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Proc. nº 149/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Ministério Público, em representação do Estado, interpôs, ao abrigo do disposto no artigo 51º, nº 1, alínea g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, acção sobre contrato administrativo contra os réus A e B com fundamento em vários contratos de empreitada que tiveram por base concurso limitado e foram celebrados com C. Com fundamento em se ter concretizado a rescisão do contrato, através de despacho do Comandante Geral da Guarda Fiscal de que a empreiteira C foi notificada, foi tomada a posse administrativa da obra e realizado o respectivo inventário. Com base no não pagamento de garantias bancárias assumidas pelos réus, o autor pediu a condenação destes no pagamento das quantias correspondentes e dos respectivos juros de mora legais. Os réus contestaram, invocando, na parte que interessa ao julgamento do presente recurso de constitucionalidade, a caducidade da acção (ré B, que alterou o nome para ...). Por despacho proferido na audiência preliminar, o juiz do Tribunal de Círculo de Lisboa julgou improcedente a excepção de caducidade.
2. A ré B interpôs recurso de agravo deste despacho para o Supremo Tribunal Administrativo. Nas respectivas alegações, sustentou que o entendimento de que o artigo 222º do Decreto-Lei nº 235/86, de 18 de Agosto, ao estabelecer um prazo de caducidade do direito invocado pelo empreiteiro, forçando a propor acção contra as entidades públicas no prazo de 180 dias, contados da data da notificação da decisão do órgão competente, em virtude do qual seja negado algum direito ou pretensão, se não aplica ao Estado viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição. Por acórdão de 19 de Dezembro de 2001, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso interposto pela ré B. Após ter observado que o artigo 71º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos estabelece que as acções sobre contratos administrativos e sobre responsabilidade das partes pelo seu incumprimento podem ser propostas a todo o tempo, salvo o disposto em lei especial, o Supremo Tribunal Administrativo sublinha que um dos casos previstos em legislação especial é, precisamente, o que se reporta às acções sobre contrato de empreitada de obras públicas. Assim, na vigência do Decreto-Lei nº
235/86, dispunha-se que as acções deveriam ser propostas, quando outro prazo não estivesse fixado na lei, dentro do prazo de 180 dias, contados desde a data da notificação ao empreiteiro da decisão ou deliberação do órgão competente para praticar actos definitivos, em virtude da qual fosse negado algum direito ou pretensão do empreiteiro ou dono da obra se arrogasse direito que a outra parte não considerasse fundado. Porém, o Supremo Tribunal Administrativo conclui que a circunstância de este prazo de caducidade apenas se aplicar ao empreiteiro não viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, 'desde logo porque são diferentes materialmente os âmbitos em que movem as acções em presença – a do empreiteiro e a do Estado contra as seguradoras'.
3. Inconformada com o acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal Administrativo, a ré B interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, limitando-se a referir que
'nos autos foi arguida a inconstitucionalidade material do artigo 222º do Decreto-Lei nº 235/86, de 18 de Agosto, por violação do artigo 13º (princípio da igualdade) da C.R.P.'. No Tribunal Constitucional, a Relatora proferiu despacho, em 22 de Março de
2002, ao abrigo do artigo 75º-A, nº 5, da Lei do Tribunal Constitucional, convidando a recorrente a indicar os elementos em falta, previstos nesse mesmo artigo. Em cumprimento desse despacho, a recorrente veio declarar, em 16 de Abril de
2001, que o seu recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional e que suscitou a questão de constitucionalidade no âmbito das alegações do recurso da decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que interpôs para o Supremo Tribunal Administrativo. Nas suas alegações, a recorrente apresentou, em síntese, as seguintes conclusões: a) O Supremo Tribunal Administrativo interpretou a norma do artigo 222º do Decreto-Lei nº 235/86 de modo a concluir que só estão sujeitas a prazo de caducidade as acções cujo sujeito activo seja o empreiteiro, mas não as mesmas acções quando sejam propostas pelo contraente público dono da obra, podendo então ser propostas a todo o tempo, de acordo com a regra geral consagrada no artigo 71º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos; b) Uma tal interpretação viola a garantia constitucional do tratamento, em condições de igualdade, dos cidadãos perante a lei e o sistema jurídico, fazendo incorrer a citada norma legal em inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição; c) Assim, sendo materialmente inconstitucionais os artigos 222º do Decreto-Lei nº 235/86 e 71º, nº 1, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, por determinarem a aplicação do prazo de caducidade de 180 dias apenas ao empreiteiro enquanto contraente privado, excluindo de tal prazo o contraente público. Nas respectivas contra-alegações, o Ministério Público, que é recorrido nos presentes autos, apresentou, em síntese, as seguintes conclusões: a) Não é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a aplicação, em acção movida pelo Estado ao empreiteiro, no domínio de certo contrato administrativo, da regra geral consagrada no artigo 71º, nº 1, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, que torna admissível a efectivação de pretensões situadas no âmbito desse contrato a todo o tempo; b) Mesmo que, porventura, se concluísse que o estabelecimento de um prazo de caducidade para os particulares (artigo 222º do Decreto-Lei nº 235/86) constitui um injustificado privilégio do Estado, a solução constitucionalmente imposta traduzir-se-ia na reposição da regra da imprescritibilidade para os particulares; c) O princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição), na dimensão que implica a proibição do arbítrio legislativo não obsta ao 'estabelecimento de regimes diferenciados para as pretensões que oponham sujeitos diversos de uma relação contratual, em função da diversidade objectiva dos seus direitos e acções, ou que, no domínio dos contratos administrativos sejam directo corolário da ideia de prevalência do interesse público, que a eles necessariamente subjaz'. Suscitada a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso (cf. Despacho de fls 310), a recorrente respondeu o seguinte:
1º A recorrente pretendeu com o presente recurso de constitucionalidade, sindicar a legalidade do Acórdão proferido pelo S.T.A. no Processo N° 47.748, ao interpretar e aplicar do modo como fez, o art. 222° do DL 235/86.
2° Ou seja, a recorrente sindicou a legalidade, à face do art. 13° da Constituição, do entendimento sufragado por aquele Acórdão de que o art. 222° apenas se aplica ao particular e não ao Estado.
3° O que se pretende com o presente recurso é a declaração da desconformidade, à face da Constituição, do Acórdão do STA, devendo a norma ser interpretada conforme ao art. 13° da Constituição, julgando-se pela aplicação da norma em causa (o art. 222° do DL235/86) tanto ao ente particular como ao ente público. Concluindo-se a final pela prescrição da acção do Estado.
Cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação
4. Embora nas suas alegações o ora recorrente conclua pela inconstitucionalidade de duas normas – o artigo 222º do Decreto-Lei nº 235/86 e o artigo 71º, nº 1, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
–, o presente recurso tem como objecto exclusivo a questão da constitucionalidade do artigo 222º do Decreto-Lei nº 235/86, de 18 de Agosto. Só essa norma é identificada no requerimento de interposição do recurso e no âmbito da resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido pela Relatora.
Por conseguinte, a única questão sobre a qual o Tribunal Constitucional se pode pronunciar é, precisamente, a constitucionalidade daquela norma legal quando interpretada no sentido de o prazo de prescrição nela previsto não ser aplicável ao Estado. Claro está que a consequência de uma tal interpretação se traduz na aplicação ao Estado da regra geral de imprescritibilidade consagrada no artigo 71º, nº 1, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Mas esta norma, em si mesma, não é questionada no presente processo.
5. O recorrente alega que a norma sub judicio é inconstitucional por prescrever um tratamento diferenciado para o Estado e para os particulares que se encontrem em idêntica situação jurídica. O relacionamento desta argumentação de inconstitucionalidade com a norma do artigo 222º do Decreto-Lei nº 235/86 postularia que também valesse para o Estado o prazo de prescrição de
180 dias aí previsto. Só desse modo, aliás, o recorrente poderia retirar utilidade do juízo de inconstitucionalidade para fazer valer a excepção da prescrição quanto à acção proposta pelo Ministério Público em representação do Estado.
Todavia, se a diferença de tratamento entre o Estado e os particulares implicasse aqui uma violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição (não se considerando, para tanto, factor legítimo ou razoável de discriminação, por exemplo, a ideia de prevalência do interesse público), então a tal violação também se poderia obviar concluindo pela validade da regra da imprescritibilidade prevista no artigo 71º, nº 1, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos também para particulares e não apenas para o Estado.
Ora, desde logo se poderia questionar se, no presente caso, o melhor caminho seria a prolação de uma decisão que ampliasse o âmbito de excepção prevista à regra da imprescritibilidade, sendo que, no caso negativo, a apreciação do recurso seria destituída de qualquer utilidade.
Seja como for, não é logicamente obrigatório que, em geral, haja uma igualdade de prazos para empreiteiro e dono da obra, atendendo à diferente natureza das prestações contratualmente devidas. Além disso, pelo facto de o dono da obra ser o Estado não pode deixar de se atribuir relevância ao interesse público como factor justificativo da diferenciação.
III Decisão
6. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 1 de Abril de 2003 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa