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Proc. nº 780/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. A interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a decisão da 1ª instância que condenou a recorrente pela prática de um crime de abuso de confiança e no pagamento de indemnização. O recurso não foi admitido, por despacho do desembargador relator, nos termos dos artigos 432º, alínea b), e 400º, nº 1, alínea f), e nº 2, do Código de Processo Penal e do acórdão de fixação de jurisprudência nº 1/2002, do Supremo Tribunal de Justiça, com o seguinte fundamento: 'O acórdão de fls. 882 a 904 não
é susceptível de impugnação para o Supremo Tribunal de Justiça art. 432º al. b) e art. 400º, nº 1, al. b) e nº 2 do C.P. Penal que de acordo com acórdão do S.T.J. que fixou jurisprudência para os tribunais judiciais só é admissível recurso da parte civil, desde que também seja admissível recurso da parte criminal. Assim, não se admitem os recursos interpostos pelas arguidas'. A recorrente reclamou do despacho de não admissão do recurso para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 405º do Código de Processo Penal. Essa reclamação tem o seguinte teor: Inconformada com a não admissão do recurso, a recorrente vem com a presente reclamação clamar por Justiça, perante Vossa Excelência, com a convicção que o não reconhecimento do recurso representa um lapsus calamis. Não pode inviabilizar-se um recurso pressupondo uma opção de fundo, concernente
àquilo que seria exactamente, o tema do recurso e na dúvida, o recurso deve ser recebido - Ac. R. L. de 25.5.92. A norma do nº 2 do artº 400° do Cód. Proc. Penal é susceptível de interpretação extensiva, não envolvendo a apreciação do mérito. Sendo o recurso da parte da sentença relativa à pena a aplicar: PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE, estamos perante o reexame de matéria de direito, quanto à medida da pena – alínea d) do artº 432º do Cód. Proc. Penal, logo é admissível o presente recurso. O verdadeiro fim do processo penal só pode ser a descoberta da verdade e a realização da justiça.
'A justiça é, por certo, o fim do processo penal, no sentido de que este não pode existir validamente se não for presidido por uma directa intenção ou aspiração de justiça', conforme PROFESSOR FIGUEIREDO DIAS, in Direito Processual Penal. Constituindo a acusação a pedra angular de todo o processo penal, consta nas cassetes, da audiência de julgamento de 13 de Novembro de 2001, que serviram para o Tribunal de Primeira Instância fundamentar o seu Acódão, que as arguidas
'confirmaram que não agiram com uma mesma e única resolução'. As arguidas declararam que 'as suas condutas foram parcelares'. E só retiravam o dinheiro, mais concretamente os 'adiantamentos', permitidos na empresa à data dos factos, quando tinham necessidades. Consta nos autos que a ora recorrente não planeou falsificar o 3° talão de depósito, vide, fls. 10.
À ora recorrente foi-lhe aplicada uma pena de prisão de três anos e seis meses. Ora as duas arguidas foram condenadas no pagamento solidário à Assistente/demandante, da quantia de 12.238.604$00.
À outra arguida A, uma pena de três anos de prisão. A recorrente sempre colaborou com a Justiça, estando presente em Tribunal, todas as vezes que foi notificada. Pelo que a pena a aplicar às duas arguidas deve ser igual. Decorreram mais de 10 anos sobre a prática dos factos, mantendo a recorrente uma boa conduta - alínea d) do artº 72° do Cód. Penal. O Tribunal pode atenuar especialmente a pena, para além dos limites definidos na lei, quando exista circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime que diminua, por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente - Ac. S.T.J. de 24.6.91.
É primária. Tem 61 anos de idade, tendo as suas capacidades intelectuais e volitivas diminuidas, o que é um índice de um menor grau de ilicitude do facto e da intensidade da culpa - Ac. S.T.J. de 26.5.99. A ora recorrente requereu que a pena de prisão fosse substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, e a outra arguida a suspensão da pena. Qualquer destes institutos 'o da suspensão da pena' ou da 'prestação de trabalho a favor da comunidade' têm como objectivo o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, ou como estatui o artº 40° do Cód. Penal, visar a reintegração social do agente e em caso algum a pena deve ultrapassar a medida da culpa. A recorrente é o amparo do marido e do pai, conforme consta nos autos. Privar a arguida da liberdade é estar a punir, ainda que involuntariamente, outras pessoas, que da liberdade dela dependem. No Acórdão recorrido está impugnada a matéria de facto, com a especificação dos pontos que se consideram incorrectamente julgados e as provas que impunham decisão diversa da recorrida.
'Ora, se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca deve ultrapassar a medida da culpa, então, parece evidente que, dentro, claro está, da moldura legal, a 'moldura prevenção' há-de definir-se entre o mínimo imprescindível e a estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível às necessidades da sua reintegração social' - Ac. S.T .J. de 23/03/97. A pena deve, ainda, proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos. Devendo a pena ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador e para procurar superar razões conjunturais e de dificuldade da execução da aplicação do artº 496° do Cód. Proc. Penal, a Lei 75/97, de 18 de Julho autorizou o Governo a estabelecer medidas que viabilizassem a aplicação e a execução das penas, o que veio a ser feito através do Dec.-Lei nº 375/97 de 24 de Dezembro. Atenta à idade da arguida, ao seu comportamento quer anterior aos factos, quer posterior, a pena deverá ser reduzida e esta ser condenada na prestação de trabalho a favor da comunidade ou a uma pena suspensa. Donde a motivação do recurso, ora reclamado, evidencia os pressupostos da sua admissibilidade legal (PRINCÍPIO DA LEGALIDADE), a sua adequação ao objecto da prova (PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO), a sua viabilidade (PRINCÍPIO DA OBTENIBILIDADE) e a sua necessidade para a descoberta da verdade e boa decisão da causa
(PRINCÍPIO DA NECESSIDADE). A decisão, em processo penal, terá, por isso, de apresentar três qualidade: ser lograda de modo processualmente admissível e válida; ser justa segundo o direito substantivo e tornar seguro e estável o direito declarado. Deste modo, o processo penal, constitui um dos lugares por excelência em que tem de encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a liberdade de realização. A não admissão do presente recurso não se identificaria com a paz jurídica, com puros valores de segurança a que tendencialmente se liga, não se encontrando nela o mais leve indício orientador sobre quando deva, em concreto, dar-se preferência ao valor da justiça ou da segurança, conf. PROFESSOR JORGE FIGUEIREDO DIAS, In Direito Processual Penal. Nas palavras daquele Ilustre Professor, 'O processo penal longe de servir apenas o exercício dos direitos assegurados pelo direito penal, visa a comprovação e realizacão, a definição e declaração do direito do caso concreto,.hic e nunc válido e aplicável', é assim, a obtenção da verdade material. A reclamação foi indeferida por decisão de 24 de Setembro de 2002, que confirmou o despacho reclamado.
2. A interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alíena b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 400º, nº 2, do Código de Processo Penal. Proferido despacho ao abrigo do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional e apresentada a respectiva resposta, o recurso de constitucionalidade foi indeferido, por despacho de 24 de Outubro de 2002, por a questão de constitucionalidade não ter sido suscitada durante o processo.
3. A reclama agora, ao abrigo dos artigos 76º e 77º da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade, afirmando que suscitou a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada, reportada ao artigo 400º do Código de Processo Penal, na reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. O Ministério Público pronunciou-se no sentido da manifesta improcedência da presente reclamação. Cumpre apreciar e decidir.
4. Sendo o recurso que a reclamante pretende ver admitido interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995). Ora, nos presentes autos, verifica-se que a reclamante não suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça reportada ao artigo 400º do Código de Processo Penal (ao contrário do que afirma – sem demonstrar – a fls. 2). Por outro lado, não foi proferida qualquer decisão objectivamente inesperada. Assim, a recorrente teve oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada, não o tendo feito em virtude da estratégia processual por si definida. O recurso de constitucionalidade não devia, pois, ser admitido, tal como efectivamente aconteceu, pelo que a presente reclamação é improcedente.
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando consequentemente o despacho reclamado.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 25 de Fevereiro de 2003 Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Luís Nunes de Almeida