Imprimir acórdão
Proc. n.º 1016/98
1ª Secção Cons.º Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. – V... foi pronunciado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro pela autoria de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11º, n.º1, alínea a), do Decreto - Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, com referência ao artigo 218º, n.º2, alínea a) do Código Penal.
Após julgamento, foi o arguido condenado na pena de dois anos e seis meses de prisão e solidariamente com a 'D..., Lda', no pagamento da quantia de 4.926.200$00 à firma 'C..., Lda'.
A pena de prisão foi suspensa por três anos, na condição de o pagamento às 'C..., Lda', ser efectuado no prazo de três meses, salvo se a co-responsável 'D...' tiver entretanto efectuado o pagamento.
2. - V..., não se conformando com o assim decidido, resolveu interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
A Relação de Coimbra, por acórdão de 21 de Maio de 1997, decidiu 'rejeitar o recurso por ser manifesta a sua improcedência em via principal – artigo 420º, n.º1 do CPP, e por falta de motivação em via subsidiária – artigo 412º, n.º2, alínea a) do mesmo Código.'
Notificado deste aresto, V... veio arguir a sua nulidade, arguição esta que veio a ser indeferida por acórdão de 9 de Julho de
1997.
Não se conformando com esta decisão, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, recurso este que veio a ser admitido por despacho de 2 de Outubro de 1997.
3. – Entretanto, V... veio apresentar, já no Tribunal Constitucional, um requerimento em que pedia a remessa dos autos para o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro para que ali se procedesse á aplicação do disposto no Decreto - Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro.
Do Tribunal Constitucional o processo foi remetido à Relação de Coimbra, por ser o tribunal cuja decisão ali se encontrava em recurso.
A Relação de Coimbra, por acórdão de 25 de Fevereiro de
1998, entendeu que devia remeter, de novo, o processo ao Tribunal Constitucional, uma vez que 'neste momento tem a jurisdição sobre o mesmo, em razão do interposto recurso'.
Notificado desta decisão, V... interpôs recurso para a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, apresentando logo a respectiva motivação.
4. – No S.T.J., o Procurador-Geral adjunto em exercício suscitou no visto uma questão prévia, pois entende que a decisão do Tribunal da Relação é uma decisão de mero expediente e, por isso, não é recorrível para o STJ.
O recorrente veio responder sustentando posição diversa e mantendo que o recurso devia prosseguir a sua tramitação normal.
O STJ, por acórdão de 14 de Outubro de 1998, decidiu não tomar conhecimento do recurso, por não ser admissível recurso para o Supremo da decisão da Relação proferida nos autos.
Neste acórdão escreveu-se:
'Sem embargo da insistência com que o recorrente defende o ponto de vista de que a decisão da Relação, no caso dos autos, foi proferida em 1ª instância, o certo
é que essa tese é absolutamente inaceitável, já que, a todas as luzes, o Tribunal da Relação de Coimbra interveio nos ditos autos como 2ª instância, como Tribunal 'ad quem', para o qual fora interposto recurso de uma sentença proferida na 1ª instância pelo Mmº Juiz da Comarca de Oliveira do Bairro. Foi como Tribunal de recurso - aliás rejeitado por manifesta improcedência -, que a Relação interveio nos autos, neles proferindo as decisões já aludidas. No processo principal, a Relação julgou o recurso – rejeitando-o – interposto da sentença da 1ª instância (alínea c) do n.º2, do art. 12º, do Cód. Proc. Penal, e art. 41º, alínea a), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), sendo insustentável, a todos os títulos, a tese de que a decisão recorrida foi proferida em 1ª instância. Assim sendo, como é, do acórdão proferido em 25-2-1998 (fls. 59 e 60), pela Relação de Coimbra, não é admissível recurso para o supremo Tribunal de Justiça, pelo que o presente recurso nem sequer deveria ter sido admitido, por não configurar nenhuma das hipóteses previstas no art.º 432º do Cód. Proc. Penal.'
É desta decisão que vem interposto o presente recuso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b), do n.º1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
De acordo com o requerimento de interposição do recurso, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional 'declare a inconstitucionalidade da norma do artigo 2º, n.º4, do Código Penal, quando interpretada no sentido de que não deve ser imediatamente aplicada a lei nova de direito legislado de conteúdo mais favorável, com a consequente violação dessa mesma norma, por um lado (e do disposto no artigo 16º, n.º1, do diploma fundamental), e do disposto no n.º4, 2ª parte do artigo 29º da Constituição da República'.
No mesmo requerimento pedia-se também a declaração da inconstitucionalidade por omissão da não previsão de recurso das decisões da Relação para o Supremo, mas convidado a esclarecer esta parte do requerimento, o recorrente pediu (fls. 104) que se considerasse como não escrita esta parte do referido requerimento.
5. - V... veio apresentar as suas alegações e aí formulou as seguintes conclusões:
'1. Face ao direito legislado – artigos 470º, n.º1 e 474º, n.º1, ambos do Código de Processo Penal – cabia ao Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro apreciar, em 1ª instância, o incidente de aplicação à espécie dos autos do disposto no Decreto-Lei n.º 316/97. Ora,
2. o Tribunal da Relação de Coimbra ao conhecer de tal incidente de forma imediata, usurpando poderes, fê-lo em 1ª instância. Por conseguinte,
3. de tal acórdão cabia, nos termos da Segunda parte do n.º1 do art. 29º da Constituição da República e da alínea a) do art. 432º do Código de Processo Penal, recurso para a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito,
4. ao não conhecer do recurso, o referido alto Tribunal violou, desde logo, frontalmente a norma constitucional referida na conclusão anterior
5. do mesmo passo que implicitamente estava a violar o n.º 2 do art. 2º do Código Penal e a parte final do n.º 4 do art. 29º da Constituição da República. Por conseguinte,
6. deverão V.as Exas julgar que o Supremo Tribunal de Justiça ao não conhecer do recurso de decisão proferida em 1ª instância por um Tribunal da Relação, como lhe compete face ao disposto na alínea a) do art. 432º do Código de Processo Penal de 1987, tornou este normativo materialmente inconstitucional, pois o mesmo passaria a admitir que houvesse decisões em 1ª instância dos Tribunais das Relações insindicáveis em via de recurso.
7. do mesmo passo que a decisão recorrida violava, como violou (embora só de forma indirecta ou remota) o disposto no n.º 2 do art. 2º do Código Penal e a parte final do n.º 4 do art. 29º da Constituição da República. Como assim,
8. deve ser proferido acórdão o qual, revogando a decisão recorrida, julgue ter esta tornado explicitamente ferido de inconstitucionalidade material a alínea a) do art. 432º do Código de Processo Penal, por violação do disposto na Segunda parte do n.º1 do art. 32º da Constituição da República '.
O Ministério Público, nas contra-alegações que apresentou, depois de delimitar o objecto do recurso, suscitou uma questão prévia de não conhecimento do recurso, por falta de verificação dos pressupostos da sua admissibilidade, tendo concluído tal alegação da forma seguinte:
'1º - A decisão recorrida – proferida sobre a admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões das relações – não fez aplicação da norma que integra o objecto deste recurso de fiscalização concreta – que, segundo delimitação do recorrente, é a constante do nº4 do artigo 2º do Código Penal.
2º - Termos em que não deverá obviamente conhecer-se do recurso interposto.'
Notificada ao recorrente a questão prévia assim suscitada, veio responder dizendo que 'reconhece que não procedeu á qualificação iuxta modum da norma violada e que corporizou a infracção do disposto na segunda parte do artigo 32º, n.º1 da Constituição da República. No caso, a da alínea a) do artigo 432º do Código de Processo Penal, norma por ele só trazida à colação nas alegações produzidas perante o Tribunal Constitucional.'
O recorrente, depois de referir que o artigo 32º, n.º1, na sua parte final, respeita a direitos, liberdades e garantias e, é, por isso, directamente aplicável, afirma que está em discussão 'a questão de saber se o Tribunal da Relação de Coimbra, ao recusar a remessa dos autos ao Tribunal de Oliveira do Bairro, ao julgar a questão concreta suscitada – aplicação ao recorrente do novo regime jurídico-penal do cheque sem provisão – o fez, ou não, em 1ª instância. Se sim – como se afigura indiscutível -, então por aplicação do direito fundamental pessoal ao recurso consagrado no n.º1 do artigo 32º da Constituição da República, deve entender-se que o julgado do Supremo padece de inconstitucionalidade, por violação do conteúdo mínimo do direito ao recurso consagrado neste normativo.'
Entende, assim, o recorrente que a questão prévia deve ser desatendida e o recurso prosseguir a sua tramitação normal.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS:
6. – Importa, antes de mais, resolver a questão prévia suscitada pelo Ministério Público nas suas alegações.
O Ministério Público entende que a decisão recorrida do STJ, para resolver a questão que vinha suscitada da admissão do recurso da Relação, não tinha aplicado a norma cuja inconstitucionalidade o recorrente suscitara nas suas alegações.
Vejamos.
O Tribunal da Relação, face ao requerimento do arguido para remessa dos autos ao Tribunal de Comarca, entendeu que, uma vez que tal pedido de reapreciação da questão fora introduzido, tal como o próprio regime inovador da punição do cheque sem provisão, depois de esgotado o poder jurisdicional da Relação, se tratava de uma questão nova que exorbitava do
âmbito do recurso já decidido na Relação.
Assim, como o processo estava 'sob a jurisdição do Tribunal Constitucional' por virtude de recurso entretanto interposto, estava
'inviabilizada a remessa dos autos à 1ª instância, como promove o Ministério Público, à revelia de decisão daquele primeiro tribunal'.
É contra esta decisão que se insurgiu o recorrente, interpondo recurso para o STJ e argumentando em duas linhas de fundamentação: quanto à admissibilidade do recurso, defende que se está perante 'uma decisão proferida em 1ª instância pelo Tribunal da Relação de Coimbra' que, por força do artigo 32º, n.º1, da Constituição directamente aplicável ou do artigo 12º, n.º1, do Código de Processo Penal (CPP) e 210º da Constituição, tem de ser recorrível, sob pena de serem inconstitucionais as normas da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais eventualmente aplicáveis; quanto ao fundo da questão, o recorrente entende que não tendo transitado ainda o acórdão da Relação, face à existência de um novo regime jurídico de punição do cheque sem provisão, o tribunal de 1ª instância deveria reapreciar a questão, nos termos do que se dispõe no artigo
2º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal e n.º4 do artigo 29º da Constituição.
Admitido o recurso para o STJ, 'nos termos do artigo
432º, n.º2, alínea a)' do CPP, veio este Tribunal a decidir não tomar conhecimento do recurso com o fundamento de tal recurso não deveria sequer ter sido admitido, uma vez que não configura nenhuma das hipóteses previstas no artigo 432º do CPP, visto que é 'insustentável, a todos os títulos, a tese de que a decisão recorrida foi proferida em 1ª instância'.
Ora, como se referiu, o recorrente, no seu requerimento de interposição do recurso apenas suscita a inconstitucionalidade do nº4 do artigo 2º do Código Penal, numa certa interpretação que ali, claramente, define. Não suscita a questão de inconstitucionalidade de qualquer outra norma.
O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do preceituado da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Neste tipo de recurso, para que o Tribunal possa tomar conhecimento do seu objecto é indispensável que: a) a inconstitucionalidade da norma tenha sido suscitada durante o processo pelo recorrente; b) tal norma tenha sido utilizada na decisão recorrida como seu suporte normativo.
Sobre os recorrente recai, assim, o ónus de suscitar, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade das normas convocadas e aplicadas pela decisão, sendo de salientar que a norma cuja constitucionalidade se questiona tem de ser um dos seus fundamentos decisórios, tem de constituir a ratio decidendi do acórdão impugnado.
A decisão recorrida do STJ, ao decidir não tomar conhecimento do recurso, não faz qualquer espécie de pronúncia, positiva ou negativa, expressa ou implícita, sobre o fundo da questão; isto é, o mérito do recurso interposto da decisão da Relação (aplicação do artigo 2º, n.º4 do Código Penal), não é de qualquer modo controlado, ainda que o não conhecimento do recurso signifique, de facto, a manutenção do decidido do tribunal «ad quem».
Assim sendo, é manifesto que a decisão recorrida do STJ não aplicou a norma cuja constitucionalidade o recorrente suscitara, não tendo o recorrente suscitado a inconstitucionalidade da norma que efectivamente o STJ aplicou como fundamento normativo da sua decisão - o artigo 432º do CPP -, que, como expressamente reconhece, só veio a identificar nas alegações apresentadas já neste Tribunal.
Tem, portanto, de se concluir que a questão prévia suscitada pelo Ministério Público tem de ser deferida. III – DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
6 unidades de conta.
Lisboa, 13 de Julho de 1999 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida