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Processo nº 463/98
2ª Secção Relator: Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1- D..., juíza de direito, com os sinais identificadores dos autos, interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça recurso contencioso de anulação da decisão do Plenário do Conselho Superior de Magistratura, de 18 de Junho de 1996, que indeferiu o incidente de recusa que havia suscitado relativamente ao instrutor de um processo disciplinar em que é arguida, o qual tem em vista o 'tratamento a que alegadamente se diz sujeitar os funcionários, advogados e arguidos'. O Supremo Tribunal de Justiça negou provimento àquele recurso, considerando haver manifesta improcedência do dito incidente e condenou-a em custas. Inconformada, a recorrente impugnou tal decisão, interpondo 'recurso jurisdicional com efeito suspensivo' para o mesmo Supremo Tribunal, com requerimento dirigido ao seu Presidente, a constituir-se para o efeito 'em termos análogos aos do art. 25º, nº 1, do DL nº 129/84, de 27/4 (ETAF) – ‘pleno da secção do contencioso (...)’ – por força do disposto nos artigos 178º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) e 32º, nº 1 e nº 10 da Constituição
(...) e 399º do C.P.Penal, ou subsidiariamente para o mesmo Supremo constituído noutra forma legal'. Baseou extensamente o recurso no direito de defesa consagrado nos artigos 32º e
18º da CRP, em conjugação com os artigos 112º e 131º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e artigo 405º do C.P.P., entendendo que este último preceito garante o duplo grau de jurisdição em matéria de recusa na acção disciplinar, e que o artigo 103º, alínea c), da LPTA é inconstitucional, quando interpretado no sentido de impedir o recurso dos actos do Conselho Superior de Magistratura. Considerou ainda que, face ao duplo grau de jurisdição de que gozam os funcionários judiciais, também o princípio da igualdade e da proporcionalidade saem violados. O Relator dos autos, porém, por despacho de 17 de Dezembro de 1997, não admitiu aquele recurso, 'atenta a não recorribilidade do acórdão em causa', e esta decisão foi mantida em via de reclamação apresentada pela recorrente, ao abrigo do artigo 405º, nº 1, do Código de Processo Penal por força do artigo 131º do EMJ, por despacho do Presidente das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Março de 1998. Esta decisão baseou-se, em resumo, nos seguintes considerandos: a. O duplo grau de jurisdição não está constitucionalmente consagrado, com carácter universal e absoluto. b. O direito de defesa encontra-se assegurado e já foi exercido, depois da reclamação para o Plenário do Conselho Superior de Magistratura através do recurso contencioso interposto, que é uma via jurisdicional. c. E esta via é a única desta natureza admitida pela lei ordinária, como resulta do artigo 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais. d. A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, seja em plenário ou com outra composição, não está prevista em qualquer disposição legal, nomeadamente na Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, para além da acção de contencioso estruturada no citado artigo 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais. e. No paralelismo com o Supremo Tribunal Administrativo sobreleva a norma do artigo 103º-c) da LPTA, que também não permite recorrer de actos do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais – sem que o direito de defesa possa, por isso, considerar-se inconstitucionalmente limitado. f. O artigo 178º do EMJ apenas manda aplicar subsidiariamente, no STJ, os trâmites processuais dos recursos de contencioso administrativo interpostos para o STA, o que não é extensível à composição duma suposta nova instância de recurso no STJ. g. Se tal instância suplementar não existe é por opção do legislador que taxativamente regula o assunto, não havendo lacuna a preencher. h. Se os funcionários de justiça têm duas instâncias normais de recurso jurisdicional e os magistrados apenas uma, isso deve-se ao facto de aqueles não recorrerem directamente para o Supremo como acontece com os últimos, o que também sucede com os magistrados do foro administrativo e fiscal. E a conclusão extraída foi a seguinte:
'Entendemos, pois, que, no caso em apreço, sendo inexistente uma nova instância de recurso neste Supremo Tribunal de Justiça, prejudicada fica a reclamação que nos vem dirigida, com base no artº 405º, nº 1, do Código de Processo Penal, contra o não recebimento do recurso interposto do acórdão proferido pela secção de contencioso deste mesmo Tribunal. Assim, não se conhece de tal reclamação'.
2- A recorrente também não se havia conformado com a condenação em custas, dela reclamando, por via de pedido de reforma do citado acórdão de 23 de Outubro de
1997, considerando estar isenta do seu pagamento. Melhor sorte não logrou a recorrente quanto a esse pedido de reforma das custas, pois que também aqui a sua pretensão foi desatendida, por acórdão de 10 de Dezembro de 1997. Com efeito, escreveu-se nesse acórdão:
'(...)se pode considerar-se que a reclamante se apresenta como parte principal numa acção, se bem que de natureza disciplinar, o certo é que não está demonstrado, antes pelo contrário, que a sua intervenção tenha resultado de algum despacho, sentença ou decisão proferida ou outra legítima actuação praticada no exercício da sua actividade jurisdicional, mas do tratamento a que alegadamente se diz sujeitar os funcionários, advogados e arguidos.' Nestas condições não beneficia, pois, segundo tal decisão, do regime previsto na alínea g) do nº 1 do artigo 17º do E.M.J. (Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/90, de 5 de Maio).
3- De novo inconformada, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, relativamente ao mencionado despacho de 9 de Maio de 1998, pretendendo, em resumo, ver apreciada a questão da inconstitucionalidade do artigo 103º, alínea c), da LPTA, interpretada no sentido de obstar ao recurso de decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça que funcionou em 1ª instância. Afirma a recorrente que sempre 'defendera a recorribilidade do Acórdão proferido pela secção do contencioso, com base no disposto nos arts. 399º e 'a contrario sensu' 400º do CPP, no direito de defesa consagrado nos arts. 32º nºs 1 e I0, e
20º da Constituição, na inconstitucionalidade do art. 103º, al. c ) do DL 267/85 de 16/7 (LPTA) face àquele art. 32º quanto ao processo disciplinar, e nos arts
14º de DL nº 40768 de 8/9/56 (LOSTA) e 8º do Código Civil' A recorrente serve-se da seguinte identificação das normas no respectivo requerimento:
'Normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie:
1ª- Que não é admissível recurso jurisdicional do acórdão da secção do contencioso do Supremo Tribunal de Justiça que confirmou a decisão do Conselho Superior da Magistratura negando o seguimento (ou indeferindo) ao incidente de recusa (ou suspeição) suscitado pela mesma arguida magistrado judicial contra o instrutor do processo disciplinar instaurado pelo mesmo Conselho contra a arguida recorrente.
2ª- A arguida não tem o direito de antes de proferida a decisão do Supremo desfavorável ser ouvida sobre o Parecer do Ministério Público em que este expendeu diversa argumentação no sentido da inadmissibilidade do recurso jurisdicional e no sentido da condenação da arguida em custas'. A recorrente arguiu ainda, num outro recurso interposto ao abrigo da mesma alínea b), do acórdão de 10 de Dezembro de 1997, que havia desatendido 'a reclamação para reforma de decisão quanto a custas', a inconstitucionalidade da norma do artigo 17º, nº1, alínea g) do EMJ quando interpretada no sentido de que para o juiz beneficiar da isenção de custas, no âmbito da acção em que é parte,
é necessário que esteja demonstrado que a sua intervenção (conduta) tenha resultado de algum despacho, sentença ou decisão proferida ou outra legítima actuação praticada no exercício da sua actividade judicial, por violação do princípio da igualdade, de defesa e da presunção de inocência e do Estado de Direito Democrático (e a recorrente invoca que só no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade suscitou a questão de inconstitucionalidade 'em virtude de impossibilidade por imprevisibilidade de a questão ter sido antes suscitada', pois não podia contar com a 'interpretação e solução' do acórdão recorrido). E no mesmo requerimento diz a recorrente que 'recorre ainda ao abrigo da alínea i), 2ª parte, do nº 1 do mesmo artigo 70º', pois que 'até juntou cópia do D.R. onde constava o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 466/96 de 2/7/97 que deferiu a reclamação de um juiz para o mesmo efeito da reforma com declaração da isenção de custas' e 'invocou esse acórdão, pois esperava que fosse respeitada a autoridade do Tribunal Constitucional e, no fundo, o bloco de legalidade'
4- Nas suas alegações, e quanto ao recurso do Despacho de 9 de Março de 1998 proferido no Supremo Tribunal de Justiça indeferindo a interposição de recurso de decisão jurisdicional, concluiu assim a recorrente:
'I- Por força da revisão de 1997, o art. 32º nº 1 da Constituição garante que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional que vinha decidindo nesse sentido . II- Esse artigo 32º, através do novo nº I0, estende tais garantias de defesa com inclusão do recurso, próprias do processo criminal, a quaisquer processos sancionatórios públicos, como o presente em que se inserem a decisão recorrida, o pretendido recurso da decisão do STJ e o incidente de suspeição ou recusa. III- É o próprio EMJ, nos seus artigos 131º e 112º, que manda aplicar subsidiariamente as normas do CPP . A Constituição é, na parte que interessa, direito penal a aplicar directa e vinculativamente pelos tribunais . IV- No processo disciplinar, em que a arguida recorrente é accionada pelo CSM, está em causa um direito fundamental que é o da imparcialidade na condução daquele processo por parte do seu instrutor . V- Os instrutores de Pº disciplinar movido a juiz não são nomeados pelos juizes
. São nomeados pelo Conselho, sem audição prévia dos juizes e sem que a lei diga qual a estrutura do Conselho a quem cabe e como cabe a nomeação, se de entre vogais ou inspectores ou outros juízes . VI- O art. 103º al. c) da LPTA, aplicado por analogia a este caso, enferma de inconstitucionalidade por ofensa ao art. 32º nºs 1 e 10 da CRP revista em 1997, interpretado aquele no sentido de obstar ao recurso de decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça que funcionou em 1ª instância. VII- O EMJ não regula a admissibilidade ou os trâmites de recursos de decisão jurisdicional em matéria disciplinar, não obstando à aplicação da CRP cujas normas em qualquer caso devem ser respeitadas pelos tribunais VIII- A regra vigente no CPP, para o qual remetem os arts. 131º e 112º do EMJ, é a da recorribilidade das decisões desfavoráveis (ver artigo 399º do EMJ e a contrario sensu 400º do CPP). Idêntica regra vigora no Pº Civil ( art. 676º nº 1 do CPC). IX- Em matéria de acção disciplinar de natureza pública, sucede que a lei ordinária é expressa a conceder aos funcionários de justiça o duplo grau de jurisdição . X- A decisão agora impugnada baseou-se em que a lei não regula a composição do Supremo para o efeito de conhecer do recurso de decisão jurisdicional e assim indeferiu tal recurso . Mas a solução dessa questão, que compete ao Supremo depois de admitir o recurso e ouvir os interessados, não contende com a questão da admissibilidade do recurso que é prévia e cujos critérios de decisão são diferentes . XI- Se, admitido o recurso, ao Supremo se colocar a questão da composição da instância e lhe faltar norma expressa que resolva directamente a questão, haverá de socorrer-se das normas sobre a integração de lacunas, em obediência à Constituição e à lei ( art. 3º e 4º do EMJ, 8º do CC e 204º da CRP ) . Assim fez por exemplo o Ac. da Relação de Coimbra de 26/6/96 na CJ 1996, t. 3, p. 54. XII- A decisão agora impugnada, ao denegar o duplo grau de jurisdição no caso concreto, por considerar não ser admissível recurso do Acórdão proferido em 1ª instância pela secção do contencioso do STJ que confirmara a decisão do Conselho de indeferimento do incidente do Pº disciplinar no qual a arguida invocara a falta de imparcialidade do respectivo instrutor, ofende a norma complexa consagrada no art. 32º nºs 1 e 10 da Constituição, aplicável directa e vinculativamente para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos dos arts. 18º nº
1, 3º nº 3 e 204º da lei fundamental e 4º nº 1 do EMJ.' E quanto ao recurso que também 'interpôs do acórdão de 10/12/97 da 1ª secção
(contencioso) do Supremo Tribunal de Justiça que desatendeu a reclamação da decisão condenatória em custas em recurso no âmbito do Pº disciplinar nº
94/621', concluiu deste modo a recorrente as suas alegações:
'I- Para decidir que a arguida não beneficia da isenção de custas nos termos do artigo 17º nº 1 al. g ) do EMJ, o Acórdão recorrido interpretou o respectivo preceito legal neste sentido: Para que o juiz beneficie daquela isenção, no
âmbito da acção em que é parte, é necessário que esteja demonstrado que a sua intervenção (conduta) tenha resultado de algum despacho, sentença ou decisão proferida ou outra legítima actuação praticada no exercício da sua actividade jurisdicional . II- A decisão recorrida, por via dessa interpretação/aplicação, ofende o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, consignado no art. 13º da Constituição: - 1 ) ao discriminar os juízes conforme as acções emerjam de suas actuações positivas ou de suas omissões havidas no exercício das suas funções;
2) ao discriminar os juízes conforme as acções emerjam da sua prática de actos estritamente jurisdicionais ou de outras condutas havidas no exercício de suas funções; 3) ao discriminar os juizes conforme as acções emerjam de suas condutas legítimas ou de suas condutas ilegítimas no exercício de suas funções; 4) ao não dispensar à arguida o mesmo tratamento de isenção reconhecido pelo Acórdão
466/97 do Tribunal Constitucional, apesar de se estar perante dois casos essencialmente idênticos em vista do art. 17º nº 1 al. g ) do EMJ. III- A mesma ofende os princípios da defesa e da presunção de inocência da arguida, consignados no art. 32º nºs 1, 2 e 10 da Constituição: 1) ao exigir que antes da decisão final da acção disciplinar já esteja demonstrado o que só mediante a produção dos meios de prova apresentados na defesa e mediante a subsequente apreciação pode vir a ficar demonstrado, sucedendo que tais meios de prova pessoal ainda não foram produzidos; 2) ao dar como demonstrado precisamente o contrário daquilo que a arguida tem o direito de procurar demonstrar e que tanto o Conselho Superior da Magistratura como o Supremo Tribunal de Justiça ainda não permitiram que já pudesse estar demonstrado, com o deferimento pretendido pela arguida quanto à produção de prova no incidente que suscitou por suspeita de falta de imparcialidade do Instrutor da acção disciplinar IV- A mesma ofende o princípio do Estado de Direito democrático, na vertente da separação de poderes, a que se referem os arts. 2º, 111º nº 1 e 202º nºs 1 e 2 da Constituição, em consonância com os arts. 8º do Código Civil e os proémios dos arts. 3º e 4º do EMJ, ao basear-se em critérios manifestamente extra-legais para recusar a aplicação e inutilizar por completo a isenção legal de custas, em vez de se ater à norma do art. 17º nº 1 al. g ) do EMJ citado dimanada do Poder legislativo que visou 'qualquer acção' e não atribuiu aos tribunais a competência para, de entre as acções em que 'o juiz seja parte principal ou acessória por via do exercício das suas funções', apreciar quais aquelas em que se justifica a isenção de custas face à 'ratio legis' dignificação de funções e quais aquelas em tal não se justifica por concretamente o exercício de funções em causa não ser dignificante ou legítimo . A isenção tem por fonte a lei e não carece de tal mediação casuística do julgador . A dispensa é que seria casuística ( v. art. 7º nº 1 e 15º nº 1 da lei do apoio judiciário em confronto com os proémios dos arts.2º nº 1 e 75º do CCJ). V- Os recursos são fases eventuais das acções em cujo âmbito se inscrevem . A lei fundamental e a lei ordinária configuram o procedimento disciplinar do Conselho competente como consistindo em 'acção disciplinar', no âmbito da qual se inscrevem estes recursos . Para o efeito da dita isenção, é indiferente que se trate de acção civil, acção disciplinar, acção penal. Ao menos formalmente, a arguida é parte, na acção disciplinar, em qualquer fase que lhe respeite, inclusive como recorrente das decisões que lhe sejam desfavoráveis . Na acção disciplinar, a arguida é acusada por condutas referentes à forma de exercício das suas funções de juiz.'
5- Respondeu a tais alegações o Conselho Superior de Magistratura, sustentando o julgado, relativamente aos dois recursos.
6- Antes de mais convém referir que o âmbito das questões que se pretendem ver apreciadas é delimitado pelas conclusões da alegação do recurso, pelo que só o que nestas se contém pode ser tido em consideração por este Tribunal, além de que não pode estender-se nelas o objecto fixado no requerimento de interposição do recurso. Tendo estes elementos presentes, diga-se desde logo que não se alcança dos autos que o despacho em causa, de 9 de Março de 1998, tenha aplicado a norma do artigo
103º, alínea c), da LPTA, (nem ela estava já em vigor, face à alteração introduzida pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro). E o certo é que o vício de inconstitucionalidade apontado pela recorrente, no quadro marcado pelas suas alegações, tem a ver apenas com a norma em causa da LPTA – a única a que se reporta um juízo de inconstitucionalidade nas conclusões das suas alegações – e não com as normas do E.M.J. a que faz apelo o despacho recorrido, ou com a hipotética norma relacionada com o direito de ser ouvida
'antes de proferida a decisão do Supremo desfavorável' e, muito menos, com a decisão recorrida em si mesma (e é a esta que vem dirigida a censura centrada nos nºs VII a XII das conclusões), sabendo-se que o contencioso de constitucionalidade é sempre de normas em que se fundam as decisões impugnadas e não um contencioso de decisões, seja qual for a sua natureza. O corpo central da argumentação aproveitável da recorrente tem a ver com a exigência de um duplo grau de jurisdição, defendendo ela que é violador da Constituição denegar-se in casu esse duplo grau ao entender-se 'não ser admissível recurso do Acórdão proferido em 1ª instância pela secção do contencioso do STJ que confirmara a decisão do Conselho de indeferimento do incidente do Pº disciplinar no qual a arguida invocara a falta de imparcialidade do respectivo instrutor' (como se lê no nº XII das conclusões das respectivas alegações)
'O art. 103º al c) da LPTA, aplicado por analogia a este caso, enferma de inconstitucionalidade por ofensa ao art. 32º nºs 1 e 10 da CRP revista em 1997, interpretado aquele no sentido de obstar ao recurso de decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça que funcionou em 1ª instância' – é a afirmação essencial da recorrente. Ora, nas palavras do dito despacho, 'o art. 178º do E.M.J. apenas manda aplicar subsidiariamente, no STJ, os trâmites processuais dos recursos de contencioso administrativo interpostos para o STA, o que não é extensível à composição duma suposta nova instância de recurso, realmente inexistente no STJ. Se tal instância suplementar aqui não existe, é por opção do legislador, que taxativamente regula o assunto, não podendo falar-se duma lacuna, que seja necessário preencher'. O que o despacho recorrido faz não é outra coisa senão estabelecer um paralelismo entre o regime de recurso no STA e no STJ e assim, ele não se serviu da norma do artigo 103º, alínea c), da LPTA como sua 'ratio decidendi', mas sim como um 'obiter dictum'. E só se aplica uma norma quando ela constitui a 'ratio decidend' da decisão, o fundamento do seu próprio conteúdo ou do julgamento da causa e não quando é mencionada como simples 'obiter dictum'. Donde resulta que, fazendo-se a delimitação do objecto de conhecimento dos presentes recursos de constitucionalidade, a norma do artigo 103º, alínea c), da LPTA - aliás desaparecida desde 1996 do ordenamento jurídico, como já se referiu
- escapa a essa delimitação, havendo apenas que conhecer da matéria da questão das custas levantada pela recorrente, relativamente ao acórdão recorrido de 10 de Dezembro de 1997.
7- Ora, já teve este Tribunal Constitucional oportunidade de se debruçar sobre tal matéria. Fê-lo no acórdão nº 697/96, de 22 de Maio de 1996 (inédito) em situação precisamente idêntica à dos presentes autos. Nele se escreveu:
'O artigo 17º, nº1, alínea g), do EMJ, na sua redacção actual (Lei nº 1/94, de 5 de Maio), estabelece, com efeito, que 'são direitos especiais dos juízes:(...) a isenção de preparos e custas em qualquer acção em que o juiz seja parte principal ou acessória, por via do exercício das suas funções.' Entende-se, porém, que a isenção que a norma em causa atribui aos juízes, qualificando-a como um «direito especial» não é aplicável ao caso dos autos.
(...) A norma que o reclamante invoca refere-se tão somente aos casos em que o magistrado seja parte principal ou acessória na acção que por ele (ou contra ele) seja movida, com fundamento no exercício das respectivas funções, ou seja, tal isenção configurada como um «direito especial de função» parece visar essencialmente as acções a que se reportam os artigos nºs 1083º a 1093º do Código de Processo Civil, as acções de indemnização contra magistrados.
É que tal isenção, por um lado, não pode manifestamente abranger o caso dos autos, em que se está - não perante uma acção -, mas apenas e tão somente perante um recurso contencioso levantado contra uma deliberação do Conselho Superior da Magistratura (C.S.M.), em matéria disciplinar. E, por outro lado, o Estatuto dos Magistrados Judiciais contém norma específica que contempla o regime de custas respeitante aos recursos suscitados contra as deliberações ou decisões do Conselho Superior da Magistratura, quer em matéria disciplinar quer em outra matéria da sua competência. Com efeito, nos artigos 168º a 178º do E.M.J. regula-se o processamento de tais recursos, remetendo o último dos artigos referidos, como lei subsidiária, para as normas que regem os trâmites processuais dos recursos de contencioso administrativo interpostos para o Supremo Tribunal Administrativo. E o artigo 179º, que rege sobre 'custas e preparos', depois de determinar no seu nº1, que 'o recurso é isento de preparos', estabelece no seu nº 2 que 'o regime de custas é o que vigorar, quanto a recursos interpostos por funcionários, para o Supremo Tribunal Administrativo'. Com isto apenas se quer significar que a matéria de recurso contencioso das deliberações e decisões do Conselho Superior da Magistratura não pode ser, como se vê, matéria abrangida pela invocada isenção de custas.' Acrescente-se ao que fica dito que não ocorre qualquer tratamento diferenciado no que respeita ao caso contemplado no acórdão nº 466/97, publicado no Diário da República, II Série, nº 245, de 22 de Outubro de 1997 (e não tem razão de ser o fundamento invocado pela recorrente da alínea i), 2ª parte, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, pois aí se prevê unicamente uma contrariedade com convenção internacional, o que manifestamente é o presente caso - cfr. art. 71º, nº 2, da mesma Lei). Aquele acórdão, aliás, com votos de vencido, decidiu na mesma linha do acórdão nº 697/96, ou seja, considerou que a isenção referida no citado artigo 17º, nº
1, alínea g) enquadra-se por certo nos objectivos enunciados pelo legislador relativamente à dignificação da magistratura judicial, achando-se, porém, condicionada pela verificação cumulativa de dois pressupostos: o juiz há-de ser parte principal ou acessória na respectiva acção; esta deverá fundar-se em factos, comportamentos ou razões directamente conexionados com o exercício das suas funções. Porém, nesse acórdão, em processo em que havia sido amnistiado o procedimento criminal relativo ao crime de prisão ilegal por negligência grave, estávamos precisamente perante um pedido de indemnização contra magistrado, hipótese enquadrável na norma do artigo 1093º do Código de Processo Civil. Pode, todavia, contrapor-se que nesses citados acórdãos, debruçando-se sobre a matéria de isenção de custas na jurisdição constitucional, não foi perspectivada a questão numa óptica jurídico-constitucional, tal como pretende agora fazer vingar a recorrente, procurando detectar na interpretação e aplicação, que teriam sido feitas no acórdão recorrido, da norma em causa uma ofensa do
'princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, consignado no art. 13º da Constituição', uma ofensa dos 'princípios da defesa e da presunção de inocência da arguida, consignados no art. 32º, nºs 1,2 e 10 da Constituição' e ainda do
'princípio do Estado de Direito democrático, na vertente da separação de poderes, a que se referem os arts. 2º, 111º nº 1 e 202º nºs 1 e 2 da Constituição, em consonância com os arts. 8º do Código Civil e os proémios dos arts. 3º e 4º do EMJ, ao basear-se em critérios manifestamente extra-legais para recusar a aplicação e inutilizar por completo a isenção legal de custas, em vez de se ater à norma do art. 17º nº 1 al. g ) do EMJ'. Mas não tem razão a recorrente na alegação dessas ofensas. Desde logo registe-se que, revestindo a isenção em causa uma natureza processual ou objectiva, uma interpretação da norma, tal como é feita no citado acórdão nº
466/97, redundando num 'privilégio para uma categoria de arguidos', como é o caso desse acórdão, não é justificada 'por valores constitucionais adequados a um Estado de direito democrático' (cfr. a declaração de voto junto àquele acórdão). Quer dizer: o que é inconstitucional não é a interpretação e aplicação que teriam sido feitas no acórdão recorrido, mas exactamente uma interpretação e aplicação que conduzissem à isenção pretendida pelo recorrente ('Tal norma destina-se, obviamente, a privilegiar as situações em que o magistrado, por força do cumprimento do dever, é parte num processo, não podendo nem na sua letra (devido à referência à causa da participação no processo – ‘devido às suas funções’) nem no seu espírito caber a participação num processo em que o magistrado excedeu o exercício das suas funções, cometendo até um ‘crime contra a realização da justiça’' – lê-se ainda na mesma declaração de voto). Acrescente-se, todavia, que não se vê onde possa estar a pretendida
'discriminação' dos juízes, interpretada e aplicada a norma talqualmente faz o acórdão recorrido, pois a isenção de preparos e custas condicionada pela verificação cumulativa de dois pressupostos que resultam do seu articulado (isto
é, ser o juiz parte principal ou acessória em qualquer acção e devendo esta fundar-se em factos, comportamentos ou omissões directamente conexionadas com o exercício das suas funções) dirige-se a todo o universo dos juízes que possam achar-se beneficiados dessa isenção, ficando de fora aquele universo que não satisfaz a exigência dos apontados pressupostos. E esta exigência não se revela uma solução materialmente infundada, improcedendo, pois, a alegada ofensa do
'princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, consignado no art. 13º da Constituição'. Também não procede a invocada ofensa dos 'princípios da defesa e da presunção de inocência da arguida, consignados no art. 32º, nºs 1, 2 e 10 da Constituição', porquanto a isenção em causa, tendo a ver com o resultado do litígio em que a parte interessada ficou vencida – aqui, um incidente inserido num processo disciplinar -, não passa pela aplicação de tais princípios. Ponto é que eles se mostrem respeitados no decorrer desse processo, mas isso não tem ligação com a pretendida isenção de custas. Por fim, não tem a mínima subsistência a argumentação da recorrente quanto à ofensa do 'princípio do Estado de Direito democrático, na vertente da separação de poderes, a que se referem os arts. 2º, 111º nº 1 e 202º nºs 1 e 2 da Constituição, em consonância com os arts. 8º do Código Civil e os proémios dos arts. 3º e 4º do EMJ, ao basear-se em critérios manifestamente extra-legais para recusar a aplicação e inutilizar por completo a isenção legal de custas, em vez de se ater à norma do art. 17º nº 1 al. g ) do EMJ', pois não há apelo a
'critérios manifestamente extra-legais para recusar a aplicação e inutilizar por completo a isenção legal de custas'. Antes, e só, foi feita no acórdão recorrido uma aplicação correspondente ao sentido literal da norma, ao tomar-se em consideração uma situação processual que não merecia o tratamento especial que é dado aos juízes através de tal isenção.
8- Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrentes nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 30 de Junho de 1999- Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida