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Proc. n.º 131/04
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Em processo que correu os seus termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, foi proferido despacho, em 14 de Março de 2002, que indeferiu as diligências de prova requeridas pelo arguido e ora recorrente, A., no sentido de que fosse efectuado exame pericial ao aparelho de medição da taxa de álcool no sangue ------------- e elaborado relatório social. Realizado o julgamento, foi proferida decisão, em 24 de Abril de 2002, que condenou o arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 7,50, a que correspondem 80 dias de prisão subsidiária, e ainda na sanção acessória de proibição de condução de veículos motorizados por um período de 4 meses.
2. Inconformado com aquelas decisões o arguido recorreu delas para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo então formulado as seguintes conclusões:
“1) O auto de notícia, bem como a leitura do aparelho é inconstitucional;
2) A sentença recorrida violou o artigo 99.°, n.º 4 e 169.° do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação do artigo 32.°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e ainda artigos 47.° e 71.º do Código Penal, no tocante à determinação do montante da multa;
3) O tribunal fez uma interpretação restritiva da presunção de inocência do arguido presente no artigo 32 CRP, quando deveria ter interpretado esta norma em termos absolutos;
4) O indeferimento dos meios de prova requeridos pelo arguido, impossibilitam o exercício do seu direito de defesa;
5) A condenação do arguido em 120 dias de multa à taxa diária de Euro 7, 5 é exagerada, para a condição económica do mesmo. Em matéria de facto
6) A matéria de facto dada como provada na sentença condenatória é insuficiente para condenar o arguido, uma vez que não foi esclarecido em que moldes o arguido foi informado do seu direito à contraprova, preenchendo-se assim o pressuposto do artigo 410.°, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal ;
7) Foram incorrectamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto: Pontos a) a f) da matéria de facto dada como provada e não provada;
8) O depoimento do agente autuante, impõem decisão diversa da recorrida, através da análise dos seguintes segmentos dos suportes magnéticos: Fita1, Lado 1 - Minuto 00'15 a Minuto 8'32.
9) Deve ser renovado o depoimento do agente autuante, através da análise do seu testemunho na Fita 1, Lado 1 - Minuto 00'15 a Minuto 8'32”.
3. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 14 de Janeiro de 2004, decidiu julgar improcedente o recurso do despacho proferido a fls. 123 e 124, e julgar parcialmente procedente o recurso da sentença e, consequentemente, alterar a decisão recorrida, condenando o arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5.
4. É desta decisão que foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
“1° O arguido, no âmbito do processo nº63/2000.9GAMGR do 2° Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande, recorreu da sentença condenatória.
2° Nesse recurso, nas suas conclusões, o arguido invocou a inconstitucionalidade do auto de notícia.
3° O arguido, inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, invocando expressamente esta inconstitucionalidade.
4° Para tanto, o arguido alegou o seguinte:
5° Ao auto de notícia, tal como vem previsto no artigo 243° do Código de Processo Penal, aplica-se a regra geral sobre os autos, que vem prevista no artigo 99° do mesmo diploma legal.
6° Porém, o n.º 4 deste artigo manda aplicar ao mesmo, o disposto no artigo
169°.
7° Ou seja, os autos (incluindo os autos de notícia), têm o valor probatório de um documento autêntico.
8° Que, como é sabido, só admitem prova em contrário, nos termos da lei civil.
9° Aliás, o próprio artigo 169° do Código de Processo Penal, refere que se consideram provados os factos materiais constantes de documento autêntico, enquanto a veracidade do seu conteúdo não forem postas em causa.
10º Esta consequência jurídica, aliada ao facto de a leitura do aparelho utilizado pelas autoridades policiais no medição da taxa de alcoolémia, constituir prova documental,
11° E de as testemunhas da acusação, basearem o seu testemunho, sobretudo na apreciação da leitura de tal aparelho,
12° Torna todos os julgamentos no (onde o valor do auto de notícia reveste maior importância) por condução de veículo em estado de embriaguez, praticamente indefensáveis.
13° Pode-se ainda salientar o facto, que mesmo que um arguido confesse os factos subjacentes a este tipo de crime, aquilo que de facto o incrimina, é a leitura do aparelho de medição e o auto de notícia.
14° Relativamente ainda, ao valor probatório do auto de notícia, escreve a Professora Teresa Beleza, em Apontamentos de Direito Processual Penal, II Volume. Edições AAFDL. pag.158. que' Comparemos com o que se passa com os documentos autênticos propriamente ditos. Não quer isto dizer que um acto de compra e venda se não possa considerar provado até à falsidade da escritura pública ser fundadamente arguida (art.169°). Mas esse contrato - que pode ser importante para a determinação da existência de um crime, por exemplo de burla, ou de corrupção, ou outro qualquer - não corresponde em si a qualquer facto típico ( pelo menos em termos de tipo objectivo) - isto é indiciariamente criminoso. O que se passa quando uma autoridade levanta um auto de notícia é, pelo contrário, isso mesmo: atesta-se que uma pessoa foi observada em flagrante delito, isto é a cometer um crime.”.
15° Acrescenta ainda esta autora, “Por isso mesmo, eu julgo que ainda que se pudesse considerar o auto de notícia incluído na definição legal de documento autêntico, não se deveria reconhecer-lhe qualquer valor probatório especial. Terá que nos termos do CPP, eficácia de denúncia e potencialidade para substituir a acusação em processo sumário, mas do ponto de vista probatório deveria ser considerado um elemento entre outros, sem o benefício de qualquer presunção. E claro que a partir da existência do artigo 99º, n.º 4 a questão só pode colocar-se no plano da eventual inconstitucionalidade.
16° Refira-se ainda estas normas são um sucedâneo do artigo 169° do Código de Processo Penal de 1929, onde o auto de notícia fazia fé em juízo até prova em contrário.
17° Face ao exposto, o artigo 99°, n.º4 e 169° do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação do artigo 32°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
18° Não devendo por isso, o auto de notícia e a leitura de medição do aparelho utilizado nos autos, ser tomados em consideração em sede de audiência e discussão de julgamento.
19° O Tribunal da Relação de Coimbra, entendeu julgar que os autos de notícia não são inconstitucionais. II - Pressupostos processuais do recurso :
20º O presente recurso constitucional é interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º
1, alínea b) da Lei 28/82 de 15 de Novembro.
21° O recorrente pretende ver discutida a constitucionalidade da força probatória dos autos de notícia.
22° O arguido considera que foi violado o artigo 32°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
23° O recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade no seu recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
24° O Acórdão proferido no âmbito destes autos, não é susceptível de recurso ordinário”.
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
“7. Não obstante o Tribunal Constitucional já ter, sobre questão idêntica à que agora vem colocada pelo recorrente, embora reportada à norma constante do n.º 5 do artigo 64º do Código da Estrada, na parte em que atribuía valor de auto de notícia aos elementos colhidos através de aparelho de radar fiscalizador do trânsito, concluído no sentido da sua não inconstitucionalidade (cfr. os Acórdãos n.ºs 87/87, 118/87, 127/87, 155/87, 203/87, 212/87, 253/87, 254/87,
260/87, 272/87, 33/90, 103/90 e 649/93 (publicados no Diário da República, respectivamente, de 25 de Fevereiro, 25 de Março, 8 de Abril, 6 de Maio, 5 e 26 de Junho, 10 de Julho de 1987, 7 de Fevereiro e 29 de Março de 1990, e o último inédito), jurisprudência que foi, recentemente, estendida à norma do artigo
151º, n.º 4, do Código da Estrada, que dispõe em sentido idêntico àquele artigo
64º, n.º 5, pelo Acórdão n.º 440/03 (já disponível na página Internet do Tribunal Constitucional em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), a verdade é que, no caso dos autos, não pode sequer conhecer-se do objecto do recurso. Com efeito, como o Tribunal tem reiteradamente afirmado, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, pressupõe, nomeadamente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, a inconstitucionalidade da norma jurídica cuja conformidade com a Constituição pretende ver apreciada por este Tribunal (art. 72º, n.º 2 da LTC). Ora, no caso concreto, na alegação apresentada perante o Tribunal da Relação de Coimbra, que proferiu a decisão recorrida, o recorrente optou sempre por imputar a inconstitucionalidade ao auto de notícia, ao aparelho através do qual foi efectuada a medição da TAS, ou à própria decisão de que recorreu, e não, como devia, a quaisquer normas jurídicas. Para o demonstrar bastará recordar aqui as conclusões daquela peça processual, que supra já transcrevemos integralmente:
“1) O auto de notícia, bem como a leitura do aparelho é inconstitucional;
2) A sentença recorrida violou o artigo 99.°, n.º 4 e 169.° do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação do artigo 32.°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e ainda artigos 47.° e 71.º do Código Penal, no tocante à determinação do montante da multa;
3) O tribunal fez uma interpretação restritiva da presunção de inocência do arguido presente no artigo 32 CRP, quando deveria ter interpretado esta norma em termos absolutos;
4) O indeferimento dos meios de prova requeridos pelo arguido, impossibilitam o exercício do seu direito de defesa;
[...]” (sublinhados nossos). Ora, tal forma de proceder não é, como o Tribunal tem sistematicamente afirmado, idónea para permitir o recurso de constitucionalidade que pretendeu interpor, por não configurar um modo processualmente adequado de colocar uma questão de constitucionalidade normativa. Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, há que concluir pela impossibilidade de conhecer do objecto do presente recurso, por não estar presente, pelo menos, um dos seus pressupostos de admissibilidade.”
6. Inconformado com esta decisão, o recorrente apresentou a presente reclamação para a Conferência, através de requerimento do seguinte teor:
“[...], I - Fundamentos do Recurso:
1° O arguido sempre suscitou a inconstitucionalidade de normas jurídicas, nomeadamente dos artigos 99°, n.º 4 e 169° do Código de Processo Penal
2° Preenchendo assim os pressupostos previstos no artigo 70º da L TC.
3° O arguido, inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, invocando expressamente esta inconstitucionalidade.
4° Para tanto, o arguido alegou o seguinte:
5° Ao auto de notícia, tal como vem previsto no artigo 243° do Código de Processo Penal, aplica-se a regra geral sobre os autos, que vem prevista no artigo 99° do mesmo diploma legal.
6º Porém, o nº 4 deste artigo manda aplicar ao mesmo, o disposto no artigo 169°.
7° Ou seja, os autos (incluindo os autos de notícia), têm o valor probatório de um documento autêntico.
8° Que, como é sabido, só admitem prova em contrário, nos termos da lei civil.
9° Aliás, o próprio artigo 169° do Código de Processo Penal, refere que se consideram provados os factos materiais constantes de documento autêntico, enquanto a veracidade do seu conteúdo não forem postas em causa.
10º Esta consequência jurídica, aliada ao facto de a leitura do aparelho utilizado pelas autoridades policiais na medição da taxa de alcoolémia, constituir prova documental,
11° E de as testemunhas da acusação, basearem o seu testemunho, sobretudo na apreciação da leitura de tal aparelho,
12° Torna todos os julgamentos (onde o valor do auto de notícia reveste maior importância) por condução de veículo em estado de embriaguez, praticamente indefensáveis.
13° Pode-se ainda salientar o facto, que mesmo que um arguido confesse os factos subjacentes a este tipo de crime, aquilo que de facto o incrimina, é a leitura do aparelho de medição e o auto de notícia.
14° Relativamente ainda, ao valor probatório do auto de notícia, escreve a Professora Teresa Beleza, em Apontamentos de Direito Processual Penal, II Volume, Edições AAFDL, pag.158 que' Comparemos com o que se passa com os documentos autênticos propriamente ditos. Não quer isto dizer que um acto de compra e venda se não possa considerar provado até à falsidade da escritura pública ser fundadamente arguida (art.169º). Mas esse contrato - que pode ser importante para a determinação da existência de um crime, por exemplo de burla, ou de corrupção, ou outro qualquer - não corresponde em si a qualquer facto típico (pelo menos em termos de tipo objectivo) - isto é: indiciariamente criminoso. O que se passa quando uma autoridade levanta um auto de notícia é, pelo contrário, isso mesmo: atesta-se que uma pessoa foi observada em flagrante delito, isto e: a cometer um crime.
15° Acrescenta ainda esta autora, “Por isso mesmo, eu julgo que ainda que se pudesse considerar o auto de notícia incluído na definição legal de documento autêntico, não se deveria reconhecer-lhe qualquer valor probatório especial. Terá que nos termos do CPP, eficácia de denúncia e potencialidade para substituir a acusação em processo sumário, mas do ponto de vista probatório deveria ser considerado um elemento entre outros, sem o benefício de qualquer presunção. É claro que a partir da existência do artigo 99º, nº4 a questão só pode colocar-se no plano da eventual inconstitucionalidade.
16° Refira-se ainda estas normas são um sucedâneo do artigo 169° do Código de Processo Penal de 1929, onde o auto de notícia fazia fé em juízo até prova em contrário.
17° Face ao exposto, o artigo 99°, nº 4 e 169° do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação do artigo 32°, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
18° Não devendo por isso, o auto de notícia e a leitura de medição do aparelho utilizado nos autos, ser tomados em consideração em sede de audiência e discussão de julgamento.
19° O Tribunal da Relação de Coimbra, entendeu julgar que os autos de notícia não são inconstitucionais.
20° Tendo o arguido recorrido para o Tribunal Constitucional.
21° O arguido sempre indicou quais as normas cuja inconstitucionalidade indica,
22° Tendo-o feito em primeira instância, nomeadamente em sede de contestação e requerimento de abertura de instrução.
23° Pelo que tendo preenchido os pressupostos exigidos na lei, deverá a decisão sumária ser reparada, ordenando-se a sua substituição por outro, apreciando-se o recurso interposto pelo arguido. […]”
6. O Ministério Público, notificado da presente reclamação, respondeu da seguinte forma:
“1 - A presente reclamação é manifestamente infundada.
2 - Na verdade, o reclamante não suscitou, em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de base ao recurso interposto.
3 - Não se entendendo, por outro lado, o pedido de pagamento de honorários, deduzido a fls. 305, numa fase em que, por iniciativa do reclamante, o processo constitucional não está obviamente findo. ”
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação
7. Na decisão sumária reclamada considerou-se que não estavam preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, invocada pelo recorrente. O recorrente vem reclamar desta decisão. Fá-lo, porém, em termos que revelam que não entendeu o seu verdadeiro fundamento normativo.
Com efeito, entende o ora reclamante que “sempre indicou quais as normas cuja inconstitucionalidade indica”, “pelo que tendo preenchido os pressupostos exigidos na lei, deverá a decisão sumária ser reparada”.
Basta, porém, ler as conclusões da alegação para o Tribunal da Relação de Coimbra, que acima se transcreveram integralmente, para verificar que nenhuma questão de constitucionalidade normativa foi suscitada perante aquele Tribunal, bem como basta ler o teor da reclamação, que acima se igualmente se reproduziu na íntegra, para constatar que nenhum argumento novo é aduzido que possa infirmar a fundamentada conclusão, a que se chegou na decisão reclamada, de que se não pode conhecer do objecto do recurso, por não estarem presentes os seus pressupostos de admissibilidade.
Assim sendo, e pelas razões já constantes da decisão reclamada, que mantém inteira validade e em nada é infirmada pela presente reclamação, é efectivamente de não conhecer do objecto do recurso que a recorrente pretendeu interpor.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Março de 2004
Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida