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Proc. 133/03
1ª Secção Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional: A, de nacionalidade francesa, interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que negou provimento ao recurso interposto de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que decidiu conceder a extradição para a República Francesa do ora recorrente. O objecto do recurso foi delimitado nos seguintes termos:
'...na inconstitucionalidade dos artºs 6º, n.º2, alínea b) e 44º, n.º1, alínea c), ambos da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, por violação dos artºs 30º, nº.1 e
33º, n.º5 da Constituição da República Portuguesa de 1976, inconstitucionalidade essa suscitada já no recurso ...' O Recorrente formulou as seguintes conclusões, na sua alegação perante este Tribunal Constitucional: a. O Estado Francês requereu a extradição do ora recorrente para ser julgado por factos ocorridos no dia 20 de Fevereiro de 2002, correspondendo a esses factos a pena de prisão perpétua; b. O recorrente veio para Portugal após se ter evadido de cadeia francesa em que cumpria pena de prisão perpétua (que já o mantivera na prisão por mais de
19 anos consecutivos), que lhe fora aplicada por decisão já transitada em julgado; c. O pedido de extradição do ora recorrente foi deferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, decisão que foi confirmada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça aqui sob recurso, com base na Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, designadamente nos seus artºs 6º, n.º2, alínea b) e 44º, n.º1, alínea c), normas cuja inconstitucionalidade foi oportunamente suscitada, com referência aos artºs
30º, n.º1 e 33º, n.º5 da Constituição da República Portuguesa de 1976; d. As normas questionadas de acordo com a interpretação que lhes foi fixada pela Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça consentem a extradição desde que haja a mera possibilidade de, em abstracto (que não no caso concreto, atentos os antecedentes criminais do arguido e a sua pretérita condenação em pena de prisão perpétua com suspensão definitivamente revogada) a pena de prisão perpétua vir a ser suspensa na sua execução após 15 anos de bom comportamento no cárcere (situação inaplicável ao ora recorrente); e. Aquelas normas da Lei n.º 144/99 consentem ainda a extradição mediante a invocação pelo Estado requerente de dados estatísticos segundo os quais os condenados a prisão perpétua 'apenas' cumprem 17 anos e 2 meses, sem explicitar a causa dessa média e quantas penas se extinguem – contribuindo para a estatística e para a média dos 17 anos e 2 meses – pela morte do recluso; f. O Estado requerente não garantiu – e as normas sob crítica de constitucionalidade não obrigaram a que fosse exigida essa garantia – que o ora recorrente: 1) não será condenado a (nova) pena de prisão perpétua; 2) essa pena não será executada e 3) o ora recorrente uma vez extraditado, e independentemente do resultado do julgamento pelos factos ocorridos em 20 de Fevereiro de 2002, não irá cumprir a pena de prisão perpétua em que se encontra definitivamente condenado e que não foi objecto do pedido de extradição; g. As normas constantes da alínea b) do n.º2 do art.º 6º e da alínea c) do n.º1 do art.º 44º da Lei n.º 144/99, de 31/8, não salvaguardam o princípio fundamental consagrado no art.º 30º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa, nem asseguram a efectividade da garantia constante no n.º5 do art.º
33º da mesma Lei que vedam a extradição quando não haja garantia de que o extraditado vá ser condenado a cumprir pena de prisão perpétua, sendo pois tais normas inconstitucionais.' Termina pedindo que, em consequência do provimento do recurso, se declare: A) a inconstitucionalidade da alínea b) do n.º2 do art.º 6º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, por violação dos artºs 30º, nº.1 e 33º., n.º 5 da Constituição da República Portuguesa de 1976, quando interpretada no sentido de que a
'garantia de que a pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida' pode ser integrada por: 1) Declaração abstracta com remissão para Lei que prevê a possibilidade de, após um período de regime de prova de 15 anos, vir a beneficiar de uma medida de liberdade condicional, acrescida de 2) elementos estatísticos de autor e edição ignorados de acordo com os quais a 'média de prisão efectivamente cumprida pelas pessoas condenadas a pena de prisão perpétua se eleva a 17 anos e 2 meses. B) a inconstitucionalidade da alínea c) do n.º1 do art.º 44º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, por violação dos artºs 30º, n.º1 e 33º, n.º5, ambos da Constituição da República Portuguesa de 1976, quando interpretada no sentido de fazer equivaler a 'garantia formal de que a pessoa reclamada não será extraditada para cumprimento de pena por factos diversos dos que fundamentarem o pedido que lhe sejam anteriores ou contemporâneos' a mera declaração do Estado requerente da extradição de que esse pedido se reporta unicamente aos factos ocorridos em determinado e concreto momento sem qualquer garantia de que, uma vez extraditado não irá cumprir quaisquer das penas porque já havia sido condenado (e até já começado a cumprir) no momento em que entrou em território português. Na sua contra-alegação, o Ministério Público sustentou, porém, que no aresto recorrido não foi feita aplicação das normas a que se reporta o recurso, concluindo da seguinte forma:
1- A decisão recorrida, ao analisar o recurso interposto pelo extraditando, apenas aplicou à dirimição do caso as normas de direito convencional internacional vigentes – e vinculativas dos Estados Português e Francês – e não a disciplina subsidiariamente estabelecida na Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, para os casos em que não exista ou esteja em vigor uma convenção internacional.
2- Termos em que não deverá conhecer-se do recurso, por inverificação de um dos seus pressupostos: a efectiva aplicação da norma cuja constitucionalidade é suscitada pelo recorrente.
O Recorrente foi ouvido sobre esta questão. Respondeu, em suma, que 'qualquer que seja a norma e a fonte de que provenha, se [a decisão de autorizar a extradição] permitir o que a Constituição proíbe, há-de ser inconstitucional'. Ora, o Recorrente não podia antecipar o juízo do Supremo Tribunal de Justiça quanto às normas jurídicas aplicadas na decisão. Por isso, a norma 'que regula as condições de admissibilidade de recurso' [não identifica essa norma] seria
'ela própria inconstitucional', pois desta maneira ficaria 'aberto o caminho' para que a questão de inconstitucionalidade nunca fosse apreciada, 'bastando para o efeito que o Tribunal de recurso aplique norma diferente daquela que fez uso o Tribunal recorrido, conseguindo, através deste estratagema [sic] o mesmo fim'. No presente caso, prossegue, sendo 'vital que não se perca de vista que as normas aplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça que permitem a extradição do recorrente são inconstitucionais', e ainda que se 'o n.º 5 do art. 75º-A da LTC determina que se, entre outras coisas, faltar nas alegações a indicação da norma cuja inconstitucionalidade é suscitada o recorrente deverá ser convidado para aperfeiçoar as suas alegações, por maioria de razão, quando a indicação da norma criticada sob o ponto de vista da sua conformidade à Constituição não corresponder à norma aplicada na decisão recorrida terá de ser o recorrente convidado a esclarecer a questão'. E termina requerendo:
'E assim, mantendo todo o raciocínio lógico e as suas conclusões expendidas na petição do recurso, o recorrente procede à sua correcção, indicando como normas cuja conformidade à Constituição pretende ver apreciadas por este Tribunal as seguintes: a) Art. 14º n.º 1 da Convenção Europeia de Extradição de 13.12.1957; b) Alínea c) do art. 1º da Convenção Europeia de Extradição e 13.12.1957, e c) Art. 5º do Acordo de Adesão, ratificado por Decreto do Presidente da República n.º 55/93 de 25 de Novembro, que ratificou a Convenção de Aplicação do Acordo de Shengen. Pois, essas normas - na interpretação que consentem de ser decretada a extradição sem que haja garantias de que o extraditado não irá cumprir pena de prisão perpétua - violam os arts 30º n.º 1 e 33º n.º 5, ambos da Constituição da República Portuguesa.'
Importa decidir. Deve começar-se, naturalmente, por analisar a questão da admissibilidade do recurso que vem suscitada pelo Ministério Público. O recurso interposto pelo Recorrente, previsto na alínea b) do n.º1 do art.º 70º da LTC, cabe das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. A apreciação do recurso interposto está assim condicionada à efectiva aplicação na decisão recorrida da norma cuja inconstitucionalidade vem suscitada. No caso concreto, a verificação daquele pressuposto implica a demonstração de que a decisão recorrida aplicou e como razão de decidir, os artigos 6º, n.º2, alínea b) e 44º, n.º1, alínea c) da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto – normas sobre as quais o Recorrente pretende que recaia o juízo de constitucionalidade. Mas verdade é que o fundamento jurídico do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça para negar provimento ao recurso interposto pelo ora Recorrente foi encontrado não nas aludidas normas mas nas convenções internacionais de que são Partes Contratantes os Estados Português e Francês; não foi, em suma, aplicada a normação subsidiária constante da Lei 144/99 de
31AGO, como ilustra o seguinte trecho do aresto em causa: Conforme estabelece o artº 8º, n.º2, da Constituição da República, as normas constantes das convenções internacionais regularmente ratificadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português. Por sua vez, o n.º1 do artº 3º, da Lei n.º 144/99, de 31.8, estabelece que 'As formas de cooperação a que se refere o artigo 1º regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculam o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma.' Perante tudo quanto acabe de ficar exposto, não pode haver dúvidas de que se encontra em vigor na ordem interna portuguesa as Convenções referidas, com a limitação constante do artº 5º do Acordo de Adesão.
É assim certo que o acórdão recorrido não fez efectiva aplicação das normas em que o Recorrente estriba o seu recurso, não podendo, por isso, tais normas constituir o objecto do pedido de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da LTC. E não parece que possa ser de difícil apreensão a razão de ser desta solução, se se tiver em linha de conta que o recurso para este Tribunal é, nos termos do n.
6 do artigo 280º da Constituição, 'restrito à questão da inconstitucionalidade':
é que, para além do mais, seria então perfeitamente inútil uma pronúncia de inconstitucionalidade normativa que deixasse intacta a razão de decidir do aresto sob recurso e, consequentemente, a própria decisão recorrida.
É, pelas mesmas razões, fácil aceitar que o recurso para o Tribunal Constitucional só possa ser admitido quando o interessado pretenda impugnar as normas que suportam juridicamente a decisão que lhe é desfavorável e ainda que, para esse efeito, lhe caiba o ónus de identificar com precisão os preceitos legais que encerram tais normas (o objecto do pedido, afinal), como condição de procedibilidade daquela impugnação. Por isso, tem este Tribunal sempre entendido - e aqui se responde a um outro argumento do Recorrente - que nos casos em que o tribunal de última instância faz uma inesperada aplicação de normas que não hajam constituído instrumento jurídico de anteriores decisões emitidas no processo, ao interessado é lícito impugnar tais normas suscitando, ainda que pela primeira vez nesse processo, a questão da respectiva inconstitucionalidade perante o Tribunal Constitucional. Nem poderia ser de outra forma, como é bem de ver! Tendo em atenção este regime, logo se afigura evidente a desrazoabilidade do pedido ora formulado pelo Recorrente quanto à alteração do objecto do recurso. De facto, tal pedido não tem qualquer cobertura legal, sendo aqui inaplicável a disciplina procedimental prevista - para situações bem diversas - do artigo
75º-A da LTC. Na verdade, a situação é muito simples: perante o acórdão emitido pelo Supremo Tribunal de Justiça, que lhe é desfavorável, ao Recorrente cabia a faculdade de o impugnar visando a apreciação da inconstitucionalidade das normas jurídicas que constituem o seu fundamento jurídico; acontece que, em lugar de aproveitar correctamente esta faculdade, o Recorrente optou por impugnar normas que manifestamente não constituem o fundamento jurídico dessa decisão; neste cenário, é ao próprio Recorrente que deve ser imputado o resultado processual que ele descreve (com alguma infelicidade, aliás) como sendo um propósito da
'Justiça Portuguesa': o 'de julgar válida a sua extradição'. Pelo exposto acordam em não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo Recorrente; taxa de justiça: 8 UC Lisboa, 3 de Abril de 2003 Carlos Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa