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Proc. n.º 55/03 Acórdão nº
124/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A e B deduziram reclamação, ao abrigo do disposto no artigo 76º, n.º
4, da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho da Relatora que, no Tribunal da Relação de Lisboa, não admitiu o recurso que pretendiam interpor para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, através do qual se decidiu confirmar a sentença da 1ª instância que decretara o despejo do imóvel de que são arrendatários.
2. Resulta dos autos que:
2.1. C e D intentaram no Tribunal Judicial de Sintra acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário contra A e B, pedindo que seja declarada a denúncia do contrato de arrendamento celebrado entre os autores e os réus.
Os autores alegaram que são proprietários do imóvel dado de arrendamento aos réus, situado em Algueirão, Mem Martins, e invocaram como fundamento da denúncia a necessidade do imóvel para habitação própria, uma vez que, sendo emigrantes em França, tencionam regressar a Portugal e fixar residência no Algueirão (nos termos do artigo 69º, n.º 1, alínea a), do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro).
2.2. Por sentença de 20 de Novembro de 2001 (fls. 24 e seguintes dos presentes autos de reclamação), o Tribunal Judicial de Sintra julgou a acção procedente e decretou a denúncia do arrendamento para o termo da renovação contratual (1 de Abril de 2002), com o consequente despejo dos réus, decorridos três meses.
2.3. Inconformados, A e B interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo invocado, entre o mais, nas suas alegações:
'[...]
11. A sentença em causa interpretou a norma contida na alínea a) do art. 69º do D.L. n.º 321-B/90 de 15 de Outubro no sentido de que, para proceder à denúncia para habitação própria, basta ao senhorio provar que tem intenção ou que tem vontade de ir morar para essa casa ou para essa zona,
12. e não no sentido de que tem de convencer o Tribunal de que há razões ponderosas para o querer fazer.
13. Tal interpretação choca com a jurisprudência habitual dos nossos Tribunais no julgamento de situações similares e é claramente inconstitucional por ofensa dos princípios da igualdade, segurança e protecção da família contidos nos arts.
13º, n.º 1, 27º, n.º 1 e 67º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
14. A sentença em causa, para além de violar as referidas normas constitucionais, fez errada interpretação ou não tomou em conta o preceituado nos arts. 511º, n.º 1, 646º, n.º 4, do C.P.C. e alínea a) do art. 69º do D.L. n.º 321-B/90 de 25 de Outubro.
[...].'
2.4. Por acórdão de 12 de Julho de 2002 (fls. 40 e seguintes), o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu manter a sentença impugnada, impondo aos autores o pagamento de uma indemnização aos réus, correspondente a dois anos e meio de renda à data do despejo.
Lê-se no texto desse acórdão:
'A necessidade da casa tem de ser séria e actual, mas também pode ser futura, desde que comprovada, mas sempre posterior à celebração do contrato.
É indispensável [...] a necessidade sobrevinda ao senhorio de reaver o prédio para resolver a carência da sua habitação. A lei exige que o senhorio tenha necessidade de habitação mas não exige que a não tenha o arrendatário, nem possibilita que se indague qual deles tem maior necessidade de habitação. Prevalece a necessidade do senhorio. As necessidades do locador e do locatário são ambas, em abstracto merecedoras de igual respeito; não é mais respeitável uma que a outra. Mas concretamente a lei faz prevalecer a do senhorio. Necessitando o locador da sua casa para solucionar as necessidades da sua habitação, cessa o proteccionismo excepcional de que goza o locatário, que tem o monopólio da denúncia que a lei lhe confere [...]
[...] Fazendo prova no caso vertente, que o senhorio já se reformou, regressou de França e reside em Portugal, pretende o arrendado, está provada a necessidade. Há nos autos, várias cartas, de onde se extrai tal conclusão. Alegaram os autores, que necessitam da casa e que não têm outra, na área em que se situa o locado.
[...]
[...] tinham intenção, como qualquer emigrante, de regressar aquando da reforma.
[...] Tanto era essa a sua intenção, que já se encontram em Portugal a tempo inteiro, e não como os apelantes alegaram, só por vários meses.
[...] O que a lei exige é que, na localidade do arrendado, não tenha casa própria ou arrendada, não se prevê no art. 71, n.º 1, al. b) do RAU, que o senhorio não tenha outra residência, no resto do país própria ou arrendada. Cabendo aos autores a prova de que necessitam do prédio para a sua habitação, o que fizeram, não se verificando as causas de exclusão ou limitações ao direito de denúncia, parece que nada havia a fazer a não ser julgar a acção procedente.
[...].'
2.5. A e B interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional, invocando como fundamento a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, 'pretendendo que seja apreciada a inconstitucionalidade das normas constantes do artº 69º, al. a), do D.L. 321-B/90 de 15 de Outubro e dos artºs 511º, n.º 1 e 646º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil'
(requerimento de fls. 45 e seguinte).
Invocaram nesse requerimento:
'[...] A inconstitucionalidade da interpretação que foi dada a estas normas foi invocada pelos recorrentes nas conclusões referidas sob os pontos números 11,
12, 13 e 14 das suas alegações de recurso para este Tribunal da Relação de Lisboa. Com efeito, a interpretação dada àquelas normas pelo Tribunal de 1ª instância, confirmada por esta Relação, no sentido de que tendo sido instaurada uma acção de despejo para denúncia do contrato para habitação própria, basta ao senhorio provar que tem apenas intenção ou vontade de ir morar para a casa arrendada ou para essa zona, não sendo necessário provar factos que revelem razões ponderosas para o querer fazer, isto é, factos que integram o conceito de necessidade do prédio, é claramente inconstitucional, violando o disposto nos arts. 13º, n.º 1,
27º, n.º 1 e 67º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
[...].'
2.6. Notificados, nos termos do artigo 75º-A, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional, para completar o requerimento de interposição do recurso, os recorrentes responderam através do requerimento de fls. 48, nos seguintes termos:
'[...] tal norma é a constante do art. 69º, n.º 1, al. a) do DL 321-B/90 de 15 de Outubro (RAU), a qual foi interpretada nos presentes autos no sentido de que o conceito de necessidade expressamente previsto na mesma fica preenchido com a declaração de intenção por parte do senhorio de que pretende ir viver para o arrendado, não sendo essencial para que tal requisito se verifique alegar e provar factos concretos subsumíveis a esse conceito e que permitam ao tribunal avaliar se está perante um simples capricho do senhorio ou uma situação de carência habitacional por parte do mesmo. Ora, a inconstitucionalidade de tal interpretação foi invocada pelos recorrentes, quer na parte expositiva das suas alegações do recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, de cujo acórdão já não há recurso ordinário, quer nas respectivas conclusões (11ª, 12ª, 13ª, 14ª), por a mesma violar as normas previstas nos arts. 13º, n.º 1, 27º, n.º 1 e 67º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
[...].'
2.7. Por despacho de 28 de Outubro de 2002 (fls. 49), a Relatora, no Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional 'uma vez que a inconstitucionalidade não foi arguida nos articulados mas apenas nas alegações de recurso'.
2.8. A e B vieram deduzir reclamação do despacho de não admissão do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 2 a 7), com a seguinte fundamentação:
'[...] os ora reclamantes, aquando do seu juízo de prognose sobre a interpretação da aludida norma (al. a) do n.º 1 do art. 69º do R.A.U.), não contavam e não era previsível que contassem com a interpretação «anómala» que veio a ser feita da referida norma, pelo que é manifesto que a questão foi suscitada «durante o processo», ou seja, antes do Tribunal recorrido ter proferido a decisão final. Com efeito, é jurisprudência e doutrina corrente e praticamente uniformes que a demonstração do conceito de necessidade existente na norma em causa, depende da alegação e prova de factos concretos, a partir dos quais o Tribunal possa concluir que o senhorio precisa efectivamente da casa [...]. Assim sendo, não se mostra adequado exigir dos reclamantes, nem era previsível no caso concreto, um qualquer juízo de prognose antecipado por parte dos então contestantes no sentido de suscitarem a questão da inconstitucionalidade da norma em causa, logo em sede de contestação na 1ª instância, pois não era de prever que o Mº Juiz fosse interpretar tal norma no sentido em que o fez, ou seja, de que basta ao senhorio provar que tem intenção ou vontade de ir morar para a casa arrendada para que se considere preenchido o conceito de necessidade expressamente previsto na norma em causa. Atente-se aliás que o próprio Mº Juiz a quo, aquando da elaboração das respostas
à matéria de facto, na fundamentação às mesmas, escreveu que «ressaltou a exiguidade de prova oferecida relativamente ao cerne da lide, isto é, a necessidade do locado para a habitação própria (...)», o que manifestamente reforça a conclusão que a interpretação da norma em causa foi feita de forma insólita e imprevisível. Só perante uma interpretação inesperada e feita ao arrepio da jurisprudência e doutrina existentes sobre essa matéria é que os reclamantes se viram confrontados com o problema de interpretação inconstitucional feita pelo julgador relativamente à norma em causa. E, de pronto, no primeiro momento processual em que tiveram oportunidade de o fazer, ou seja, nas alegações de recurso de apelação que interpuseram no Tribunal da Relação de Lisboa, os ora reclamantes suscitaram expressamente a questão da aludida inconstitucionalidade, sobre a qual aliás o acórdão da Relação veio a pronunciar-se, embora em sentido desfavorável para os ora reclamantes.
[...].'
2.9. A Relatora, no Tribunal da Relação de Lisboa, manteve o despacho reclamado (fls. 9).
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que a presente reclamação é improcedente, 'embora por motivo diferente do invocado no despacho reclamado' (fls. 51 vº a 52 vº).
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Os ora reclamantes pretendiam interpor recurso de constitucionalidade da decisão proferida nos autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
A Relatora, no Tribunal da Relação de Lisboa, não admitiu o recurso, por entender que, tendo a inconstitucionalidade sido invocada apenas nas alegações de recurso para a Relação e não nos articulados, não é admissível o recurso para o Tribunal Constitucional.
5. O artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional exige, quanto a determinados tipos de recursos de constitucionalidade – entre os quais se conta o que foi interposto pelos ora reclamantes –, que os recorrentes suscitem a questão da inconstitucionalidade 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (itálico aditado).
No caso dos autos, os ora reclamantes suscitaram a questão de inconstitucionalidade nas alegações produzidas perante o Tribunal da Relação de Lisboa, ou seja, perante o tribunal que proferiu a decisão de que pretendiam recorrer para o Tribunal Constitucional.
Neste aspecto, pode dizer-se que a inconstitucionalidade foi invocada perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Não procede portanto a razão invocada pelo Tribunal da Relação de Lisboa para a rejeição do recurso de constitucionalidade interposto pelos ora reclamantes.
6. Todavia, há que averiguar se estão verificados todos os pressupostos processuais do recurso interposto, já que, ao decidir a reclamação, a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 77º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional.
Sendo o presente recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constituem seus pressupostos:
– que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou de uma determinada interpretação da norma) que pretende ver apreciada por este Tribunal;
– que essa norma (ou a norma com essa interpretação) tenha sido aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
7. Tal como delimitado pelos ora reclamantes na resposta ao despacho de aperfeiçoamento (supra, 2.6.), o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade teria como objecto a norma constante do artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei n.º
321-B/90, de 15 de Outubro, interpretada no sentido de que 'o conceito de necessidade expressamente previsto na mesma fica preenchido com a declaração de intenção por parte do senhorio de que pretende ir viver para o arrendado, não sendo essencial para que tal requisito se verifique alegar e provar factos concretos subsumíveis a esse conceito e que permitam ao tribunal avaliar se está perante um simples capricho do senhorio ou uma situação de carência habitacional por parte do mesmo'. Essa interpretação violaria os artigos 13º, n.º 1, 27º, n.º
1, e 67º, n.º 1, da Constituição.
7.1. Ora, importa começar por reconhecer que só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional surge equacionada deste modo a questão de inconstitucionalidade.
Nas alegações que apresentaram perante o Tribunal da Relação de Lisboa os ora reclamantes não configuraram uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa, tendo imputado a inconstitucionalidade à própria decisão então recorrida – a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Sintra.
Na verdade, expressaram-se assim os ora reclamantes nessas alegações: 'a sentença em causa, para além de violar as referidas normas constitucionais [artigos 13º, n.º 1, 27º, n.º 1, e 67º, n.º 1, da Constituição], fez errada interpretação ou não tomou em conta o preceituado nos arts. 511º, n.º
1, 646º, n.º 4, do C.P.C. e alínea a) do art. 69º do D.L. n.º 321-B/90 de 25 de Outubro' (conclusão 14ª das alegações, supra, 2.3.).
Aliás, o que os reclamantes verdadeiramente contestam não é o critério normativo acolhido na decisão quanto ao conceito indeterminado de
'necessidade de habitação', utilizado na norma questionada, mas a concretização de tal conceito feita nas decisões proferidas nos autos.
7.2. De todo o modo, e decisivamente, à norma impugnada não foi atribuído no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa o sentido indicado pelos ora reclamantes e por eles considerado inconstitucional.
Com efeito – ao contrário do que pretendem os ora reclamantes –, o Tribunal da Relação de Lisboa não prescindiu da referência a 'factos concretos' susceptíveis de demonstrar a 'situação de carência habitacional' por parte do senhorio, isto é, não considerou suficiente para dar como verificada a
'necessidade de habitação' uma mera 'declaração de intenção por parte do senhorio de que pretende ir viver para o arrendado'.
É o que resulta claramente, desde logo, das seguintes passagens do acórdão (supra, 2.3.):
– 'Fazendo prova no caso vertente, que o senhorio já se reformou, regressou de França e reside em Portugal, pretende o arrendado, está provada a necessidade';
– 'Cabendo aos autores a prova de que necessitam do prédio para a sua habitação, o que fizeram, não se verificando as causas de exclusão ou limitações ao direito de denúncia, parece que nada havia a fazer a não ser julgar a acção procedente'.
8. Conclui-se assim, tal como no parecer emitido neste Tribunal pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, que não estão verificados os pressupostos processuais do tipo de recurso interposto.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2003 Maria Helena Brito Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida