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Proc. nº 199/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena de Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional I
1. S... e M... interpuseram, junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, em 26 de Agosto de 1996, recurso contencioso de anulação do despacho do Brigadeiro Director de Administração e Mobilização de Pessoal do Ministério da Defesa, praticado ao abrigo de uma delegação de poderes, o qual lhes indeferiu o pedido de revisão de posicionamento na escala remuneratória. As recorrentes caracterizaram o vício de violação de lei – ordinária e constitucional – do referido despacho, invocando a infracção dos princípios da equidade interna (artigo 14º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho), da progressão da carreira em função da permanência de um determinado período de tempo em certo escalão (artigo 19º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº
353-A/89, de 16 de Outubro), e da igualdade de retribuição, vertido na fórmula constitucional 'para trabalho igual, salário igual' (artigos 13º e 59º, nº 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa). Na opinião das recorrentes, a norma em que se apoia a decisão administrativa – o artigo 3º do Decreto-Lei nº 61/92, de 15 de Abril –, ao permitir que funcionários com menos antiguidade na categoria aufiram um vencimento superior a outros com mais antiguidade na mesma categoria, viola o princípio da igualdade material da retribuição:
'O artigo 3º do Decreto-Lei nº 61/92 estabeleceu um regime mais benéfico para os funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989 (nº 1) e para os funcionários promovidos até 30 de Setembro de 1989, desde que a promoção tenha resultado do mesmo concurso a que se candidataram os funcionários abrangidos pelo número precedente (nº 2). Ora, estas disposições do artigo 3º, na medida em que excluem do benefício nele estabelecido os funcionários promovidos até 30.9.89 em concurso no qual não tenha havido funcionários promovidos após 1.10.89, violam claramente o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º na sua vertente de a trabalho igual, salário igual, do artigo 59º, nº 1, ambos da Constituição da República. Não pode sofrer dúvida de que a situação das recorrentes e dos funcionários promovidos em 8.1.92 são substancialmente idênticas e se havia fundamento para existir tratamento mais favorável seria para as recorrentes por terem a categoria há mais tempo. Há, portanto, flagrante violação do princípio da igualdade pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 61/92, na parte em que exclui as recorrentes do benefício nele estabelecido.'
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, invocando jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre a questão, concedeu provimento ao recurso:
'O despacho recorrido não podia ter aplicado o disposto no nº 1, do art. 3º, do citado DL 61/92, de 15/4, nos termos em que o fez, já que o segmento dessa norma que restringe o benefício remuneratório aos funcionários promovidos após 1OUT89, e na medida em que implique que funcionários mais antigos da mesma categoria passem a auferir uma remuneração inferior à daqueles, viola o disposto no art.
59º, nº 1, al. a) da C R P. Em suma, aquela concreta disposição legal não pode ser aplicada com prejuízo para a remuneração das recorrentes em relação à remuneração atribuída aos seus colegas promovidos a 2ºs oficiais posteriormente, em Janeiro de 1992.'
2. Recorreu a autoridade administrativa para o Supremo Tribunal Administrativo, afirmando ter aplicado bem a lei, sobretudo por não ter havido até à data qualquer pronúncia de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional, relativamente à norma em apreço – artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 61/92, de 15 de Abril. O Supremo Tribunal Administrativo veio a confirmar a sentença recorrida, ponderando que:
'Não vindo impugnada nos seus fundamentos a sentença recorrida que constitui o objecto do recurso jurisdicional, improcede este necessariamente, sendo certo que embora não devesse a Administração e, no caso, a autoridade recorrida, apreciar a inconstitucionalidade da norma em apreço e deixar de a aplicar com base em juízo daquela natureza, não é menos certo que não pode, no caso concreto, deixar de cumprir a decisão do tribunal que, apreciando a invocada inconstitucionalidade do artº 3º, nº 1 do Decreto-Lei 61/92 [por lapso, a referência do texto é ao Decreto- -Lei nº 60/92], decidiu no sentido de que tal norma viola a Constituição e, consequentemente, anulou o despacho recorrido que a aplicou [...]. Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso jurisdicional, mantendo-se a sentença recorrida que, com base em inconstitucionalidade da norma aplicada, anulou o despacho recorrido.'
3. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea a), e nº 3 da Constituição da República Portuguesa, e dos artigos 70º, nº 1, alínea a),
72º, nº 1, alínea a), e nº 3, e 75º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional,
'em virtude de nele se ter recusado a aplicação do artº 3º, nº 1 do Dec-Lei nº
61/92 [mais uma vez, por lapso, se escreveu 60/92], de 15 de Abril, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação do artº 59º, nº 1, alínea a) da C.R.P.'
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional concluiu as suas alegações, afirmando que
'1º– A norma constante do artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 61/92, de 15 de Abril, no segmento em que restringe o benefício remuneratório concedido aos funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989, e na medida em que esse limite temporal implique que funcionários mais antigos da mesma categoria passem a auferir uma remuneração inferior à daqueles, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, consubstanciado no actual artigo 59º, nº 1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa.
2º– Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
II
4. O objecto do presente recurso de constitucionalidade é a norma do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 61/92, de 15 de Abril.
Dispõe o citado artigo nº 3:
'1. Os funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989 serão integrados em escalão da nova categoria a que corresponda um índice de valor não inferior a 10 pontos relativamente àquele a que teriam direito pela progressão na categoria anterior, por força do disposto no artigo 2º.
2. O disposto no número anterior é aplicável aos funcionários promovidos até 30 de Setembro de 1989, desde que a promoção tenha resultado do mesmo concurso a que se candidataram os funcionários abrangidos pelo número anterior.'
No acórdão recorrido, que confirmou inteiramente os fundamentos da sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, a recusa de aplicação da norma tem por base a sua inconstitucionalidade, por violação do artigo 59º, nº 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, corolário do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da mesma Lei Fundamental, numa vertente especificamente laboral, vertida na máxima 'para trabalho igual, salário igual'.
5. O Tribunal Constitucional já se ocupou da questão da concretização normativa daquele objectivo constitucional. No acórdão nº 313/89 (inédito), fez-se apelo à vertente material da igualdade, no sentido da sua estreita relação com a realidade social vigente e da sua tradução legislativa efectiva na realização da justiça retributiva:
'Uma justa retribuição do trabalho é, no fundo, o que os princípios enunciados no preceito transcrito [o então artigo 60º, nº 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa] visam assegurar: a retribuição deve ser conforme à quantidade, natureza e qualidade do trabalho; deve garantir uma existência condigna; e a trabalho igual – igual em quantidade, natureza e qualidade – deve corresponder salário igual. O princípio 'para trabalho igual salário igual' não proíbe, naturalmente, que o mesmo tipo de trabalho seja remunerado em termos quantitativamente diferentes, conforme seja feito com mais ou menos habilitação e com mais ou menos tempo de serviço, pagando-se mais, naturalmente, aos que maiores habilitações possuem e mais tempo de serviço têm. O que o princípio proíbe é que se pague de maneira diferente a trabalhadores que prestam o mesmo tipo de trabalho, têm iguais habilitações e o mesmo tempo de serviço.'
Este entendimento do princípio 'para trabalho igual salário igual' fundamentou a decisão do Tribunal Constitucional em acórdãos posteriores (cfr., por exemplo, os acórdãos nºs. 386/91, Diário da República, II, nº 78, de 2 de Abril de 1991, p. 3112 ss; 107/92, Diário da República, II, nº 161, de 15 de Julho de 1992, p.
6538 ss; 454/97, Diário da República, II, nº 284, de 10 de Dezembro de 1997, p.
15116 ss).
6. No caso em apreciação, estamos perante uma norma que possibilita que funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989 sejam integrados num índice não inferior a 10 pontos em relação àquele a que teriam direito caso continuassem a progressão normal na carreira, a partir da categoria e escalão onde estavam integrados. Este ajustamento deve-se ao 'descongelamento' de carreiras operado pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 61/92. O 'congelamento' havia sido determinado pelo artigo 38º do Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro, que regulamentou o Decreto-Lei nº 148/89, de 2 de Junho, o qual, por sua vez, definiu os princípios gerais em matéria de emprego público, remunerações e gestão de pessoal da função pública, 'circunscrevendo-se nuclearmente à reforma do sistema retributivo, no sentido de lhe devolver coerência e de o dotar de equidade, quer no plano interno, quer no âmbito do mercado de emprego em geral'
(preâmbulo do Decreto-Lei nº 148/89). Ao permitir a progressão a funcionários promovidos só após 1 de Outubro de 1989, o nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 61/92, excluiu o benefício do
'descongelamento' em relação aos funcionários que detinham uma categoria superior à daqueles em 30 de Setembro de 1989. Ou seja, e através do exemplo real utilizado no processo por S... e M...:
– foram as duas promovidas a 3ºs oficiais em 1974; progrediram para 2ºs oficiais em 1988; em 1 de Outubro de 1989, por força do Novo Sistema Retributivo (criado pelo referido Decreto-Lei nº 184/98) foram reinseridas na categoria de 2º oficial, escalão 2, índice 210 e só em 1 de Novembro de 1992 alcançaram o escalão 3, índice 220, da categoria de 2ºs oficiais;
– colegas seus, que haviam sido promovidos a 3ºs oficiais em 1977, foram promovidos a 2ºs oficiais por despacho de 8 de Janeiro de 1992 e, por aplicação do artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 61/92 (conjugado com o artigo 2º, nº 2, alínea a) do mesmo diploma), foram posicionados no escalão 5, índice 240, da categoria de 2ºs oficiais.
Ou seja, funcionários integrados na mesma categoria de S... e M..., mas com menos antiguidade, estão a auferir vencimento superior ao daquelas.
Esta diferenciação de remunerações não tem qualquer relação com a natureza e com as características do trabalho prestado pelos funcionários em causa, nem com as suas capacidades e qualificações profissionais. A desigualdade de retribuição não se funda em qualquer critério objectivo, sendo por isso de considerar arbitrária e discriminatória.
7. Conclui-se assim que o critério estabelecido pelo artigo 3º, nº 1, do Decreto- -Lei nº 61/92, ao restringir o benefício de progressão na carreira aos funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989, insere no sistema retributivo um elemento de injustiça e desigualdade, contrariando o princípio da igualdade consagrado no artigo 59º, nº 1, aliena a), da Constituição da República Portuguesa. Assim decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão nº 180/99 (inédito). A situação apresenta contornos semelhantes aos que foram discutidos no acórdão nº 584/98 (inédito), em que este Tribunal julgou inconstitucional uma norma de que resultava um tratamento mais favorável – em termos remuneratórios – para trabalhadores com menos antiguidade numa certa categoria relativamente a outros trabalhadores com mais antiguidade na mesma categoria.
III
8. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar inconstitucional a norma do artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº
61/92, de 15 de Abril, no segmento em que restringe o benefício remuneratório concedido aos funcionários promovidos após 1 de Outubro de 1989, e na medida em que esse limite temporal implique que funcionários mais antigos da mesma categoria passem a auferir uma remuneração inferior à daqueles, por violação do artigo 59º, nº 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa; b. Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, no que diz respeito à matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Junho de 1999- Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida