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Proc. nº 773/02
1ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. A. foi condenado, por acórdão do colectivo da 2ª Vara Criminal de Lisboa, de 17 de Abril de 2002, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, pela prática de um crime de peculato, previsto e punido pelos artigos 375º, nº
1, e 386º, nº 1, alínea c), do Código Penal,
Inconformado, recorreu dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa. Na motivação de recurso, o recorrente indicou pela forma seguinte quais os recursos interlocutórios em que mantinha interesse:
O recorrente mantém interesse em todos os recursos interlocutórios que se encontram retidos devido ao regime de subida diferida. Assim:
(1) recurso interposto em 12.12.01 da decisão judicial que admitiu B. a intervir como assistente;
(2) recurso interposto em 20.09.01 da decisão judicial que admitiu o C. a intervir como assistente;
(3) recurso interposto em acta (no dia 20.03.02) em relação a diligências de prova efectuadas pela PJ (inspector D.) junto do cidadão britânico E. e obtenção para os autos de uma carta escrita por este para a Polícia Judiciária na sequência de tais diligências;
(4) recurso interposto em acta (no dia 25.03.02) da decisão de proceder à leitura de rogatórias expedidas na fase de inquérito e sem a garantia do contraditório;
(5) recurso interposto em acta (no dia 26.03.02) da decisão judicial proferida sobre documentos apreendidos na residência do arguido referentes à titularidade da ................
E na conclusão 14ª da mesma motivação de recurso, declarou pretender a subida de «todos» os recursos interlocutórios que se encontravam retidos em função do respectivo regime de subida.
Por despacho de 27 de Junho de 2002, o Desembargador-relator manifestou-se no sentido de que se não devia conhecer dos recursos interlocutórios em causa, uma vez que o recorrente não dera cumprimento ao disposto no artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Penal, ou seja, por «falta de especificação dos recursos retidos, nas conclusões».
O recorrente apresentou, então, requerimento esclarecendo que, na conclusão 14ª da sua motivação de recurso, indicara manter interesse em todos os recursos retidos, o que, por si, implicava ter dado cumprimento ao disposto no artigo 412º, nº 5, do CPP. E suscitou, desde logo, nesse requerimento, a questão de inconstitucionalidade da norma constante do nº 5 do artigo 412º do CPP, quando interpretada no sentido de que «o cumprimento do aludido ónus não se satisfaz, querendo o recorrente manter interesse em todos os recursos, com a menção a que mantém interesse em “todos”, mas antes seria obrigatório mencionar um e cada um de todos», por violação do artigo 32º, nº 1, da CRP.
Por despacho de 5 de Julho de 2002, o relator julgou aquele requerimento «anómalo ao processado», e como tal, indeferiu o mesmo, pois que o despacho controvertido apenas ordenara a recolha dos vistos dos adjuntos e a posterior conclusão do Presidente da Secção, a fim de este designar dia para a audiência.
2. Por acórdão de 22 de Outubro de 2002, a Relação de Lisboa entendeu não conhecer dos recursos retidos, por omissão do ónus imposto pelo nº
5 do artigo 412º do CPP, «que dispõe que havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse. Trata-se de uma inovação da Lei 59/98 de 25 de Agosto que é susceptível de facilitar o trabalho dos Juízes do Tribunal Superior, em processos volumosos e complexos». No mais, o acórdão da Relação negou provimento aos restantes recursos, mantendo o acórdão recorrido.
Esta decisão contou com uma declaração de voto, do seguinte teor, no sentido de dever o acórdão pronunciar-se sobre os recursos retidos:
A validade da obstaculação formal aceite, considerada já no douto despacho de fls. 3730, sob invocação do disposto no nº 5 do art. 412º, do CPP, é afastada na motivação pela pretensão expressa no seu nº 2, explanada no capítulo A . 4, justamente titulado “RECURSOS RETIDOS” (onde se descriminam pormenorizadamente os 5 recursos, com taxativa referência quer às datas de interposição, quer às respectivas decisões impugnadas), como ainda na síntese da
14ª conclusão.
Assim sendo, muita diluída se me antolha, salvo o muito e merecido respeito, a necessidade de facilitação do trabalho dos julgadores do Tribunal Superior em processos complexos e volumosos, razão de fundo que norteia, também, aquela norma adjectiva.
3. O recorrente veio, então, interpor recurso daquela decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, para apreciação da norma constante do «nº 5 do artigo 412º do CPP, quando interpretada e aplicada, como o foi no caso, no sentido segundo o qual o cumprimento do ónus de especificação não se satisfaz, querendo o recorrente manter interesse em todos os recursos, com a menção que mantém interesse em
“todos”, antes sendo obrigatório individualizar cada um deles, mormente quando tal individualização já resulta expressamente da motivação de recurso», por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição.
Admitido o recurso, e já neste Tribunal, o recorrente produziu alegações, nas quais explanou o seguinte:
Está em causa neste recurso saber se a lei ordinária pode chegar ao ponto de permitir a mera rejeição liminar de recursos interlocutórios – com subida diferida – com fundamento numa regra processual pela qual, o recorrente
(i) não só deve especificar nas conclusões do recurso da sentença, como qual tais recursos pendentes subam, quais aqueles em que mantém interesse (ii) como ainda, no caso de manter interesse em «todos» eles, não lhe bastará mencionar nas conclusões que mantém interesse em «todos», mormente quando na motivação – umas linhas atrás! – disse que mantinha interesse em todos e especificou um por um quais eram esses todos.
[...]
É certo que a efectivação do direito ao recurso pode ficar sujeita a regras de procedimento, as quais sejam destinadas a garantir que o conhecimento e decisão da questão substancial sujeita a recurso seja alcançado através de um processo mental rigoroso, com garantias de perceptibilidade, de contraditório, de fundamentação, tudo valores com acolhimento constitucional.
É igualmente certo que o legislador é livre de definir que alguns recursos tenham subida diferida, de modo a estabelecer uma linha de celeridade processual, a qual é igualmente um valor constitucional.
E aceita-se que o legislador imponha, no caso de o recorrente possa seleccionar, de entre os recursos retidos, com subida diferida, quais, afinal, aqueles em que mantém interesse e o diga nas conclusões de recurso, por ser ali que lhe cabe delimitar o objecto do recurso.
[...]
Ora aquilo que já não parece admissível é que a lei (i) decrete que quando o recorrente declara expressamente nas conclusões do recurso que mantém interesse em todos os recursos interlocutórios (ii) essa declaração não baste e
(iii) ele recorrente tenha o dever de indicar um por um quais são os recursos pendentes que integram o conceito de todos, nomeadamente quando o fez precisamente na motivação do recurso (iv) sem o que o recurso lhe é rejeitado.
É que uma tal norma:
(1) limita de modo injustificado e arbitrário o direito ao recurso, onerando o recorrente com um encargo narrativo sem qualquer razão de ser, pois que tal especificação não é necessária para melhor exprimir o seu querer quanto ao que pretende sujeitar ao tribunal de recurso;
(2) não é indispensável para uma melhor perceptibilidade pelo tribunal recorrido ou pelo tribunal de recurso daquilo que está em causa, ou seja, de quais os recursos pendentes que o recorrente pretende manter, pois que tal percepção está acutelada pela menção a «todos»;
(3) serve, apenas, como seu resultado perverso, como um expediente, um «alçapão», destinado a legitimar rejeições de recursos por razões de mero pretexto.
E conclui, assim, pela inconstitucionalidade material da norma em causa, «quando obriga o recorrente, sob pena de rejeição do recurso, a especificar nas conclusões do recurso, quais os recursos pendentes em que mantém interesse, não pela mera menção a “todos”, quando de nenhum pretende desistir, mas obrigando a que individualize cada um desses todos, quando o fez afinal na motivação do recurso, que logo antecede tais conclusões», por violação do artigo
32º, nº 1 da CRP.
Por seu turno, o Ministério Público, nas suas contra-alegações, pronunciou-se no sentido do improcedimento do recurso, «por não ser inconstitucional a concreta dimensão normativa questionada pelo recorrente».
Começou por notar que a norma em causa teve a sua origem no artigo
748º do Código de Processo Civil, na redacção resultante da revisão de 1995/96, norma essa que impõe, «com base no princípio da cooperação, um ónus ao recorrente: o de obrigatoriamente especificar nas alegações de recurso que motiva a subida dos agravos retidos quais aos que, para si, conservam interesse», procurando evitar-se assim que «o tribunal superior acabe por ter de se pronunciar sobre questões já ultrapassadas pelo fluir do processo – e seus reflexos nas estratégias das partes – obstando ainda ao risco de que, em processos extensos e complexos, o tribunal “ad quem” possa omitir a apreciação de algum agravo, “perdido” nos autos». Diferença essencial entre esse regime e o regime adoptado no processo penal, faz notar ainda o Ministério Público, é que neste último se não preveja o convite ao aperfeiçoamento estabelecido no nº 2 do artigo 748º do CPC.
Prosseguiu, assim, o seu raciocínio:
Note-se, todavia, que – face à interpretação normativa delineada pelo recorrente – não é esta a questão que ele coloca à apreciação do Tribunal Constitucional: na verdade, não se questiona a constitucionalidade do referido artigo 412º, nº 5, na dimensão normativa que atribui efeito irremediavelmente preclusivo à deficiência ou omissão no cumprimento do referido ónus de especificação: a interpretação normativa questionada é a que se traduz em se prever na lei adjectiva penal o referido ónus de especificação, cujo cumprimento adequado se não basta com a mera referenciação global de “todos” os recursos interlocutórios interpostos no processo pelo recorrente.
E importa salientar que são obviamente questões diferentes aquelas duas dimensões ou interpretações normativas: são questões diversas e autónomas
(susceptíveis de respostas diferenciadas no plano da constitucionalidade) as que se traduzem em saber se o princípio constitucional das garantias de defesa (e do direito ao recurso que nele se inclui) são compatíveis:
- com o estabelecimento de certo ónus formal para a parte ou sujeito processual;
- com a atribuição de efeito irremediavelmente preclusivo ao deficiente ou insuficiente cumprimento de tal ónus por parte do recorrente.
[...]
Assim, sempre se entendeu que a exigência de indicação das normas jurídicas violadas nas conclusões da motivação de recurso em processo criminal, não é “manifestamente, e por maiores esforços que se façam para vislumbrar oposta resposta, algo que se revele contrário, desproporcionado ou redutor das garantias de defesa do arguido”: daí que o Tribunal Constitucional tenha concluído pela não inconstitucionalidade da dimensão normativa do artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal que prevê e estabelece tal ónus para o recorrente (cfr. Acórdão nº 38/97).
Pelo contrário, constitui jurisprudência uniforme deste Tribunal a que se traduz em considerar inconstitucional uma outra dimensão normativa de tal preceito: a que se traduz em atribuir ao incumprimento de tal ónus o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado (cfr., por todos, o Acórdão nº 320/02).
[...]
Como atrás se salientou, o recorrente, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, tratou de delimitar o objecto do recurso em torno da primeira daquelas dimensões normativas, questionando apenas a existência do referido ónus formal, a cargo do recorrente e o modo adequado de o mesmo ser cumprido (implicando a existência de um ónus de indicação ou referência especificada dos recursos interlocutórios que conservam interesse para o recorrente, que se não basta com a mera e genérica indicação global, traduzida na afirmação de que “todos” relevam e devem ser apreciados).
Conclui, portanto, que apenas esta última interpretação normativa foi submetida ao Tribunal Constitucional e pode por ele ser apreciada, afastando a possibilidade de conhecimento da dimensão normativa que se reporta ao efeito preclusivo consequente do não cumprimento do estabelecido ónus de especificação.
E, passando a apreciar exclusivamente aquela indicada interpretação normativa, afirmou:
Não competindo obviamente ao Tribunal Constitucional valorar directamente a específica e concreta situação procedimental dos autos – mas tão somente apreciar, sob o prisma da constitucionalidade, o critério normativo subjacente à decisão recorrida – importa notar que a utilidade e funcionalidade de uma norma com o conteúdo do artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Penal pressupõe efectivamente que deva ocorrer uma individualização e referenciação dos recursos retidos que – na sua estratégia processual – o recorrente considera que mantêm interesse processual: seria, de facto, de plena inutilidade que ao recorrente fosse consentido a genérica indicação de que manteria interesse a apreciação de “todos” os recursos interlocutórios, interpostos ao longo do processo, por tal indicação, meramente genérica e remissiva, se revelar totalmente inútil para a finalidade e funcionalidade do preceito.
Na verdade, ao cumprir o ónus de referenciação especificada dos recursos interlocutórios cuja apreciação mantém interesse processual, é o recorrente, de algum modo, “obrigado” a ponderar a real relevância de cada um deles; e só através dessa especificada indicação se cumpre o dever de cooperação com o tribunal que lhe está subjacente, facultando ao tribunal “ad quem” uma efectiva e “actual” listagem de todas as questões processuais ou adjectivas que sobem à sua apreciação.
[...]
Trata-se, afinal, de um ónus que não reveste especificidade particular relativamente a inúmeros outros ónus formais que a lei de processo penal impõe ao recorrente, com vista a proporcionar ao tribunal superior uma fácil e célere apreciação do elenco de questões – de direito ou de facto – que lhe são submetidas».
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
4. A norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada é a constante do nº 5 do artigo 412º do CPP, que tem a seguinte redacção:
Artigo 412º
(Motivação do recurso e conclusões)
1. [...]
2. [...]
3. [...]
4. [...]
5. Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse.
O recorrente entende que esta norma, interpretada no sentido de impor a individualização, nas conclusões de recurso, de todos os recursos retidos em que mantém o interesse, não admitindo a referência a “todos” como bastante para cumprir o ónus de especificação aí determinado, ainda que tal individualização tenha sido feita na motivação de recurso, se mostra inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição.
E esclarece, nas suas alegações, que o que está em causa neste recurso é saber «se a lei ordinária pode chegar ao ponto de permitir a mera rejeição liminar de recursos interlocutórios – com subida diferida – com fundamento numa regra processual» que, no seu entender, não se basta com a menção, nas conclusões, que mantém interesse em “todos” os recursos interlocutórios retidos.
Entende o Ministério Público, todavia, que o recorrente apenas suscitou a questão de inconstitucionalidade relativa a uma determinada dimensão normativa, «questionando apenas a existência do referido ónus formal, a cargo do recorrente e o modo adequado de o mesmo ser cumprido (implicando a existência de um ónus de indicação ou referência especificada dos recursos interlocutórios que conservam interesse para o recorrente, que se não basta com a mera e genérica indicação global, traduzida na afirmação de que “todos” relevam e devem ser apreciados)», não questionando, todavia, a dimensão em que se «atribui efeito irremediavelmente preclusivo à deficiência ou omissão no cumprimento do referido
ónus de especificação».
Com efeito, apenas nas alegações perante este Tribunal, veio o recorrente a referir-se à «rejeição liminar» dos recursos, «com fundamento numa regra processual», o que seria momento inidóneo para alterar ou delimitar o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, que se fixou no requerimento de interposição deste recurso.
Nem estamos perante uma situação semelhante à que se verificou nos casos tratados no Acórdão nº 193/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., págs. 395 e segs.) e no Acórdão nº 43/99, (Diário da República, II Série, de 26 de Março de 1999), pois que, nestes, os recorrentes suscitaram a questão de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 412º e 420º do CPP, na medida em que as mesmas não previam a possibilidade de o tribunal fazer o convite de aperfeiçoamento a que se referia o artigo 690º, nº 3, do CPC (actual artigo 690º, nº 4, CPC).
Assim foi, com efeito, o que se passou, desde logo, no caso do Acórdão nº 193/97, no qual as partes suscitaram a questão da inconstitucionalidade da norma constante dos artigos 412º, nº 1, e 420º, nº 1, do CPP, «quando numa interpretação conjugada impedem a aplicação» do artigo
690º, nº 3, do CPC, «em sede processual penal»; e o Ministério Público, nas suas conclusões, formulou de forma clara essa questão da inconstitucionalidade como sendo a «da interpretação do preceituado nos artigos 412º nº 1 e 420º nº 1 do CPP, em termos de se equiparar à falta de motivação a prolixidade ou falta de concisão, ainda que manifesta, das conclusões daquela, conduzindo irremediavelmente - sem que ao recorrente seja formulado convite ao aperfeiçoamento das conclusões deficientemente apresentadas - à rejeição liminar do recurso».
O mesmo sucedeu no caso do Acórdão nº 43/99, no qual o recorrente enunciou a questão da «inconstitucionalidade dos artigos 411º, 412º e 420º do CPP, na interpretação que lhe foi dada pela 2ª Subsecção da 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, da não aplicabilidade do artigo 690º nº 3 (actual artigo
690º nº 4) do Código de Processo Civil ao procedimento criminal, ex vi do artigo
4º do Código de Processo Penal, devendo pois a norma em referência ser aplicada, com as necessárias consequências»; nesse processo, o Ministério Público, nas suas alegações neste Tribunal, formulou a questão de inconstitucionalidade em torno da «rejeição liminar do recurso», sem que à parte fosse «facultada a oportunidade de suprir o vício».
Aqueles casos deram origem à jurisprudência constitucional que culminou com a prolação das declarações de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constantes do Acórdão nº 337/00 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., págs. 47 e segs.) e do Acórdão nº 320/02 (Diário da República, I Série-A, de 7 de Outubro de 2002), tendo por objecto as normas constantes dos artigos 411º, nº 1, e 412º, nº 2, do CPP, relativas a casos de rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo fosse facultada a oportunidade de suprir a deficiência relativa ao insuficiente cumprimento dos
ónus previstos por essas normas.
Ora, dúvidas não restam que, in casu, o recorrente não suscitou a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 412º, nº 5, do CPP com referência àquele efeito irremediavelmente preclusivo de não cumprimento do
ónus de especificação sobre si pendente. Pelo que assiste razão ao Ministério Público quando afasta da apreciação sujeita a este Tribunal essa dimensão normativa que questiona as consequências processuais do insuficiente cumprimento do ónus em causa, consequências essas traduzidas no efeito preclusivo do recurso.
5. Constitui, assim, objecto do presente recurso de constitucionalidade, a interpretação ou dimensão normativa que questiona a existência do ónus de especificação em causa, no sentido de o mesmo se não considerar satisfeito com a referência a “todos” os recursos, feita nas conclusões do recurso principal, quando no texto da respectiva motivação, ou seja, na mesma peça processual, foram discriminadamente especificados quais os recursos retidos em que o recorrente mantém interesse.
O recorrente aponta esta interpretação como materialmente inconstitucional, por violadora do artigo 32º, nº 1, da Constituição.
Na verdade, o artigo 32º, nº 1, da Constituição, ao assegurar «todas as garantias de defesa», garante necessariamente os «mecanismos» que possibilitem o exercício efectivo do direito de defesa em processo criminal. Nesse sentido, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., I vol., nota II ao artigo 32º, págs.
214-215):
A fórmula do nº 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. «Todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação.
E do mesmo modo tem sido entendida aquela norma constitucional, por inúmeras vezes, na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Assim, por exemplo, no Acórdão nº 61/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 611 e segs.), pode ler-se:
Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho «reassuntivo» e «residual» - relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do mesmo artigo - e, na sua abertura, acaba por revestir-se, também ela, de um carácter acentuadamente «programático». Mas, na medida em que se proclama aí o próprio princípio da defesa, e portanto indubitavelmente se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter «um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária» (cfr. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, p. 51; e Acórdão nº 164 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da República, I série, de 31 de Dezembro de 1979).
A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos nºs 2 e seguintes do artigo 32º - será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido
(assim, basicamente, cfr. Acórdão nº 337/86, deste Tribunal, Diário da República, I Série, de 30 de Dezembro de 1986).
Todavia, tal não significa que o estabelecimento de certos ónus formais para a parte ou sujeito processual devam obrigatoriamente surgir, de per si, como incompatíveis com a Lei Fundamental; aliás, a jurisprudência constitucional tem claramente entendido, por exemplo, que a norma constante do artigo 412º, nº 2, do CPP, ao impor a indicação das normas jurídicas violadas nas conclusões da motivação de recurso, em processo penal, não se mostra excessiva, injusta ou desproporcionada, concluindo pela sua não inconstitucionalidade – cfr. Acórdão nº 38/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., págs. 215 e segs.).
Quer isto dizer, afinal, que são perfeitamente compatíveis com as garantias de defesa que a Constituição exige aquelas normas que «apenas impõem uma colaboração do recorrente na melhor formulação do problema jurídico, assegurando, em última instância, a defesa de direitos e a objectividade da sua realização», como se assinalou no Acórdão nº 715/96 (Diário da República, II Série, de 18 de Março de 1997).
A este propósito, escreveu-se, com particular interesse para o caso dos autos, no Acórdão nº 275/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43º vol., págs. 423 e segs.):
Desempenham assim essas normas uma função importante não apenas na perspectiva, mais geral, da realização da justiça, mas inclusive na perspectiva da própria garantia de defesa dos direitos do recorrente.
E, é essa função que as conclusões são aptas a realizar - tida como um valor, quer na perspectiva da realização da justiça quer na perspectiva das garantias de defesa do arguido - que, em última análise, legitima do ponto de vista constitucional a existência de normas processuais que as exijam, sob a cominação de não se poder conhecer do objecto do recurso.
Do que vai dito decorre, inevitavelmente, que os critérios normativos de decisão legítimos, na perspectiva da Constituição, hão-de de ser, necessariamente, critérios funcionais, que façam assentar a decisão de saber se o conteúdo de uma peça processual [...] é ou não apto a realizar as funções que legitimam a sua exigência.
A esta luz, o que importa averiguar é se o ónus processual aqui em causa, tal como foi delimitado na interpretação efectuada pelo tribunal a quo, ainda desempenha uma função processual útil ou se, pelo contrário, se apresenta como uma exigência arbitrária, que acaba por se traduzir num encurtamento inadmissível das «garantias de defesa» asseguradas no artigo 32º, nº 1, e num entorse injustificado às exigências do «processo equitativo» a que se refere o artigo 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
Isto é: com base num critério funcional, ainda se pode considerar como proporcionada uma interpretação do que seja o cumprimento do ónus de especificação constante do nº 5 do artigo 412º do CPP, como a efectuada nos autos, ou, ao invés apresenta-se já como excessiva essa exigência de que a indicação dos recursos retidos em que se mantém interesse se não basta com a referência, nas conclusões da motivação, a “todos” os recursos, quando no próprio texto da motivação se efectuou já à indicação discriminada dos mesmos?
6. Ora, é bem verdade que não custa admitir, como refere o Ministério Público nas suas alegações, que «a utilidade e funcionalidade de uma norma com o conteúdo do artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Penal pressupõe efectivamente que deva ocorrer uma individualização e referenciação dos recursos retidos que – na sua estratégia processual – o recorrente considera que mantêm interesse processual: seria, de facto, de plena inutilidade que ao recorrente fosse consentido a genérica indicação de que manteria interesse a apreciação de
“todos” os recursos interlocutórios, interpostos ao longo do processo, por tal indicação, meramente genérica e remissiva, se revelar totalmente inútil para a finalidade e funcionalidade do preceito».
No entanto, toda a questão reside em saber se essa utilidade e funcionalidade não se manteria integralmente se a exigência se considerasse cumprida com a indicação especificada na motivação do recurso e a mera referência a todos – obviamente, todos os especificados na própria motivação – nas conclusões.
Com efeito, tendo em conta a identidade e unicidade da peça processual em causa – a motivação do recurso – e tendo o recorrente, no texto dessa motivação, efectuado a discriminação e identificação expressa, seriadamente, dos vários recursos interlocutórios retidos em que continua a manter interesse, não se descortina como não deva ser tida como suficiente a referência nas conclusões a “todos” os recursos para se considerar satisfeito o
ónus, configurando-se efectivamente como excessiva a imposição da repetição da identificação individualizada dos recursos retidos.
Nesta conformidade, tendo presente que o ónus constante do nº 5 do artigo 412º do CPP há-de reflectir o dever de cooperação e colaboração entre as partes e o julgador, o que surge como excessivo e como um visível encurtamento inadmissível das garantias de defesa do arguido em processo penal e um entorse injustificado à garantia de um processo equitativo, é a exigência de repetição, nas conclusões, da especificação dos recursos retidos, já anteriormente efectuada no texto da motivação, não se admitindo como suficiente, em tal caso, a simples referência a «todos» os recursos, nessas conclusões.
III – DECISÃO
7. Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas do artigo 32º, nº 1, e do artigo 20, nº 4, parte final, da Constituição, o artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que é insuficiente para cumprir o ónus de especificação ali consignado a referência a
“todos” os recursos, nas conclusões da motivação, sempre que no texto desta tenha sido feita a sua identificação individualizada e seriada;
b) em consequência, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 9 de Abril de 2003 Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira (vencido nos termos da declaração que junto) Artur Maurício (vencido de acordo com a declaração junta) José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Partindo do princípio de que o objecto do pedido consiste na apreciação normativa do n.5 do artigo 412 do CPP com vista à sua inconstitucionalidade por violação do n.1 do artigo 32 da Constituição quando interpretado no sentido de que o cumprimento do ónus de especificação não se satisfaz com a menção de que o interessado mantém interesse em “todos” os agravos interlocutórios, antes devendo individualizar cada um desses recursos, entendo, acompanhando o acórdão, que o que está unicamente em causa é saber se a imposição deste concreto ónus formal se adequa ao princípio constitucional de garantias de defesa em processo penal.
Também é meu entendimento que tal ónus não é excessivo, não pondo em causa quer as garantias enumeradas no artigo 32 n.1 da Constituição, quer mesmo o princípio de garantia de processo equitativo que resulta do n.4 do artigo 20º do mesmo diploma.
Onde não posso acompanhar o acórdão é no julgamento de inconstitucionalidade da apontada norma.
E isto, muito sucintamente, por duas ordens de razões: em primeiro lugar porque se me afigura que o Tribunal se deixou arrastar para o julgamento de uma questão não normativa, pois está a sindicar - para além do que lhe compete - um parâmetro que não consta da norma e que unicamente se pode achar na própria decisão jurisdicional recorrida; depois, porque, salvo o devido respeito, o julgamento a que procede não é efectivamente o mais correcto. Na verdade, as conclusões da alegação de recurso são a única peça processual onde, por obrigação legal, o recorrente deve expor de forma concisa mas rigorosa e suficiente todas as questões que quer submeter à apreciação do tribunal superior e, entre estas, deve (direi: obviamente) constar a identificação dos recursos retidos de cujo objecto o recorrente quer que o tribunal ad quem conheça.
Por estes motivos não voto a decisão.
Lisboa, 9 de Abril de 2003 Carlos Pamplona de Oliveira
Declaração de voto
Vencido, quanto à delimitação do objecto do recurso e quanto ao juízo de inconstitucionalidade a que o acórdão chegou.
Admitindo a autonomia da questão de saber se a mera imposição do
ónus de levar às conclusões a especificação dos recursos que, para o recorrente, mantêm interesse - apesar de ela ter sido feita no texto das alegações e de, nas conclusões, se referirem 'todos os recursos' - ofende a Constituição, entendo que se poderia entender, sem esforço, que o recorrente suscitara a questão de inconstitucionalidade de tal ónus ligado ao efeito preclusivo do seu incumprimento, sem convite prévio de aperfeiçoamento; e, neste caso, julgaria inconstitucional a interpretação normativa em causa.
Entendo, ainda, que, delimitado, como foi, o objecto do recurso, o juízo de que a aludida imposição fere, em si mesma, o princípio do processo equitativo e as garantias de defesa do arguido não valora devidamente a funcionalidade do ónus e sobrevaloriza o encargo - insignificante, a meu ver - que recai sobre o recorrente.
A tese que fez vencimento incorre no erro de sancionar o que poderá, no limite, considerar-se um mau direito com um juízo de inconstitucionalidade, sendo certo que, para tal, sempre seria necessário que a hipotética desrazoabilidade da solução se conjugasse com uma afectação relevante das garantias de defesa do arguido, o que, de todo, se não verifica.
Artur Maurício