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Procº nº 698/98.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Por apenso à execução pendente pelo 2º Juízo do Tribunal de comarca de Braga e que figuram, como exequente, D..., Ldª, e, como executada, A..., Ldª, veio esta última deduzir embargos de executado.
Após a prolação dos despacho saneador, especificação e questionário, a embargante requereu que, para prova de determinados quesitos, se oficiasse ao núcleo de Braga do Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e que se realizasse uma peritagem, o que, a seu tempo, veio a ocorrer.
Depois da audiência de julgamento, o tribunal colectivo do círculo de Braga deu por não provados alguns dos quesitos para cuja prova a embargante requereu a efectivação da peritagem e que se oficiasse ao dito Instituto, tendo fundamentado as respostas positivas aos quesitos dizendo que as mesmas se basearam 'na conjugação dos depoimentos das testemunhas a eles ouvidas e indicadas, salientando-se a forma isenta, clara e objectiva com que depuseram as testemunhas E..., AF... e J..., engenheiros actualmente ao serviço da D..., os quais demonstram conhecimento directo dos factos' e que '[p]ara formar a sua convicção, o tribunal levou em conta também a análise do teor de todos os documentos juntos aos autos'.
Por sentença de 14 de Fevereiro de 1996 foram os embargos julgados improcedentes, tendo do assim decidido recorrido a embargante para o Tribunal Relação do Porto que, por acórdão de 30 de Setembro de 1997, negou provimento ao recurso.
De novo inconformada, recorreu a A..., Ldª para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo, inter alia, na alegação que, então, produziu, concluído:-
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4ª - A decisão recorrida não analisa criticamente as provas, como exigido pelo artº 653º, nº 2, do CPC, na redacção do DL 39/95, de 15/2, não dando a mínima explicação para a discordância relativamente à peritagem e à informação do IAPMEI, apesar da especial credenciação dos seus autores, face às testemunhas empregadas da embargada e de tais elementos de prova terem sido requisitados ou promovidos pelo próprio Tribunal e não terem merecido impugnação de qualquer das partes. Por isso se mostra violado o disposto naquela disposição legal e ainda no artº 668º, 1, b) do referido CPC.
5ª - Interpretado de outro modo, este artº 668º, 1, b) do CPC, violaria o Princípio Constitucional da Fundamentação dos actos judiciais.
Aos Tribunais, quando admitem prova pericial, no entendimento de que se trata de matéria que escapa ao conhecimento comum, há-de exigir-se a fundamentação das razões de discordância das suas decisões em tal matéria face
às conclusões dos peritos.
6ª - São também as decisões das instâncias manifestamente infundadas em matéria de direito.
Sob pena de violação do referido princípio da fundamentação dos actos judiciais do artº 208º da Constituição o artº 668, 1, b) do CPC deverá ser interpretado no sentido de exigir dos Tribunais uma fundamentação de direito, no mínimo, tão exigente como a que é imposta às partes na formulação das respectivas alegações.
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Por acórdão de 14 de Maio de 1998, negou o Supremo Tribunal de Justiça provimento ao recurso.
Pode ler-se nesse aresto:-
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2. Nas duas primeiras conclusões, a recorrente enunciou acertadamente os princípios que regem os poderes deste STJ quanto ao conhecimento das questões de facto.
A aplicação que desses princípios fez ao caso em análise não merece, porém, a nossa concordância.
Em breves palavras, as regras são as seguintes:
- o tribunal colectivo aprecia livremente as prova, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; mas quando a lei exija, para a existência do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada - ...
- a decisão sobre a matéria de facto declarará quais os factos que o tribunal julga provados e não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador – art. 653º, nº 2 (redacção do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro);
- a Relação só pode alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto nos casos previstos no art. 712º, podendo, aliás, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta e podendo também – requerimento da parte – determinar que o tribunal de 1ª instância fundamente algum facto essencial para o julgamento da causa que não esteja devidamente fundamentado – art. 712º, nºs 1, 4 e 5;
- a Relação pode, porém, extrair dos factos provados as ilações que deles sejam desenvolvimento lógico;
- o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de questões de direito, devendo acatar a decisão sobre a matéria de facto (incluídas as ilações lógicas tiradas dos factos provados pela Relação) que apenas pode alterar no caso excepcional do nº 2 do art. 722º - art. 729º, do CPCivil, e art. 29º da LOTJ.
- o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode censurar o uso que a Relação tenha feito das faculdades que lhe são conferidas pelo art. 712º - verificando se ocorrem os pressupostos legais desse uso -, mas não o não uso, já que uma sindicância sobre o não uso implica obrigatoriamente o conhecimento das questões de facto;
- as alterações introduzidas ao Código de Processo Civil pelo citado DL 329-A/75, como aliás as introduzidas pelo DL 180/96, de 25 de Setembro, só entraram em vigor em 1 de Janeiro de 1997 e só se aplicam aos processos iniciados após essa data – art. 16º do citado DL 180/96 – e os presentes autos foram instaurados em 4 de Janeiro de 1994.
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3. Perante os princípios acabados de lembrar, caiem por terra todas as considerações sobre a matéria de facto suscitadas pela recorrente: o tribunal colectivo julgou segundo a sua consciência face às provas produzidas (do que, é evidente, não está excluída a prova pericial), e a fundamentação das respostas positivas satisfaz o exigido pelo art. 653º, nº 2, do CPCivil, e pelo art. 208º, nº 1, da Constituição (a lei basta-se com a menção os meios concretos de prova em se haja fundado a convicção dos julgadores - veja-se o disposto no nº 3 do art. 712º); a Relação não fez uso dos poderes conferidos pelo art. 712º
(inclusive no que se refere alegadamente à deficiência ou obscuridade das respostas dadas a alguns dos quesitos, nem extraiu quaisquer ilações dos factos provados.
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Assim, quanto à matéria de facto, remetemos para os termos da decisão da Relação que decidiu essa matéria - arts. 726º e 713º, nº 6, do CPCivil, e art. 16º, nº 2, do DL 329-A/95.
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2. Do assim decidido recorreu a A..., Ldª para o Tribunal Constitucional, dizendo, no requerimento de interposição de recurso, que pretendia que fosse 'declarada' a inconstitucionalidade das normas conjugadas dos artigos '668º, 1, b), e 653º, 2, do CPC no sentido de que na fundamentação das respostas dadas à matéria de facto o Tribunal actua segundo a sua prudente convicção, não tendo designadamente (e contrariamente ao que ocorre no Processo Penal – artº 163º, nº 2, do respectivo Código) de fundamentar a divergência relativamente ao juízo contido no parecer obtido em produção de prova pericial ou de informações requisitadas pelo Tribunal a entidades oficiais ou públicas'.
Por despacho do relator, e tendo em consideração o disposto no artº
3º, nº 3, do Código de Processo Civil, foi determinada a feitura de alegações, mas circunscrevendo-se o objecto do recurso tão só à norma ínsita no nº 2 do artº 653º do mesmo diploma, com o sentido interpretativo questionado pela recorrente, por isso que a norma constante do artº 668º, nº 1, alínea b), do mesmo corpo de leis, conjugada, ou não, com aqueloutra, não foi objecto de aplicação por banda do Supremo Tribunal de Justiça.
A recorrente concluiu a sua alegação do seguinte modo:-
'1º - O Princípio do Estado de Direito (do artº 2º da Constituição) exige que Justiça seja exercida como uma actividade lógica e fundamentada, orientada pela preocupação de se fazer inteligível.
Daí decorre que se o Tribunal considera que a apreensão ou o apuramento de determinados factos escapa ao conhecimento comum e, por isso, ordena que se proceda a uma perícia ou a um arbitramento para a respectiva prova, não é lógico que, ao decidir sobre a matéria dada por provada ou não provada, conclua contraditoriamente com a peritagem e não tenha de dar-se ao trabalho de justificar minimamente as razões de tal divergência.
2º - O mesmo Princípio também compreende o da Harmonização do Sistema Jurídico.
Ora, prescrevendo o artº 163º do CPP que:
1. O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2. Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência,
não se concebe admitir, face à Constituição, o entendimento sustentado pelo STJ no acórdão recorrido, de que no Processo Civil o julgador não tem de fundamentar a divergência entre a sua convicção e a do juízo técnico, científico ou artístico da perícia produzida nos autos.
3º - Aquele Princípio do Estado de Direito, quer enquanto pressupõe, em tal Estado, a Justiça como actividade lógica e fundamentada, orientada pela preocupação de se fazer inteligível, quer também enquanto determina a Harmonização do Sistema Jurídico, impõe que o Princípio da Fundamentação das Decisões Judiciais do artº 205º da Lei Fundamental se tenha por violado no entendimento de que a norma do artº
653º, nº 2, do CPC, na redacção do DL 39/95, de 15/12, admite que, na declaração dos factos dados por provados, o Tribunal não tem de fundamentar a divergência relativamente ao juízo contido no parecer unânime dos peritos, em produção de prova pericial. NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, CONCEDENDO PROVIMENTO AO RECURSO E DECLARANDO A INCONSTITUCIONA- LIDADE DA REFERIDA NORMA DO ARTIGO 653º, Nº 2, DO CPC, QUER NA REDACÇÃO DO DL 39/95, DE 15/12, QUER NA ACTUAL, POR VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO ESTADO DE DIREITO E DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS (ARTºS
2º E 205º DA LEI FUNADMENTAL no entendimento de admite que, na declaração dos factos dados por provados, o Tribunal não tem de fundamentar a divergência relativamente ao juízo contido no parecer unânime do peritos, em produção de prova pericial.'
De seu lado, a recorrida não apresentou qualquer alegação.
Corridos os «vistos», cumpre decidir.
II
1. O preceito onde se contém a norma questionada rezava assim, no domínio do Código de Processo Civil antecedentemente à redacção emergente dos Decretos-Leis números 329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 12 de Setembro, e após a redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro (e que veio a ser aquele que o Supremo Tribunal de Justiça convocou para a decisão):- Artigo 653.º
(Julgamento da matéria de facto)
1 -
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2 - A matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou sentença; de entre os factos quesitados, o acórdão ou sentença declarará quais o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.
3 -
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4 -
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5 -
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6 -
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Como se viu, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que do transcrito preceito, conjugado com o nº 1 do artº 655º do Código de Processo Civil, se havia de extrair que, ao julgar o tribunal segundo a sua consciência face à prova produzida, nesta se abarcará também a produzida pericialmente, sendo suficiente, para os efeitos desse preceito, a indicação dos meios concretos de prova em que se haja fundado a convicção dos julgadores, remetendo para a decisão da Relação do Porto tomada sobre essa matéria, decisão essa que, para maior compreensão, se transcreve:-
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- Conforme se vê das conclusões de recurso da apelante, esta, para além do mais, censura a decisão sobre a matéria de facto por não ter sido feita a análise crítica das provas. Não tem razão, pois essa análise, legalmente estabelecida, não consiste necessariamente na apreciação autonomizada de todos os elementos probatórios mas sim na referência ao que, nos mesmos, seja relevante, o que o Colectivo observou, como se vê de fls. 159.
.............................................................................................................................................................................................. No mais a recorrente censura a decisão por mera referência ao que seria razoável ou procedimento normal, pretendendo que outra fosse a decisão do tribunal quanto a determinados quesitos, o que não merece acolhimento por não haver afronta de qualquer prova que vinculasse o Colectivo a determinada resposta.
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2. Se bem se entende a perspectiva da recorrente, a norma ínsita no falado preceito enfermaria de inconstitucionalidade quando, tendo havido efectivação de prova pericial ou por arbitramento, o tribunal der por provados ou não provados juízos fácticos diversos dos levados a efeito por aquelas perícia ou arbitramento, sem que fundamente uma tal divergência nesses juízos.
É, pois, esta a questão de (in)constitucionalidade que este Tribunal terá de dilucidar nos vertentes autos.
3. Àcerca da norma constante do nº 2 do artº 653º do Código de Processo Civil (na redacção anterior à conferida pelo Decreto-Lei nº 39/95, norma essa que, em tal redacção, ainda se mostrava, em sede de fundamentação, menos exigente do que aquela que resultou do mencionado diploma) teve já este
órgão de administração de justiça ocasião de se pronunciar, confrontando-a com o comando constitucional de harmonia com o qual [a]s decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei (nº 1 do artigo 208º da versão da Constituição anterior à Revisão Constitucional de 1997, correspondente ao nº 1 do artigo 205º da vigente versão, segundo o qual tais decisões que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei).
Fê-lo por intermédio do seu Acórdão nº 310/94 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 29 de Agosto de 1994).
Aí se concluiu que tal norma, em conjugação com a do nº 3 do artº
712º do Código de Processo Civil, satisfazia a exigência constante do nº 1 do artigo 208º da Lei Fundamental e, bem assim, o direito de acesso aos tribunais condensado no nº 1 do seu artigo 20º e a 'ideia de «transparência» das decisões do poder público', constitutiva de 'uma dimensão do próprio princípio do Estado de direito ínsito' no seu artigo 2º.
Vale, no caso, respigarem-se algumas das asserções da corte argumentativa carreada àquele aresto e que, tomando em conta a alteração à Constituição operada pela Revisão Constitucional de 1997, continuam a ter cabimento:-
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Na concretização da obrigação de fundamentação das repostas aos quesitos, deve o legislador ter em conta, dentro da lata margem de liberdade que lhe assiste, as funções que a fundamentação visa assegurar.
Segundo o Acórdão deste Tribunal nº 55/85 (publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1985), a fundamentação dos actos jurisdicionais (decisões judiciais), em geral, cumpre duas funções: a) Uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permite às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente;
b) Outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão - que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a «transparência» do processo e da decisão [cfr. Michel Taruffo, Note sulla garantizia costituzionale della motivazione, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LV
(1979), p. 29 ss.].
9. Ora, tendo em conta o sentido e alcance que vem de ser exposto do dever de fundamentação das decisões dos tribunais, plasmado no artigo 208º, nº
1, da Lei Fundamental, deve entender-se que a norma do artigo 653º, nº 2, do Código de processo Civil, que determina que o acórdão do tribunal colectivo especificará, quanto aos factos questionados que julgue provados, «os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador», e, bem assim, a norma do nº 3 do artigo 712º do mesmo Código, que estatui que as respostas aos quesitos devem conter, como fundamentação, «a menção pelo menos dos meios concretos de prova em que haja fundado a convicção dos julgadores», não violam aquele preceito constitucional. E não o violam, precisamente porque a modalidade de fundamentação prevista naquelas duas normas cumpre minimamente as funções endoprocessual e extraprocessual que constituem a sua razão de ser.
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Refira-se, ainda, que a função endoprocessual da fundamentação das respostas aos quesitos considerados provados pelo tribunal colectivo é complementada pela possibilidade reconhecida às partes, através dos seus advogados, de «reclamar contra a deficiência, obscuridade ou contradição das respostas ou contra a falta da sua fundamentação» (artigo 653º, nº 5, do Código de Processo Civil).
Importa, por fim, salientar que a função extraprocessual da fundamentação das «decisões judiciais», ligada à ideia de garantia do controlo público da «justiça» da decisão, ou seja, a uma ideia de «transparência» das decisões do poder público, e que constitui uma dimensão do próprio princípio do Estado de direito, ínsito no artigo 2.º da Constituição, não é afrontada pelas normas dos artigos 653º, nº 2, e 712º, nº 3, do Código de Processo Civil, porque elas consagram, como já foi demonstrado, uma modalidade de fundamentação suficiente das respostas aos factos quesitados que o tribunal julgue provados.
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3.1. Mutatis mutandis, os considerandos que se transcreveram são transponíveis para a situação ora em apreço no tocante à fundamentação da matéria de facto dada como demonstrada pelo tribunal colectivo.
Interessa, na realidade, observar que, estando em causa matérias de
índole técnica, não se imporá, por via do dever de fundamentação consagrado no nº 1 do artigo 205º da Constituição, que o juiz que demonstre a ou as razões técnicas que o fizeram divergir do juízo pericial. Bastará, isso sim, fazer indicação das provas concretas e, designadamente, as produzidas em audiência por testemunhas que têm conhecimentos especiais e técnicos ou por documentos juntos aos autos, que fundaram o seu juízo divergente daqueloutro constante da perícia anteriormente efectuada.
E foi isso, indubitavelmente, que aconteceu no caso presente, em que o tribunal da 1ª instância deu por provada determinada matéria, possivelmente em sentido contrário ao que constava da perícia, fundamentando as respectivas respostas aos quesitos em depoimentos de testemunhas que, mercê da sua profissão, apresentavam conhecimentos técnicos especiais, e pela análise de documentos existentes nos autos.
Simplesmente, a ora recorrente pugna pela desconformidade constitucional da norma em apreciação, esteando-se na circunstância de, tendo sido realizada prova pericial ou por arbitramento, o tribunal, ao decidir a matéria fáctica de modo diverso do juízo (também fáctico) extraível da perícia ou do arbitramento, dever fundamentar essa diversidade; e, para tanto, esgrime com uma argumentação baseada, em síntese, em que isso é imposto pelo princípio do Estado de direito democrático, o qual, por um lado, não só impõe essa fundamentação como, por outro, conduzindo ele à «harmonização do sistema jurídico», não seria compreensível que o diploma adjectivo civil viesse, neste particular, a estatuir de modo diverso do prescrito no Código de Processo Penal
(vide seu artº 163º, nº 2).
Que dizer de tal argumentação?
3.2. Em primeiro lugar, torna-se claro que o que acima se deixou exposto e por apelo aos passos da fundamentação ora respigados do Acórdão nº
310/94, é cabível mesmo para a situação de que curamos, ou seja, mesmo que em causa esteja a efectivação de juízos de facto pelo tribunal e para cuja prova foi solicitada a feitura de perícia ou arbitramento.
Em segundo lugar, e suposto que, como sustenta a recorrente, do princípio do Estado de direito decorra uma «harmonização do sistema jurídico» em termos de levar à consagração de soluções legais idênticas quando exista alguma similitude de situações, isso, certamente, não pode significar que essa harmonização conduza ineludivelmente a que os diversos corpos de leis adjectivos tenham de consagrar soluções iguais, designadamente no que tange ao processo civil e ao processo criminal.
Na verdade, as prescrições tendentes à adjectivação não podem desligar-se da diversidade de institutos jurídicos de cariz, quantas vezes acentuadamente diferenciado, que pautam, verbi gratia, o direito civil, o direito penal e o direito administrativo, pelo que as soluções decorrentes dessa adjectivação podem, e muitas vezes até devem, ser diferentemente perspectivadas, até tendo em conta preceitos, princípios e garantias que a própria Constituição impõe que sejam observados em determinados ramos de direito . Seria, por exemplo, incurial e contrário à Lei Fundamental que no processo criminal se estabelecessem ónus probatórios a cargo do arguido, provas por confissão, sancionamentos cominatórios penais ou presunções de responsabilidade ou culpabilidade criminal, o mesmo já se não podendo dizer se um tal estabelecimento decorrer da lei processual civil, ao adjectivar as formas de tutela do incumprimento de obrigações civis.
Por outro lado, no processo criminal, e porque não se pode olvidar que a inocência do arguido se presume até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, sendo uma das suas garantias o próprio direito ao recurso quanto a sentenças impositoras de sanções penais, o dever de fundamentação da sentença quanto à matéria de facto há-de impor-se com maior acuidade do que no domínio civil, sendo certo que desta afirmação não decorrerá desde logo que as soluções consagradas no processo penal são as únicas que se hão-de considerar como conformes à Constituição ou, ao menos, como as mais conformes a ela.
Alcançado, assim, que, mesmo ponderando uma harmonia do sistema jurídico, daí não decorre que as leis adjectivas tenham de consagrar soluções idênticas, compreende-se que exista no processo criminal norma tal como a constante do nº 2 do artº 163º do Código de Processo Penal, e que já não se surpreenda essa existência no Código de Processo Civil, exactamente porque nem sequer se estatui a presunção segundo a qual é subtraído à livre apreciação do juiz que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial. E, inexistindo essa presunção, torna-se claro que se não imporá, no domínio processual civil, uma prescrição semelhante à daquela norma.
Ora, tratando-se de realidades diferentes, como são o processo civil e o processo penal, sem sequer se pode reclamar a exigência de tratamento normativo semelhante.
Não se vislumbra, desta arte, que a norma sub iudicio, na interpretação que à mesma foi conferida pela decisão impugnada, viole quaisquer normas ou princípios constitucionais.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se a recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 30 de Junho de 1999- Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida