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Proc. n.º 771/02 Acórdão nº 125/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 472 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A, pelos seguintes fundamentos:
'[...]
7. Constitui pressuposto processual do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pelo recorrente – a aplicação, pelo tribunal recorrido, da norma cuja inconstitucionalidade o recorrente suscitou no processo e que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. No presente caso, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional do Regulamento aprovado pela Associação dos Técnicos Oficiais de Contas – particularmente de certas normas nele contidas –, conforme decorre do requerimento de fls. 458 e v.º (supra, 6.). Todavia, tal Regulamento não foi aplicado pelo tribunal recorrido. Como com clareza decorre do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29 de Janeiro de 2002, bem como dos acórdãos que posteriormente indeferiram os pedidos de aclaração e de declaração de nulidade (supra, 5.), o tribunal recorrido limitou-se a aplicar o artigo 1º da Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, tendo concluído que o recorrente, face aos elementos de prova que forneceu, não poderia ser inscrito como técnico oficial de contas ao abrigo deste preceito. Considerou mesmo o tribunal recorrido ser despiciendo, para a decisão da causa, apurar se as normas do Regulamento que interpretou a aplicação daquela lei sofriam ou não das inconstitucionalidades e ilegalidades que o recorrente lhes imputava, atendendo a que o seu pedido sempre seria indeferido por não cumprir certo pressuposto fixado na Lei que o Regulamento pretendeu interpretar (cfr. fls. 387, 420-422 e 453-454). Não tendo o tribunal recorrido aplicado as normas do Regulamento cuja conformidade constitucional o recorrente questiona, mas apenas o mencionado preceito da Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, é evidente que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do presente recurso, por falta de preenchimento de um dos seus pressupostos processuais.
[...].'
2. Notificado desta decisão sumária, A dela reclamou para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nos termos e com os fundamentos seguintes (fls. 490 e seguinte):
'[...]
1. Com todo o respeito, não se aceita, nem se conforma o recorrente com a douta posição adoptada pela Exma. Snrª. Juíza Conselheira-Relatora.
2. Na verdade, a última coisa que o recorrente esperava, era que pudesse ser o Tribunal Constitucional a pactuar com um cerceamento no acesso ao Direito, se não mesmo com uma verdadeira denegação de justiça.
[...]
4. O que está em causa é um acto administrativo praticado pela Comissão de Inscrição da ATOC, que indeferiu, ou negou, o pedido de inscrição do recorrente na ATOC.
5. Ora, em que termos o faz e quais as disposições normativas que esse acto aplicou?
6. A resposta é simples: – A Lei 27/93, de 3 de Junho, no seu art. 1° estabelecia os requisitos para essa inscrição: – ter sido durante pelo menos três anos, seguidos ou interpolados, responsável directo por contabilidade organizada.
7. Não estabelecia, nem tinha de estabelecer aquela lei, a forma como se faria a prova daqueles requisitos, naturalmente deixando isso para os princípios gerais e para a amplitude dos meios de prova em direito permitidos.
8. Só que a Comissão Instaladora da ATOC, de forma de todo ilegal e inconstitucional, e sem ter competência para tanto, decidiu emitir o Regulamento que foi junto com a petição como doc. 5 cujos arts. 1°, 2° e 3° sofrem de manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade.
9. Ora, foi este Regulamento, que o acto administrativo impugnado nos autos aplicou, como se pode ver pelo ofício junto à petição como doc. 1, onde se refere expressamente:
«De acordo com aquele Regulamento a prova da responsabilidade directa pela contabilidade organizada durante o período considerado relevante terá de ser feita através da entrega com o requerimento de inscrição de cópias autenticadas de declarações modelo 22 do IRC e/ou o anexo C às declarações modelo 2 do IRS, assinadas pelo profissional de contabilidade no quadro destinado pelas mesmas aí responsável pela escrita».
10. Isto é do mais bloqueador do acesso à profissão, já que, ao tempo, além do mais, as declarações fiscais em causa não tinham de ser assinadas pelos profissionais de contabilidade, como se decidiu, e bem, no Acórdão do S.T.A., de
16.04.2002, proferido no Proc. n° 48.397, da 2ª Subsecção, da 1ª Secção, de que se junta cópia (DOC. 1).
11. Ora, o Acórdão sob recurso, ao confirmar a sentença da 1ª Instância, é óbvio que, pelo menos implicitamente, aplicou o Regulamento cuja ilegalidade e inconstitucionalidade foi suscitada nos autos.
12. O que o Acórdão decidiu efectivamente é que o recorrente não podia ser admitido na ATOC porque não apresentara os documentos que o Regulamento em causa exige, de nada valendo ao Acórdão em causa dizer que aplica tão só a Lei 27/98, pois essa admitia todo e qualquer meio de prova, o que foi vedado ao recorrente, porque se aceitou as restrições do Regulamento.
13. Assim sendo, como é, e com o devido respeito, constitui um artifício falacioso dizer que se aplicou tão só a Lei, quando se aplicou, de facto, o Regulamento, já que se a lei dissesse o que diz o Regulamento, para além dos demais vícios deste, também era inconstitucional.
[...].'
A recorrida não respondeu à reclamação (fls. 493 v.º).
Cumpre apreciar.
II
3. Alega o reclamante, em primeiro lugar, que o acto administrativo praticado pela Comissão de Inscrição da Associação de Técnicos Oficiais de Contas (ATOC) – que indeferiu o pedido de inscrição do recorrente na ATOC – aplicou um Regulamento, emitido pela Comissão Instaladora da ATOC, que contém preceitos que sofrem de manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade (n.º s 4 a
9 da reclamação).
Simplesmente, a alegada circunstância de o referido acto administrativo ter aplicado o mencionado Regulamento é irrelevante para a decisão da presente reclamação.
Aquilo que competiria ao reclamante demonstrar era que a decisão judicial da qual interpôs recurso para o Tribunal Constitucional aplicou o questionado Regulamento, estando, consequentemente, preenchido o pressuposto processual cuja falta se havia assinalado na decisão sumária ora reclamada – a aplicação, pela decisão recorrida, da norma cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Ora tal demonstração manifestamente não resulta da afirmação de que o acto administrativo impugnado nos autos aplicou o Regulamento. Sendo o acto administrativo e a decisão judicial realidades diversas, não pode inferir-se que, tendo no acto administrativo sido aplicada certa norma, necessariamente na decisão judicial ela também foi aplicada. Especialmente quando é a própria decisão judicial a considerar ser tal norma irrelevante para a apreciação de certa questão, como sucedeu com a decisão recorrida.
4. Em segundo lugar, invoca o reclamante um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Abril de 2002, proferido no processo n.º 48.397, da 2ª Subsecção, de que afirma juntar cópia (n.º 10 da reclamação). Tal cópia não foi junta com a reclamação, mas o reclamante está certamente a referir-se ao acórdão cuja cópia se encontra junta ao processo a fls. 427-437. Neste acórdão, considerou-se ilegal a limitação dos meios de prova dos requisitos estabelecidos no artigo 1º da Lei n.º 27/98. Mas não se alcança em que medida a doutrina estabelecida em tal acórdão tem repercussão na questão que agora cumpre resolver e que é a de saber se a decisão ora recorrida aplicou o Regulamento da ATOC e se, portanto, está preenchido um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional.
5. Em terceiro lugar, alega o reclamante que a decisão recorrida, na medida em que confirmou a sentença da 1ª instância e não admitiu todo e qualquer meio de prova, pelo menos implicitamente aplicou o Regulamento cuja inconstitucionalidade foi suscitada nos autos (n.º s 11 e 12 da reclamação). Não se alcança também qual a base de sustentação de tal tese, atendendo a que – como já atrás se disse – é a própria decisão judicial recorrida a considerar ser tal Regulamento irrelevante para a apreciação da questão que tinha de apreciar, bem como a considerar que os elementos de prova fornecidos pelo ora reclamante apontavam no sentido do não preenchimento de um pressuposto fixado na lei para a sua inscrição como técnico oficial de contas. Efectivamente, diz-se nessa decisão (fls. 382 e seguintes) o seguinte:
'[...] Demonstrado, pois, que o recorrente nunca poderia ser inscrito como técnico oficial de contas ao abrigo do art. 1º da Lei 27/98 de 3 de Junho, é de todo despiciendo apurar se as normas do Regulamento que interpretou a aplicação daquela Lei sofrem, ou, não, das inconstitucionalidades ou ilegalidades que o recorrente lhe imputa, uma vez que, independentemente das normas fixadas naquele Regulamento, o seu pedido de inscrição teria que ser sempre indeferido por não cumprir o pressuposto fixado na Lei que o Regulamento pretendeu interpretar. Efectivamente, estando em causa a impugnação de um acto administrativo e o apuramento da verificação ou não verificação dos pressupostos vinculados estabelecidos no art. 1º da Lei 27/98 de 3 de Junho e concluindo-se pela não verificação de um dos pressupostos vinculados aí fixados, não há que ter em conta a apreciação de quaisquer ilegalidades ou inconstitucionalidades apontadas ao referido Regulamento, não se pondo, sequer a questão de terem que ser ponderados princípios gerais da actividade administrativa, como seria o caso de se estar, por parte da Administração, no uso de poderes discricionários, perante norma que o permitisse.
[...].'
6. Finalmente, alega o reclamante que se a lei dissesse o que diz o Regulamento, para além dos demais vícios deste, seria também inconstitucional
(n.º 13 da reclamação).
Este argumento também nada releva para a decisão da presente reclamação. Na verdade, se a lei aplicada no acórdão recorrido coincidisse com o Regulamento e fosse inconstitucional, competiria ao reclamante pedir ao Tribunal Constitucional que apreciasse a conformidade constitucional da norma dessa lei que tivesse sido aplicada na decisão recorrida, não lhe sendo permitido, à luz do que se dispõe na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, optar por requerer a apreciação do Regulamento, pela mera circunstância de, na sua perspectiva, o teor de tal Regulamento coincidir com o teor da lei.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária reclamada de não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2003 Maria Helena Brito Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida