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Proc. nº 747/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. e B. interpuseram recurso contencioso do mandado de encerramento de instalações da sociedade referida, emitido em 4 de Abril de 2001 pelo Director de Serviços da Direcção-Geral de Fiscalização e Controlo da Qualidade Alimentar. O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, por decisão de 31 de Janeiro de
2002, considerou o seguinte:
Os Recorrentes sustentam que a qualificação como «falta de definitividade vertical» se afigura «original» por ser conhecida mais comumente por incompetência em razão da hierarquia, pelo que não vislumbram como é que a referida falta de definitividade pode implicar a irrecorribilidade do acto. Estranha-se a surpresa dos Recorrentes, porquanto a característica da definitividade vertical do acto administrativo está ligada ao modelo hierárquico de organização dos serviços públicos, o que implica, em regra, que só sejam recorríveis os actos administrativos lesivos que sejam a última palavra da administração. Ora, considerando que na administração pública vigora o princípio da competência própria separada, não existindo delegação ou subdelegação de competências nem disposição legal em contrário (atribuição expressa do recurso ou atribuição de uma competência exclusiva), os actos administrativos lesivos praticados por subalternos não são imediatamente recorríveis, isto é, não são verticalmente definitivos, cabendo deles recurso hierárquico necessário para abrir a via contenciosa.
É precisamente por isso que, no caso em apreço, em face da inexistência de qualquer delegação (ou subdelegação) de competências ou de disposição legal a atribuir uma competência exclusiva, a Autoridade Recorrida, sendo um órgão subalterno (directora de serviços), só pode praticar actos administrativos não definitivos verticalmente (sejam eles válidos ou inválidos). Trata-se de questão largamente tratada pela jurisprudência, pelo que, para maior desenvolvimento, se remete os Recorrentes por exemplo, para o Acórdão do T.C. no proc. 6482, publicado no DR de 3-07-96, pág. 8 902, e Acórdãos do STA de
30-04-97, 28-04-98, 22-10-98, 28-04-99 e 13-04-2000, respectivamente recursos n°
35259, n.º 43 504, n.º 40 149, n.º 40 256 e n.º 45 398, a cujos fundamentos, na generalidade, se adere e se dão por reproduzidos, evitando repetições inúteis. Sendo assim, em conformidade com o § 4° do art. 57° do RSTA, rejeita-se o recurso por manifesta ilegalidade na sua interposição, decorrente da irrecorribilidade do acto impugnado por falta de definitividade material.
2. Os recorrentes interpuseram recurso da decisão de 31 de Janeiro para o Supremo Tribunal Administrativo. O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 18 de Dezembro de 2002, considerou o seguinte:
II. O DIREITO
A única questão que este recurso jurisdicional nos coloca é a de saber se, como se decidiu no Tribunal recorrido, o acto impugnado é verticalmente definitivo e, portanto, imediatamente sindicável contenciosamente, pois que foi o convencimento de que o não era que levou o Sr. Juiz a quo a rejeitar o recurso contencioso. O acto recorrido é, como a matéria de facto evidencia, a decisão da Sr.a Directora de Serviços da DGFCQA que ordenou a suspensão imediata da laboração que a Recorrente vinha fazendo num seu estabelecimento com o fundamento de que este não estava legalizado para o efeito. Para decidir como decidiu o Sr. Juiz a quo considerou que na nossa Administração Pública vigora o princípio da competência própria separada e que dele resulta que os actos dos subalternos, salvo se dispuserem competência delegada, não são imediatamente recorríveis visto a sua recorribilidade depender da interposição de prévio recurso hierárquico. Sendo assim, e sendo que, no caso sub judicio, a Autoridade Recorrida era um
órgão subalterno que não dispunha de competência delegada concluiu que das decisões desta, nomeadamente da que ora nos ocupa, não se podia recorrer imediata e contenciosamente, pelo que o recurso contencioso que havia sido interposto era ilegal. Contra esta decisão se insurge a Recorrente por entender que o acto impugnado
(ainda que se pudesse admitir que não era definitivo) era lesivo e que, por isso, de acordo com a nova redacção do n.º 4 do art. 268.º da CRP, era imediatamente recorrível.
1. O acto aqui em causa é da autoria da Sr.a Directora Geral da DGFCQA. Nos termos dos arts. 3.º e 4.º da Lei Orgânica da DGFCQA (aprovada pelo DL
98/87, de 26/4), este organismo é uma estrutura hierarquizada que dispõe dos seguintes órgãos: a) do Director Geral, b) do Conselho Administrativo e, c) do Conselho Consultivo, compreendendo este diversos serviços entre os quais se inclui a Direcção de Serviços de Fiscalização e Qualidade Alimentar . O Director Geral, coadjuvado pelo Subdirector Geral em quem pode delegar competências, é o órgão dirigente máximo daquela Direcção Geral a quem cabe, entre outras, a competência para aplicar coimas e sanções acessórias (art.5.º), competindo à mencionada Direcção de Serviços, além do mais:
- 'a coordenação e fiscalização das normas relativas à produção, preparação, confecção, acondicionamento, rotulagem, armazenagem, transporte e venda de géneros alimentícios, ingredientes e aditivos alimentares ...' (vd. seu 12.º),
- 'colaborar com as entidades de fiscalização e controlo dos estabelecimentos destinados à produção, preparação, confecção, acondicionamento, armazenagem, transporte e venda de produtos agro-alimentares e da pesca' [art.13.º, al. c)]
- 'Proceder ao levantamento de autos relativos às infracções da área de intervenção da DGFCQA ' [art. 13.º al. j)]. Deste modo, e ainda que no domínio das funções de fiscalização que estavam incumbidas à Direcção de Serviços de Fiscalização da Qualidade Alimentar se incluíssem a de proceder ao controlo dos estabelecimentos destinados à preparação e confecção de produtos agro-alimentares e a de levantar autos relativos a infracções da sua área de intervenção, certo é que não se pode retirar daquele diploma que a competência para praticar tais actos fosse exclusiva e, portanto, desinserida da ordem hierárquica em que se encontrava integrada. O que bem se compreende porquanto, de acordo com a regra geral do nosso direito administrativo (aqui com inteira aplicação), os subalternos não têm competência própria exclusiva daí decorrendo que os actos por eles praticados não são verticalmente definitivos e, por isso, não são susceptíveis de imediata impugnação contenciosa. E se assim é, como é, os actos da Directora de Serviços daquela Direcção Geral, porque eram praticados no uso da sua competência separada, encontravam-se sujeitos a recurso hierárquico, ao chamado recurso hierárquico necessário. Este era condição necessária à abertura da via judicial à impugnação daquelas decisões.
2. A Recorrente argumenta que, no seguimento da Revisão que alterou a redacção do n.º 4 do art. 268.º da CRP, o que releva para se aferir da recorribilidade de um acto administrativo é, já não a sua definitividade mas sim a sua lesividade e que, sendo assim, e sendo o acto impugnado lesivo dos seus direitos e legítimos interesses o mesmo poderia ser objecto de imediata sindicância judicial. Sem razão, porém. Com efeito, tem sido repetidamente dito peta Jurisprudência, quer do Tribunal Constitucional quer deste Supremo Tribunal, que a consagração constitucional do direito à impugnação dos actos administrativos que lesem direitos ou interesses legítimos do administrados 'não impõe a abertura de um recurso contencioso imediato, sendo admissível que se imponha ao administrado o prévio esgotamento das vias administrativas a não ser naqueles casos em que o percurso imposto pela lei para alcançar a reacção contenciosa esteja de tal modo eriçado de escolhos que, na prática, suprima ou restrinja em medida intolerável o direito dos cidadãos ao recurso contencioso que, como se disse, aquele preceito constitucional visa garantir.' - Acórdão do Pleno de 17/12/99 (rec. 45.163). Deste modo, da garantia constitucional de recorribilidade contenciosa dos actos administrativos lesivos não decorre, necessariamente, a impossibilidade de condicionamento (pelo legislador ordinário) do exercício desse direito, nada impedindo que este fique dependente do prévio esgotamento da via administrativa.
E a constitucionalidade deste condicionamento tem a justificá-la valores comunitários constitucionalmente legítimos, como sejam, por ex., a preservação do modelo de hierarquia administrativa e da unidade e responsabilização dos
órgãos políticos da Administração e a eficácia global do sistema de garantias, mediante a criação de mecanismos que dificultem a jurisdiciarização de conflitos susceptíveis de solução extra judicial. Improcede, pois, a argumentação da Recorrente.
3. A Recorrente defende também que o acto impugnado era nulo (a competência para a sua prática era do Presidente da Câmara Municipal e não do organismo que a praticou) e que, por isso, não havia que interpor recurso hierárquico. Todavia, para que se pudesse conhecer dessa alegada nulidade era necessário que o acto impugnado fosse susceptível de imediata sindicância judicial e este, pela razões que atrás se deixaram explicitadas, não o era. Aliás, como é evidente a questão da recorribilidade contenciosa deste acto não se confunde com a sua legalidade em função da competência do seu autor. Nestes termos, e tendo em atenção que a Autoridade Recorrida não tinha competência exclusiva para proferir o acto impugnado e que, por isso, a sua sindicância judicial dependia da interposição de recurso hierárquico e que este não foi interposto bem andou o Sr. Juiz a quo em considerar que o acto impugnado não era recorrível e, nessa conformidade, rejeitou o recurso contencioso.
Consequentemente, foi negado provimento ao recurso.
3. Os recorrentes interpuseram recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição do artigo 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Junto do Tribunal Constitucional os recorrentes apresentaram alegações que concluíram do seguinte modo:
1. A norma contida no artigo 25°, nº 1, com a interpretação que lhe foi dada nos presentes autos deve ser considerada inconstitucional por violação do artigo
268º, nº 4 da Constituição.
2. O acto recorrido é um mandado de encerramento, praticado por um funcionário sem competência hierárquica para o mesmo. Trata-se de um acto não definitivo, mas aparentemente perfeito e consequentemente executório.
3. Assim, apesar da falta de definitividade o acto é passível de imediatamente lesar os direitos e interesses dos cidadãos, o que significa que a falta de definitividade, deveria neste caso suscitar uma resposta mais pronta do sistema judicial e não a impossibilidade do seu accionamento, atendendo a que estamos perante um acto ilegal, não definitivo, mas executório.
4. Assim, tendo em conta o artigo 268°, nº 4 da Constituição e a introdução do critério da lesividade do acto, o artigo 25°, nº 1 da LPTA, deveria dizer 'só são recorríveis os actos definitivos ou executórios', e não os 'actos definitivos e executórios', pois que, como no caso em apreço há actos que podem não ser definitivos, mas porque são executórios, são passíveis de imediatamente lesar os interesses dos cidadãos.
5. Acresce que, como decorre dos autos a imposição à Recorrente da obrigação de recurso hierárquico impõe um ónus inadmissível, já que dos autos consta uma resposta da Direcção Geral em causa em que se afirma a competência da funcionária em causa para a prática do acto. Assim, o desfecho do recurso hierárquico é perfeitamente previsível, pelo que, obrigar a recorrente a intentá-lo, como forma de ter acesso ao recurso contencioso, constitui uma limitação desproporcionada e excessiva do direito de recurso.
6. Compete ainda acrescentar que o acto em causa é da competência da Câmara Municipal onde se situa o estabelecimento e não da referida Direcção Geral. Pelo que, não sendo por força da resposta desta, junta aos autos, previsível que o superior hierárquico anule o acto em causa, obrigar o cidadão à via hierárquica é manifestamente inadmissível.
7. Finalmente, e considerando que se trata se um acto praticado por uma entidade que não tinha competência para tal, estamos pois perante um acto nulo de acordo com o artigo 133°, nº 2, al. b) do Código do Procedimento Administrativo.
8. Interpretar o artigo 25º, nº 1, da LPTA, como limitando o conhecimento pelos Tribunais administrativos de actos nulos, mas não definitivos, apesar do disposto no artigo 134°, nº 2 do CPA, consubstancia uma violação do art° 200, nº
4, da Constituição.
9. Caso se considere que não estamos perante uma norma inconstitucional, requer-se ao abrigo do artigo 134º, nº 2 do CPA que o acto seja considerado nulo. Termos em que se requer a declaração de inconstitucionalidade do artigo 25º, nº
1 da LPTA, por violação dos artigos 268°, nº 4 e 20°, nº 4 da Constituição e caso assim não se considere, ao menos, que se declare a nulidade do acto, sendo este Tribunal competente para tal, de acordo com o artigo 134°, nº 2 do CPA, assim se fazendo Justiça.
Por seu turno a entidade recorrida contra-alegou, concluindo o seguinte:
Não se verificou no caso presente qualquer situação de denegação de justiça, ao invés, a recorrente não fez o uso devido dos meios de impugnação ao seu alcance; O mandado de suspensão da laboração não configura a prática de um acto administrativo, mas sim uma medida de natureza penal, praticada ao abrigo de competências próprias da DGFCQA; Não se encontra correspondência legal o pedido de legalidade do acto formulado pela recorrente. A competência para a tomada de medidas cautelares pertence à Directora de Serviços de Fiscalização, conforme decorre da Lei Orgânica da DGFCQA. Termos em que o recurso interposto pela recorrente deve ser considerado improcedente, assim se fazendo JUSTIÇA.
Cumpre apreciar.
II Fundamentação
4. Nos presentes autos é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do artigo 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada no sentido de não admitir o recurso contencioso de actos não definitivos verticalmente. Os recorrentes pretendem, subsidiariamente, que o Tribunal Constitucional declare a nulidade do acto administrativo que ordenou o encerramento do estabelecimento. Porém, o Tribunal Constitucional apenas procede, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, à apreciação da conformidade à Constituição de normas jurídicas (artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional), não lhe competindo manifestamente proceder à apreciação da validade de actos administrativos. O Tribunal Constitucional já apreciou a conformidade à Constituição da norma que constitui o objecto do presente recurso de constitucionalidade. Com efeito, nos Acórdãos nºs 603/95 e 425/99, publicados no D.R., II Série, de
14 de Março de 1996 e de 3 de Dezembro de 1999, respectivamente, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma apreciada. A fundamentação dos arestos citados é transponível para a solução do problema suscitado nos presentes autos. Deste modo, remete-se para a fundamentação daqueles arestos, concluindo-se pela não inconstitucionalidade da norma apreciada.
III Decisão
6. Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 23 de Março de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos