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Processo nº 683/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
Recorrente(s): FC Recorrido(s): Estado Português (representado pelo Ministério Público) I. Relatório:
1. O recorrente interpôs o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação de Évora, que, na resposta ao convite para aperfeiçoar o requerimento, identificou como sendo o de 6 de Abril de 2000 «integrado pelos respectivos acórdãos subsequentes
(nº 2 do artigo 670º do Código de Processo Civil), que julgou o tribunal judicial absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer da providência cautelar comum requerida contra o Estado e dependente da acção ordinária nº 106/99 em que o recorrente, aí autor, pede a declaração de validade e eficácia dos contratos civis de exploração relativos às parcelas 6 e 7 da
'Fonte da Moura'».
Pretende que o Tribunal aprecie a constitucionalidade das seguintes normas, cuja interpretação indicou na resposta ao convite para aperfeiçoamento do recurso:
(a). as dos artigos 3º e 4º, nº 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 31º, nº 1, do Código de Procedimento Administrativo, na interpretação 'que integra na relação jurídica administrativa as questões de direito privado/civil e processualmente autónomas, que constituem pressupostos legais da mesma';
(b). a da alínea a) do nº 1 do artigo 669º do Código de Processo Civil, na interpretação 'que exclui das obscuridades que cumpre ao juiz esclarecer as ilações legalmente ilógicas, objectivamente implícitas no conteúdo da respectiva decisão'.
Disse ainda o recorrente, na dita resposta, que a inconstitucionalidade das normas constantes dos mencionados artigos 3º e 4º, nº 1, alínea f), e 31º, nº 1, a suscitou 'nas alegações de recurso para a Relação remetidas pelo registo postal de 3 de Dezembro de 1999'; e a da norma constante do referido artigo
669º, nº 1, alínea a), 'no requerimento remetido à Relação de Évora por registo postal de 15 de Junho de 2000'.
O relator, por entender que se não verificavam os pressupostos do recurso interposto, proferiu decisão sumária de não conhecimento do mesmo.
2. É desta decisão sumária de não conhecimento do recurso que o recorrente agora reclama para a conferência, pedindo que se conheça das inconstitucionalidades objecto do recurso. Fundamenta a sua pretensão dizendo:
1. Embora seja indiscutível a observação do ponto 2. da decisão reclamada, a mesma não obsta à produção de efeitos da aclaração requerida, designadamente os que constituem no melhor desenvolvimento da explicitação de juízo de inconstitucionalidade anteriormente expresso pelo recorrente nas suas alegações. Neste aspecto o então requerido é um elemento interpretativo que não pode deixar de ser tido em conta na conclusão sobre a forma processualmente adequada de suscitar a inconstitucionalidade em termos de a Relação estar obrigada a conhecê-la. Aliás, nas mesmas alegações (j) a recorrente não se limitou a dizer que a decisão recorrida violou determinados preceitos legais, como se lê em 3. da decisão reclamada, já que essa afirmação é logicamente incindível das razões que a fundamentam e que são as constantes das anteriores conclusões (b) e g)). Acresce, além do mais, que todas essas questões eram questões de direito que a Relação, oficiosamente, devia conhecer (artigos 204º CR e 664º CPC). Daí a discordância do reclamante salvo melhor opinião, do juízo de inadequação processual formulado pelo Exmº Conselheiro Relator – o qual é omisso sobre os factos que configuram o conceito indeteminado do nº 2 do artigo 72º da LOTC.
2. As razões aduzidas em 1. supra valem igualmente para a rejeição dos argumentos do ponto 4.da decisão em apreço. A questão de inconstitucionalidade já estava suficientemente definida nas alegações para a Relação e ainda mais clara ficou mediante o requerimento de esclarecimentos subsequentes, segundo as regras dos artigos 236º e segs. do CC. Tendo o destinatário judiciário dessas declarações tinha o dever de ofício delas conhecer e nunca expressou qualquer dúvida a seu propósito. E se a tivesse deveria resolvê-la conhecendo a questão (de direito) pelo menos perceptivelmente suscitada. Pelo contrário, olimpicamente, a Relação permaneceu reiteradamente silente e indeferiu os esclarecimentos, manifestamente claros, requeridos, e por conseguinte foi arguida a nulidade dessa decisão por aplicação da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 669º do CPC em violação dos artigos 20º e 205º da Constituição. Segundo a decisão do Exmº Conselheiro Relator essa questão deveria ter sido invocada antes da sua aplicação pelo tribunal recorrido – ou seja, ao formular o próprio pedido de aclaração, até porque nele o requerente invocou expressamente a norma aplicada. Quer isto dizer que quando pede a aclaração do decidido a parte tem que prevenir o julgador, legalmente obrigado a prestá-la, das violações constitucionais em que incorrerá caso não o faça. Desconhece-se o apoio legal de tal asserção, tanto mais que o juiz não pode ignorar o direito e a única presunção legal exigível à parte é a de que o juiz vai julgar da garantia constitucional do acesso ao direito de acordo com a Constituição e a lei. De resto, a interpretação desse normativo do artigo 669º CPC feita pela Relação não pode deixar de qualificar-se de insólita e, portanto, legalmente imprevisível – e até contrária ao próprio significado semântico do esclarecimento (aclaração) devido. Como decidiram entre outros os acórdãos do TC 479/89 (BMJ 389/222) e 386/97 (BMJ
467/221) à parte não pode ser atribuído o ónus da previsibilidade da interpretação e aplicação da norma em termos que contrariam as suas legítimas (e razoáveis) expectativas – consoante impõem os artigos 236º e sgs. do CPC, mas antes de tudo os princípios do inquisitório e da cooperação, postulados da garantia constitucional do acesso ao direito (artigo 20º da Constituição). Por último, o facto de ter enunciado essa inconstitucionalidade na sequência do despacho proferido nos termos do nº 5 do artigo 75º-A da LOTC é absolutamente irrelevante, precisamente porque respondeu a esse convite como lhe é facultado legalmente.
O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em exercício de funções neste Tribunal veio responder nos termos seguintes:
1º Relativamente à questão da incompetência material dos tribunais judiciais para conhecerem da pretensão deduzida, é manifesto que o reclamante não suscitou
– podendo tê-lo feito – em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
2º Relativamente à questão conexionada com o pedido de aclaração deduzido perante a Relação, é, desde logo, manifesto que a questão suscitada não reveste sequer a natureza de uma questão de inconstitucionalidade de normas – não competindo obviamente ao Tribunal Constitucional sindicar da possível existência de qualquer 'ilogismo' ou inconcludência jurídica na decisão impugnada.
3º Aliás, o que verdadeiramente pretende o recorrente é desviar a típica funcionalidade do incidente de 'aclaração' das decisões judiciais, tornando-o meio adequado para questionar o mérito da fundamentação jurídica do decidido – e com a agravante de pretender fazer sindicar tal matéria no âmbito de um recurso de fiscalização concreta.
4º Acresce que o acórdão da Relação que se pronunciou sobre tal matéria não aplicou manifestamente a norma constante do artigo 669º, nº 1, a), do Código de Processo Civil com o sentido, pretensamente inconstitucional, especificado pelo recorrente: como se refere no acórdão de fls. 166, «'concorda-se' inteiramente com a tese do recorrente segundo a qual 'a clareza das decisões judiciais relevante para o cumprimento do dever legal de fundamentação não se limita ao aspecto meramente literal ou semântico; inclui também a sua lógica jurídica'»
–considerando, porém, em obediência a este critério normativo, que a decisão recorrida não padece, nessa perspectiva, de qualquer obscuridade ou ambiguidade.
5º Ou seja: o acórdão impugnado, partindo do próprio critério normativo enunciado pelo recorrente, apenas diverge dele quanto à concreta conclusão a que chega – de nenhuma inconcludência jurídica inquinar a decisão concretamente proferida – matéria que, como é óbvio, não constitui objecto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade de 'normas'.
6º Termos em que deverá manifestamente improceder a reclamação deduzida.
3. Decidindo:
II. Fundamentos: Na decisão sumária escreveu-se o seguinte: Deve dizer-se que, contrariamente ao que afirma o recorrente, o acórdão da Relação de Évora, de 6 de Abril de 2000 – que absolveu o Estado da instância, com fundamento em que o tribunal judicial é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer da providência cautelar comum, em que o recorrente pediu que se intimasse o Estado que se abstivesse de conhecer da validade e da eficácia dos contratos celebrados entre ele, recorrente, e outrem, enquanto não fosse decidida, com trânsito em julgado, a acção ordinária nº 105/99 que corre termos no Tribunal Judicial de Vila Viçosa – não é 'integrado pelos respectivos acórdãos subsequentes'. Não o é, porque o acórdão de 1 de Junho de 2000 indeferiu o pedido de aclaração daquele aresto de 6 de Abril de 2000, formulado pelo recorrente; e o acórdão de 28 de Setembro de 2000 indeferiu o requerimento apresentado ao abrigo do disposto no artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, na sequência da notificação daquele acórdão de 1 de Junho de
2000. Ora, apenas se considera 'complemento e parte integrante da sentença' a decisão que deferir o requerimento de esclarecimento; não aquele que o indeferir. Feita esta advertência, acrescenta-se que o recorrente, na alegação para a Relação, não suscitou a inconstitucionalidade de qualquer norma jurídica: não suscitou, designadamente a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 3º, 4º, nº 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e do artigo 31º, nº 1, do Código de Procedimento Administrativo, na interpretação que pretende ver apreciada ratione constitutionis – interpretação
'que é a que integra na relação jurídica administrativa as questões de direito privado/civil e processualmente autónomas, que constituem pressupostos legais da mesma'. Nessa alegação, o que ele disse foi que a decisão recorrida violou determinados preceitos legais [entre eles, o artigo 4º, nº 1, alínea f), daquele Estatuto e o artigo 31º, nº 1, do dito Código] e alguns preceitos constitucionais, que indicou. Não tendo o recorrido suscitado perante a Relação a inconstitucionalidade das normas dos artigos 3º e 4º, nº 1, alínea f), do mencionado Estatuto e do artigo
31º, nº 1, do dito Código (não o fez, ao menos, de forma processualmente adequada, em termos de a Relação estar obrigada a dela conhecer), não pode o Tribunal tomar conhecimento dessa parte do objecto do recurso [cf. artigo 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional]. Quanto ao artigo 669º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil – que prescreve que, proferida a sentença, pode qualquer das partes requerer ao tribunal que a proferiu 'o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha' – o recorrente, no requerimento apresentado em 16 de Outubro de 2000 [formulado ao abrigo do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil e dirigido contra o aresto de 1 de Junho de 2000] disse que 'a interpretação da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 669º do Código de Processo implícita no acórdão de fls. viola os artigos 20º e 205º da Constituição'. Vale isto por dizer que a norma do dito artigo 669º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil foi aplicada pelo acórdão de 1 de Junho de 2000, mas que o recorrente apenas suscitou a sua inconstitucionalidade depois de o tribunal recorrido a ter aplicado. E isso, não obstante tê-lo podido fazer antes, justamente ao formular o pedido de aclaração, pois que, nesse pedido, invocou expressamente tal normativo. Acresce que, ao suscitar a inconstitucionalidade da interpretação, que pretende que o Tribunal aprecie sub specie constitutionis, o recorrente não a enunciou; apenas na resposta ao convite para aperfeiçoar o requerimento de recurso para este Tribunal, disse que essa interpretação é a 'que exclui das obscuridades que cumpre ao juiz esclarecer as ilações legalmente ilógicas, objectivamente implícitas no conteúdo da respectiva decisão'. Não tendo o recorrente suscitado a inconstitucionalidade do mencionado artigo
669º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil antes de proferido o acórdão de 1 de Junho de 2000, que o aplicou, não pode conhecer-se do recurso, enquanto ele tem por objecto tal aresto e essa norma. Por outro lado, como, ao suscitar a inconstitucionalidade de tal normativo, o recorrente não enunciou a interpretação que, em seu entender, é inconstitucional, também não pode conhecer-se do recurso, enquanto o mesmo tem por objecto essa norma e o acórdão de 28 de Setembro de 2000. Isto, suposto que este último aresto, quando ponderou que 'o exercício daquele direito [ao esclarecimento] depende da existência de alguma obscuridade ou ambiguidade que a sentença contenha', mas que, como se assinalou no acórdão anterior, 'o recorrente não aponta ao acórdão qualquer obscuridade ou ambiguidade', aplicou tal norma com a interpretação atrás indicada; e suposto, bem assim, que o sentido com que o recorrente diz ter sido aplicado o preceito é, na realidade, ainda uma dimensão interpretativa do mesmo.
É que, não tendo o recorrente enunciado, de forma clara e perceptível, a interpretação do referido preceito legal, que tinha por inconstitucional, não cumpriu ele o ónus (imposto pelo nº 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional) de suscitar 'a questão da inconstitucionalidade [...] de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer'. Também, pois, quanto à norma do artigo 669º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, na interpretação apontada, se não pode conhecer do recurso.
5. A conclusão de não conhecimento do recurso a que se chegou na decisão sumária não merece censura.
De facto, quanto às normas relativas à questão da incompetência dos tribunais judiciais para o conhecimento da pretensão deduzida pelo recorrente – ou seja: quanto às normas dos artigos 3º e 4º, nº 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e do artigo 31º, nº 1, do Código de Procedimento Administrativo -, ele não suscitou a sua inconstitucionalidade perante a Relação, de modo processualmente adequado. E, quanto à norma do artigo 669º, nº
1, alínea a), do Código de Processo Civil, ao que se ponderou, a esse propósito, na decisão sumária, acresce mais o seguinte, que é sublinhado pelo Ministério Público: a questão atinente a esse normativo, tal como o recorrente a coloca,
'não reveste sequer a natureza de uma questão de inconstitucionalidade de normas
– não competindo, obviamente, ao Tribunal Constitucional sindicar a possível existência de qualquer ‘ilogismo’ ou inconcludência jurídica na decisão impugnada', para além de que o acórdão recorrido partiu do 'próprio critério normativo enunciado pelo recorrente', apenas divergindo deste no que toca 'à concreta conclusão a que chega', que é a de que 'nenhuma inconcludência jurídica inquina a decisão concretamente proferida – matéria que, como é óbvio, não constitui objecto idóneo de um recurso de fiscalização da constitucionalidade de
‘normas’'.
Há, por isso, que indeferir a reclamação e confirmar a decisão sumária.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). indeferir a reclamação de não conhecimento do recurso; e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
(b). condenar o reclamante nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa14 de Fevereiro de 2001 Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida