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Processo n.º 498/2011
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José Cunha Barbosa
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. e marido B., melhor identificados nos autos, recorrem para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação, pretendendo ver sindicada a constitucionalidade da norma do artigo 2088.º, n.º 1, do Código Civil, quando interpretada no sentido de “implicar se atente na contraposição dos, e se dê prevalência aos, interesses do cabeça de casal na conservação de um imóvel da herança face aos interesses de um co-herdeiro interessado na mesma herança e que a ocupa fazendo dele a sua residência permanente e a sua casa de morada de família há longos anos sem dispor de um direito real sobre ele ou de um direito de ocupação do mesmo imóvel com base negocial”.
2. O presente recurso foi interposto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de fevereiro de 2011, integrado pelo Acórdão de 3 de maio de 2011, que não considerou inconstitucional a norma do artigo 2088.º, n.º 1, do Código Civil.
Esse aresto tem o seguinte teor:
“(…)
As questões a decidir, face ao disposto nos art.°s 660°, n.º 2, 684°, n.º 3, e 690°, n.º 4, do mesmo diploma, são, além de outras de conhecimento oficioso mas que na situação presente não se configuram, as suscitadas nas conclusões das alegações dos recorrentes e que tenham sido objeto de decisão no acórdão recorrido, ou seja, no caso dos autos, saber se se mostram verificados todos os requisitos de entrega de bens da herança indivisa ao cabeça de casal, saber se o pedido dessa entrega constitui abuso de direito da parte deste (o autor), e se o art.º 2088°, n.º 1, do Cód. Civil, é inconstitucional.
Ora, todas essas questões se mostram corretamente decididas pelo acórdão recorrido, que analisou pormenorizadamente a matéria de facto provada, dela partindo para adequada aplicação das normas jurídicas a ela respeitantes, devidamente interpretadas, pelo que com ele inteiramente se concorda, quer quanto ao nele decidido, quer quanto aos respetivos fundamentos, a que se adere e para que se remete ao abrigo do disposto nos art.°s 726° e 713°, n.º 5, na redação aplicável.
Com efeito, comprovada a qualidade de cabeça de casal do autor, cabe-lhe a administração dos bens da herança, face ao disposto no art.º 2079° do Cód. Civil, até à sua liquidação e partilha, excluídos daquela os bens doados em vida pelo autor da sucessão (n.º 2 do art.º 2087° do mesmo diploma) e, por analogia ou pelo menos por interpretação extensiva, os bens legados que à data da abertura da sucessão já se encontrassem em poder dos respetivos legatários.
Por outro lado, nos termos do art.º 2088°, n.º 1, do Cód. Civil, “o cabeça de casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.”
E encontra-se efetivamente assente que, sendo o autor o cabeça de casal, da herança faz parte a dita “Casa de ...” (factos assentes nºs 3º e 10º), que se encontra em poder dos réus (factos assentes nºs 11° e 12°) apesar de a respetiva administração caber àquele.
Assim, tendo ainda em conta que a mencionada “Casa de ...” necessita com urgência de obras de reparação e conservação (facto assente n.º 16º), que os réus nunca fizeram apesar de deterem de facto com exclusividade a mesma Casa, - a não ser pequenas reparações localizadas em tetos de três divisões - (factos assentes nºs 12º e 15º), e pelas quais só ao autor cabe providenciar, e que os réus vêm impedindo ao autor (factos assentes nºs 13º e 14º) o exercício da sua atividade gestora mediante a execução das benfeitorias necessárias para o efeito, ou seja, para evitar a perda, destruição ou deterioração desse bem (art.º 216º do C.C.), que são as que o cabeça de casal, como administrador, pode levar a cabo, por meio de trabalhos de construção civil que não podem ser efetuados com os réus a ocuparem a Casa (facto assente n.º 17º), manifesto é que, para o exercício da administração pelo autor através da concretização dessas obras, se torna necessária a desocupação da Casa pelos réus, justificando-se a exigência, por ele, dessa desocupação, outra solução não restando que a consagração da obrigação de entrega da mesma pelos réus ao autor para fins dessa administração.
Para obviarem a tal obrigação teriam os réus de demonstrar a verificação de alguma circunstância de exceção, como seria o abuso de direito se se verificasse a situação de facto prevista no art.º 334º do Cód. Civil e cujo ónus da prova lhes cabia face ao disposto no n.º 2 do art.º 342ºdo mesmo diploma. Mas não satisfizeram tal ónus, visto não terem demonstrado, como lhes competia, ter o autor um objetivo diferente do de, no exercício dos seus poderes de administração, providenciar pela reparação e conservação da Casa de ….
Acresce que não se deteta qualquer inconstitucionalidade do disposto no art.º 2088°, n.º 1, do Cód. Civil, visto que a interpretação dele feita pelo acórdão recorrido, ao implicar se atente na contraposição de interesses legítimos de terceiros na conservação de um imóvel face aos interesses de quem o ocupa para habitação sem dispor de um direito real sobre ele ou de um direito de ocupação do mesmo com base negocial, como se verifica no caso de haver necessidade de obras para conservação de bens ocupados da herança, não o torna numa disposição que possibilite que arbitrariamente, sem justificação bastante, se atente contra o direito à habitação protegido pela Constituição da República Portuguesa no seu art.º 65º, n.º 1.
Não pode, em consequência, reconhecer-se razão aos recorrentes.
Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido”.
3. Na sequência foi interposto, nos termos referidos, o presente recurso de constitucionalidade e, notificados para o efeito, alegaram os recorrentes, formulando as seguintes conclusões:
“(…)
1ª - Os poderes de administração conferidos pelo n.º 1 do art.º 2088º ao cabeça de casal são poderes instrumentais ou funcionais que se justificam se e apenas quando e enquanto a entrega dos bens seja indispensável ao exercício desses poderes de administração.
2ª - Atenta a matéria de facto provada nos presentes autos, o autor não fez a prova séria, real e consistente de que queria efetivamente exercer a administração e de que a herança gerava os rendimentos bastantes para cobrir o seu custo, nem sequer que estivesse a sofrer prejuízos por via da ocupação de parte da casa principal pelos recorrentes.
3ª - Provou-se nos autos que os recorrentes têm instalada na casa principal de … a sua residência permanente de forma ininterrupta desde agosto de 1991 e que anteriormente fizeram dessa casa a sua habitação própria e permanente desde 1978 até pelo menos ao final de 1981.
4ª - Mais se provou que a recorrente mulher vive na aludida casa principal desde os quatro anos de idade e que nela foi criada e educada pelo casal formado pelo Eng. C. e D. D., como se sua filha fosse, sendo que esse casal manteve nessa casa a sua residência permanente e ininterruptamente desde 1952 até 13/05/1985, data da morte do Eng. C., sendo que a D. D. continuou a residir nessa casa até à sua morte, ocorrida em 17/08/1991, sucedendo-lhe como sua única e universal herdeira a recorrente mulher.
5ª - Uma vez que se provou terem os recorrentes instalada na casa principal a sua residência permanente e habitual há dezenas de anos e apresentando-se o direito à habitação como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantia, consistindo ele, antes de mais, no direito de não ser privado arbitrariamente da habitação e sendo-lhe aplicável o regime próprio desses direitos, liberdades e garantias, incluindo a sua eficácia imediata, a que também estão vinculadas as entidades privadas, forçoso é concluir que o douto acórdão recorrido fez do n.º 1 do art.º 2088° uma interpretação e aplicação ao caso dos autos que viola o disposto nos art.ºs 65°, n.º 1. e art.º 67°, n.º 1, ambos da CRP.
6ª - Por outro lado, a recorrente, como co-herdeira da herança aqui em causa, tem em relação ao imóvel cuja entrega pretende o cabeça de casal um direito ao uso do mesmo que tem fonte legal nas regras da compropriedade que são aplicáveis a todas as situações de indivisão, designadamente à herança indivisa, por se tratar de um património indiviso.
7ª - No conflito de interesses em presença nestes autos, deve atribuir-se prevalência ao direito à habitação dos recorrentes sobre o direito conferido ao cabeça de casal pelo n.º 1 do art.º 2088°, por o direito à habitação se caracterizar como um direito de defesa e fundamental, análogo aos direitos liberdades e garantias, e justificar medidas de proteção contra a privação arbitrária da habitação e a imposição de restrições àquele direito do cabeça de casal.
8ª - As restrições ao direito conferido pelo n.º 1 do art.º 2088° respeitam integralmente os princípios da equidade e da proporcionalidade e são legítimas, adequadas e de justa medida.
9ª - Deve, por isso, ser declarada a inconstitucionalidade do n.º 1 do art.º 2088° quando interpretado e aplicado, como o foi pelo douto acórdão recorrido, com o sentido de que aquela norma prevalece sobre o n.º 1 do art.º 65° da CRP, mesmo quando o cabeça de casal não prove a vontade séria, real e efetiva de administrar os bens cuja entrega requereu, que a herança gera rendimentos para custear a administração ou a feitura de obras de conservação ou que a herança esteja a sofrer prejuízos derivados da ocupação de parte da casa principal pelos recorrentes”.
4. O recorrido E. contra-alegou, sustentando, a final, a procedência das seguintes conclusões:
“A. Os poderes de administração conferidos pelo n.º 1 do art.º 2088 do C. Civil ao cabeça de casal, têm justificação plena no presente caso, uma vez que a entrega do imóvel é absolutamente indispensável ao exercício desses poderes de administração.
B. A matéria de facto dada como provada nos presentes autos é muito mais do que a necessária e suficiente para lançar mão da norma do n.º 1 do art.º 2088 do C. Civil e ordenar a entrega do bem em causa ao cabeça de casal para uma efetiva administração.
C. De resto, o imóvel peticionado não reúne condições mínimas de habitabilidade, oferecendo até perigo para os seus ocupantes!
D. Não sendo de certeza este concreto direito à habitação, que a Constituição Portuguesa visa proteger e salvaguardar.
E. Não passando a ocupação ilegítima do imóvel por parte dos aqui recorrentes de “um embuste e de um maquiavélico pretexto” para em sede de partilha lhes ser atribuído aquilo que ocupam e se recusam ilegalmente a entregar.
F. Na verdade, “O direito à habitação, como um direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cf. J. C. Vieira de Andrade, ob. Cit., pp. 205 e 209) ou, antes, como um autêntico direito subjetivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional cit., p 680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efetiva, já que não é diretamente aplicável, nem exequível por si mesmo”. (V Ac. 346/93).
G. Em regra, nas situações mais complexas e mais frequentes, havendo fundamentos razoáveis, como no caso presente, o Tribunal Constitucional confere total primazia ao legislador ordinário, admitindo a constitucionalidade da generalidade das soluções gizadas pela lei (V. Ac. N.° 402/01).
H. A Jurisprudência admite assim com grande latitude a constitucionalidade das limitações ao direito à habitação previstas na legislação ordinária.
I. Em conformidade, o douto acórdão recorrido fez do n.º 1 do art.º 2088, uma correta e esclarecida aplicação daquela norma ao caso dos autos.
J. Não violando qualquer norma constitucional, designadamente os art.°s 65 n.º 1 e 67 n.º 1, ambos da CRP.
K. Não tendo os recorrentes qualquer direito ao uso e ocupação do imóvel com base negocial ou de fonte legal, baseada tão pouco no regime da compropriedade.
L. Não devendo por isso ser declarada a inconstitucionalidade do n.º 1 do art.º 2088 do C. Civil, quando interpretado e aplicado, como o foi pelo douto acórdão recorrido, uma vez que tal interpretação e aplicação em nada fere o direito a habitação consagrado no art.º n.º a C.R.P.”.
(…)”.
5. Já no âmbito da fase de discussão oral do projeto apresentado, veio a proferir-se o Acórdão n.º 438/2012, do seguinte teor:
«…
Tendo sido admitida, na discussão oral do projeto apresentado, a possibilidade de não conhecimento do recurso com fundamento na falta de coincidência entre a questão suscitada no requerimento de interposição de recurso e a ‘ratio decidendi’ da decisão recorrida, acordam em notificar as partes para se pronunciarem sobre esta matéria, no prazo de 10 (dez) dias.
…».
6. Notificados que foram do teor de tal acórdão, recorrentes e recorrido vieram pronunciar-se nos termos constantes, respetivamente, de fls. 1004 a 1007 e de fls. 1008 a 1011, donde se depreende que aqueles pugnam pela existência de coincidência entre a suscitada questão de constitucionalidade, no seu requerimento de interposição de recurso, e a ‘ratio decidendi’ da decisão recorrida, enquanto estes, por sua vez, a negam, pretendendo, consequentemente, que inexiste.
Cumpre agora julgar.
II. Fundamentação
7. O presente recurso mostra-se interposto, como se deixou afirmado supra, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação, pretendendo o recorrente ver sindicada a constitucionalidade da norma do artigo 2088.º, n.º 1, do Código Civil, quando interpretada no sentido de “implicar se atente na contraposição dos, e se dê prevalência aos, interesses do cabeça de casal na conservação de um imóvel da herança face aos interesses de um co-herdeiro interessado na mesma herança e que a ocupa fazendo dele a sua residência permanente e a sua casa de morada de família há longos anos sem dispor de um direito real sobre ele ou de um direito de ocupação do mesmo imóvel com base negocial”, como flui do seu requerimento de interposição de recurso, sendo, portanto, esse o seu objeto.
Efetivamente, como se escreveu no Acórdão n.º 379/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “o requerimento de interposição do recurso limita o seu objeto às normas nele indicadas (cfr. o artigo 684º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o artigo 75º-A, n.º 1, desta lei), sem prejuízo, obviamente, de esse objeto, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões da alegação (cfr. o citado artigo 684º, n.º 3). O que, na alegação (recte, nas suas conclusões), o recorrente não pode fazer é ampliar o objeto do recurso antes definido', alterando a norma cuja inconstitucionalidade se controvertera.
No entanto, perscrutando o teor das alegações e respetivas conclusões apresentadas perante este Tribunal, verifica-se que os recorrentes pretendem que seja “declarada a inconstitucionalidade do n.º 1 do art.º 2088° quando interpretado e aplicado, como o foi pelo douto acórdão recorrido, com o sentido de que aquela norma prevalece sobre o n.º 1 do art.º 65° da CRP, mesmo quando o cabeça de casal não prove a vontade séria, real e efetiva de administrar os bens cuja entrega requereu, que a herança gera rendimentos para custear a administração ou a feitura de obras de conservação ou que a herança esteja a sofrer prejuízos derivados da ocupação de parte da casa principal pelos recorrentes (sublinhado aditado)”, não existindo, pois, uma absoluta simetria ou identidade normativa entre o objeto vazado no requerimento de interposição de recurso e o delimitado pelas suas conclusões, nas quais aquele surge ampliado pela introdução de um segmento normativo novo, aditado após a interposição do recurso de constitucionalidade e a sua admissão.
Daí que, no presente caso, possa afirmar-se que a questão a decidir esteja limitada à fiscalização da constitucionalidade do artigo 2088.º, n.º 1 do Código Civil, na dimensão normativa definida no requerimento de interposição de recurso, a qual, como pode inferir-se da conclusão 5.ª, não foi abandonada pelos recorrentes.
Tendo o presente recurso sido interposto, como se disse, ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º da LTC, importa averiguar se, no caso sub juditio, ocorrem os requisitos que condicionam a sua interposição, ao que não obsta o facto de se haver ordenado a apresentação de alegações pelas partes, porquanto o Tribunal, mesmo agora, não está impedido de, a reconhecer a sua falta ou de algum deles, declarar a impossibilidade legal de conhecer do objeto do recurso assim interposto.
Ora, entre os requisitos que a jurisprudência constitucional, de modo uniforme e reiterado, vem entendendo que devem verificar-se cumulativamente, no caso do recurso ao abrigo da alínea b), encontra-se a efetiva aplicação, expressa ou implícita, da ‘norma’ ou ‘interpretação normativa’ sindicanda e por forma a que a mesma tenha constituído a ‘ratio decidendi’ ou o fundamento jurídico no caso concreto. Na realidade, como afirma Carlos Lopes do Rego (cfr. Os Recuros de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, pág. 109), « … [a] admissibilidade do recurso previsto nesta alínea b) está condicionado – desde logo como decorrência da instrumentalidade da fiscalização concreta – à efetiva aplicação à dirimição do caso, pelo tribunal ‘a quo’, da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade fora suscitada pelo recorrente. …» e, continua, « … [s]egundo jurisprudência uniforme e reiterada do Tribunal Constitucional, só ocorre efetiva aplicação de uma norma quando ela constitui “ratio decidendi” da decisão proferida, isto é, fundamento jurídico determinante da solução dada ao pleito pelo tribunal “a quo”. Não há, deste modo, efetiva aplicação da norma quando a decisão proferida assentou num outro e autónomo fundamento de direito, diverso do invocado pelas partes como base das pretensões deduzidas, dirimindo o tribunal “a quo” o litígio em função de um diferente e inovatório enquadramento jurídico, decorrente da utilização dos seus poderes de interpretação e determinação do direito infraconstitucional aplicável, não condicionados pela qualificação feita pelas partes; … ».
Em suma, pode afirmar-se que o recorrente, no Tribunal Constitucional, deve requerer a reapreciação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, tempestiva e adequadamente suscitada perante o tribunal ‘a quo’, referente a normas jurídicas ou interpretações normativas de que este haja feito efetiva aplicação, entenda-se, que hajam constituído efetivo fundamento jurídico da resolução da questão principal; reportando-se a arguição a uma determinada dimensão ou interpretação normativa, as conclusões que haja de retirar quanto à efetiva aplicação da norma estão dependentes, bem entendido, da existência de identidade substancial entre a interpretação normativa cuja constitucionalidade o recorrente contestou e suscitou, por um lado, e a interpretação normativa adotada pelo tribunal recorrido e condicionante da decisão por este exarada no processo-base.
Tal identidade substancial, entre a interpretação normativa apodada de inconstitucional pelo recorrente e a que foi adotada pelo tribunal recorrido e justificadora da decisão proferida, não ocorre no presente caso.
Na realidade, na decisão recorrida, resumindo-se a interpretação adotada, deixa-se expresso que «… não se deteta qualquer inconstitucionalidade do disposto no art.º 2088°, n.º 1, do Cód. Civil, visto que a interpretação dele feita pelo acórdão recorrido, ao implicar se atente na contraposição de interesses legítimos de terceiros na conservação de um imóvel face aos interesses de quem o ocupa para habitação sem dispor de um direito real sobre ele ou de um direito de ocupação do mesmo com base negocial, como se verifica no caso de haver necessidade de obras para conservação de bens ocupados da herança, não o torna numa disposição que possibilite que arbitrariamente, sem justificação bastante, se atente contra o direito à habitação protegido pela Constituição da República Portuguesa no seu art.º 65º, n.º 1. …» (sublinhado nosso), quando é certo que o recorrente, como deixa vertido no seu requerimento recursivo, pretende ver sindicada a constitucionalidade da norma contida naquele preceito, mas quando interpretada no sentido de “implicar se atente na contraposição dos, e se dê prevalência aos, interesses do cabeça de casal na conservação de um imóvel da herança face aos interesses de um co-herdeiro interessado na mesma herança e que a ocupa fazendo dele a sua residência permanente e a sua casa de morada de família há longos anos sem dispor de um direito real sobre ele ou de um direito de ocupação do mesmo imóvel com base negocial”, interpretação esta, portanto, com um alcance e extensão bem diversa da que foi considerada na decisão recorrida, não a considerando em toda a dimensão, a qual permitiu inclusive que esta, na aplicação que fez do direito infraconstitucional viesse a considerar, inclusive, que inexistisse qualquer abuso de direito por parte do recorrido ao pedir a entrega do imóvel em causa.
Daí que, face à inexistência de tal identidade substancial, se haja de concluir que a interpretação normativa, cuja constitucionalidade o recorrente contestou e suscitou, não constitui objeto idóneo do recurso de (in)constitucionalidade interposto, já que não integra a ratio decidendi da decisão recorrida, ficando, por isso, este Tribunal impedido de dele conhecer.
III. Decisão
Nos termos supra expostos, decide-se não conhecer do objeto do presente recurso.
Custas pelos recorrentes, com taxa de justiça que se fixa em 10 (dez) Ucs.
Lisboa, 6 de novembro de 2012. – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro.