o magistrado do Ministério Público em funções neste Tribunal concluiu as suas alegações no sentido de que 'a norma constante do artigo 283, nº 5 do Código de Processo Penal (em articulação com as dos artigos 277º, nº 3, e 113º, nº 1, alínea c) do mesmo Código, interpretados nos termos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 1992, como implicando a admissibilidade de, nos casos de comprovada ausência em parte incerta, ser o arguido notificado editalmente da acusação, prosseguindo o processo para a fase de julgamento, não contende com o princípio constitucional das garantias de defesa que – analisando globalmente o processo penal – não resultam postergadas pelo facto de o arguido não ter podido oportunamente requerer a instrução'.
4. A norma objecto do presente recurso é, assim, a que resulta da conjugação entre o nº 5 do artigo 283º do Código de Processo Penal, o nº 3 do artº 277º, para o qual remete, e a al. c) do nº 1 do artº 113º, enquanto – de acordo com a interpretação da decisão recorrida, que aplicou a jurisprudência obrigatória fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça pelo Assento de 25 de Março de 1992, publicado no Diário da República, I-A de 10 de Julho de 1992, nos termos transcritos – permite a notificação edital ao arguido da acusação, contando-se desse momento o prazo para requerer a abertura da instrução. Note-se que os preceitos do Código de Processo Penal referidos são, naturalmente, os que então estavam em vigor, e não os que constam da versão actual deste diploma, alterado pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto; e que se não vai considerar a referência a uma eventual ilegalidade que consta do requerimento de interposição de recurso, não suportada em qualquer fundamento. Assim, o que se questiona neste momento não é a mera possibilidade de se proceder à notificação edital da acusação. Mais do que isso, o que está em causa
é o estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura da instrução contado a partir da data em que se tem por efectuada a notificação edital.
5. E a verdade é que da norma aplicada resulta, na prática, a impossibilidade de o arguido requerer a instrução (vejam-se as contra-alegações do Ministério Público), uma vez que só excepcionalmente a notificação edital permitirá o efectivo conhecimento da acusação pelo destinatário.
A questão de constitucionalidade a resolver consiste, pois, em saber se é compatível com a Constituição – nos casos em que, não se conseguindo proceder de imediato à notificação pessoal, se efectua notificação edital – a privação ao arguido da faculdade de requerer a abertura da instrução.
O Tribunal da Relação de Coimbra, na decisão recorrida, bem como o Ministério Público, nas suas alegações, sustentaram a não inconstitucionalidade.
Os argumentos apresentados, porém, não convencem.
6. Parece manifestamente improcedente o argumento de que, sendo a instrução uma fase facultativa do processo, a sua não realização não atentaria contra as garantias de defesa. A circunstância de se tratar de uma fase facultativa não pode levar a esquecer que é ao arguido (sem prejuízo da possibilidade de, em dadas condições, ela ser requerida pelo assistente) que cabe a faculdade de requerer ou não requerer a instrução. Sendo facultativa a realização de instrução, impõe-se a consideração de que é obrigatória a atribuição ao arguido do direito de decidir se pretende ou não requerê-la.
7. O argumento da celeridade processual não leva também a justificar esta derrogação ao direito de requerer a instrução. Antes de mais, a celeridade encontra-se consagrada no artigo 32º da Constituição
(cuja epígrafe é 'garantias de processo criminal'), que estabelece o dever de o arguido ser julgado 'no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa'
(nº 2, in fine). Assim, não pode invocar-se a celeridade como fundamento legítimo para postergar garantias de defesa. Raciocinar nesses termos seria incorrer em petição de princípio, já que haveria que demonstrar justamente que as garantias de defesa não são aqui afectadas pela prevalência de um princípio de celeridade processual. Por outro lado, um possível julgamento de inconstitucionalidade da norma impugnada não leva necessariamente à paralização do processo até ser possível a notificação pessoal, com as eventuais consequências negativas da não realização da justiça e da prescrição do procedimento criminal. Basta, por exemplo, ainda que o processo prossiga, que se admita a possibilidade de o arguido, ao ter conhecimento da acusação, vir posteriormente requerer a abertura de instrução.
8. Quanto ao argumento, exposto nas contra-alegações do Ministério Público, segundo o qual 'as ‘garantias de defesa’ têm de ser perspectivadas perante o processo penal no seu conjunto, e não relativamente a cada um dos actos ou fases do processo', cabe começar por dizer que as garantias previstas para uma dada fase processual não podem ser completamente postergadas com base na invocação de garantias previstas para a fase processual subsequente. Por outro lado, importa sublinhar, como o fez este Tribunal no acórdão n º
691/98, tirado por unanimidade, que entre 'as garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição' se conta 'a de não sujeitar o arguido a julgamento quando não se verifiquem indícios suficientes para consistirem numa razoável convicção de que tenha praticado o crime'.
9. Também aqui não vale o argumento de que, não tendo sido requerida a abertura de instrução, é sempre possível que o juiz de julgamento rejeite a acusação, nomeadamente por manifesta insuficiência de prova indiciária (cf. a alínea a) do nº 2 do artigo 311º do C.P.P.).
É que tal rejeição só pode ter lugar quando exista insuficiência de prova indiciária, e desde que ela seja manifesta. Acresce que o arguido não tem, antes da decisão de rejeição ou não rejeição, a oportunidade de contradizer a versão dos factos constante da acusação.
10. Importa neste momento lembrar que o Tribunal Constitucional, no acórdão nº
406/98, julgou, por maioria, 'inconstitucional por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, o artigo 287º, nº 1, do Código de Processo Penal de 1987, na versão anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 317/95, de 27 de Novembro, enquanto fixa em cinco dias, contados da notificação da acusação, o prazo para o arguido requerer a abertura de instrução'. De entre os diferentes aspectos da fundamentação do juízo de inconstitucionalidade formulado no referido acórdão, podem extrair-se duas afirmações com especial relevância para o problema de constitucionalidade agora em apreciação. Antes de mais, entendeu-se que, à semelhança do que o Tribunal julgara no acórdão 41/96 relativamente à segunda parte do artigo 328º do Código de Processo Penal de 1929, a norma em análise não permitia ao arguido 'que organize, de modo efectivo, a sua defesa ... ponderar os factos recolhidos... e em função dessa reflexão ponderada, apresentar as suas razões e requerer as diligências pertinentes'. Afirmou-se, por outro lado, o seguinte:
'É assim, em suma, o próprio imperativo da construção das condições da presunção de inocência, inerente à consagração constitucional de um tal princípio, que impõe uma acentuação do valor garantístico das fases preliminares no processo penal e justifica que seja atribuída uma importância ao requerimento para a abertura da instrução que os requisitos formais não sugerem'. De resto, afirmou o Cons. Vítor Nunes de Almeida na declaração de voto aposta ao citado acórdão nº 406/98, em que ficou vencido, o seguinte: 'esta fase [a instrução] não pode prolongar-se indefinidamente, mas não devem ser coarctados os direitos do arguido de pôr em causa a acusação. Há que haver prazos peremptórios e curtos para a abertura desta fase do processo, mas sem retirar a possibilidade de fazer a comprovação de que a acusação não tem fundamento
(...)'. Ora, se este Tribunal julgou incompatível com o nº 1 do artigo 32º da Constituição a norma que estabelecia um prazo de 5 dias para requerer a instrução, atenta a exiguidade desse prazo, não pode deixar agora de entender, por evidente maioria de razão, que é inconstitucional a norma que torna praticamente impossível o exercício da faculdade de requerer a instrução. Diga-se, a terminar, que o novo texto do Código de Processo Penal, alterado pela citada Lei nº 59/98, exclui a citação edital do arguido para o caso que nos ocupa, como resulta do nº 6 que aditou ao artigo 283º.
Nestes termos, decide-se: a) Julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do nº 5 do artigo 283º do Código de Processo Penal, com o nº 3 do artº 277º e com a alínea c) do nº 1 do artº 113º, na redacção anterior à resultante da Lei nº 59/98, de
25 de Agosto, enquanto – de acordo com a interpretação feita na decisão recorrida, em aplicação da jurisprudência fixada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 1992 – permite, no caso de notificação edital ao arguido da acusação, que se conte a partir do momento em que se considera efectuada o prazo para requerer a abertura da instrução, por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição; a. Julgar procedente o recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformulado de acordo com o julgamento da questão de constitucionalidade. Lisboa, 23 de Junho de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida