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Proc. nº 356/00 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – MD, com os sinais dos autos, interpôs recurso para este Tribunal do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de fls. 180 e segs., ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das normas do artigo 94º do DL nº 231/93, de 26 de Junho e do artigo 75º do DL nº 265/93, de 31 de Julho que, segundo ele, violariam os artigos 13º, 18º nºs 1, 2 e 3, 168º nºs 1 alíneas b), d) e v), 3 e 4 e 277º nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Admitido o recurso, o recorrente produziu alegações, concluindo nos seguintes termos:
'1 – O douto despacho recorrido fundamentou a dispensa de serviço do recorrente nas normas do nº 4 do artº 94º do DL 231/93 de 26/6 e do nº 3 do artº
75º do DL 265/93 de 31/7.
2 – Tais diplomas estão feridos de inconstitucionalidade orgânica, em virtude de o Governo ter legislado com competência legislativa originária e não ter sido autorizado a fazê-lo pela Assembleia da República, em matéria da sua reserva relativa de competência legislativa (alíneas b), d) e v) do nº 1 do artº
168º da CRP).
3 – O recorrente é um agente militarizado integrado na força de segurança GNR.
4 – Só com a recentíssima publicação da notável Lei 145/99 de 1 de Setembro passou o recorrente a estar sujeito a um regulamento disciplinar constante de diploma próprio, tal como já anteriormente acontecia para os militares, para os funcionários públicos e para os agentes militarizados da força de segurança PSP.
5 – A medida sancionatória que resultar de um processo disciplinar ou do processo próprio de dispensa de serviço é, pela sua própria natureza, sempre uma sanção de natureza estatutária, e porque em ambos os casos é afectada a carreira profissional e a situação funcional do militar, modificando-a em prejuízo do agente.
6 – O processo próprio de dispensa de serviço, por visar a aplicação de uma sanção estatutária, tem a natureza de um processo sancionatório tal como o processo disciplinar, por visar a aplicação de uma pena, tem a natureza de um processo sancionatório.
7 – O facto de a sanção de dispensa de serviço prevista no nº 2 do artº 94º do DL 231/93 de 26 de Junho (LOGNR) ter a natureza de sanção estatutária não lhe retira o carácter de pena disciplinar e isto porque a sanção estatutária denominada 'dispensa de serviço' constitui, tal como a pena disciplinar expulsiva, uma sanção estatutária expulsiva, não constituindo, enquanto tal, um género próprio, autónomo e distinto da pena disciplinar.
8 – Os referidos DL 231/93 (LOGNR) e 265/93 (EMGNR) são alegadamente resultado do exercício da função legislativa do Governo nos termos da alínea a) do nº 1 do artº 201º da CRP ('fazer decretos-lei em matéria não reservada à Assembleia da República') como deles expressamente consta.
9 – E de ambos estes diplomas consta inegavelmente abundante matéria respeitante a direitos e garantias, ao regime estatutário geral e ao regime disciplinar dos agentes militarizados da GNR (vg., alíneas a), b) e c) do nº. 7 e nº. 8 do art. 39º, e arts. 92º, 93º e 94º, todos da LOGNR – e arts. 2º, 5º,
6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 14º, 15º, 19º, 22º e 75º do EMGNR.
10 – Tais normativos (direitos, liberdades e garantias, regime disciplinar e regime da função pública) constituem matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República, como tal consignadas nas alíneas b), d) e v) do nº. 1 do art. 168º da CRP.
11 – A reserva de competência legislativa da Assembleia da República nesta matéria vale não apenas para as restrições mas também para toda a intervenção legislativa no âmbito dos direitos, liberdades e garantias (vd. arts. Do Título II da parte I, nº. 8 (actual 10 do art. 32º), 17º, 18º, 20º,
21º, 22º e 23º da CRP, e – Vital Moreira – CRP anotada, 3ª Edição – pág. 672).
12 – Igualmente, implicando a sanção de 'dispensa de serviço' o termo da manutenção funcional, o 'despedimento' do Recorrente, atinge irremediavelmente o seu direito à segurança no emprego consagrado no art. 53º da CRP.
13 – Por outro lado, o respeitante às alíneas d) e v) do art. 168º da CRP cabe à Assembleia da República definir a natureza do ilícito e os tipos de sanções e as regras gerais do processo disciplinar relativos a todos os ordenamentos sectoriais públicos ou de carácter público, em cujo âmbito, no mínimo, se inclui a força de segurança GNR (cf. nº. 4 do art. 272º - Título IX – Administração Pública, da CRP).
14 – Assim, o acto impugnado, ao ter fundamentado a 'dispensa de serviço' aplicada ao Recorrente nos arts. 75º do EMGNR e 94º - 1, 2 e 4 da LOGNR, fundamentou-se em normas formal e organicamente inconstitucionais, por as mesmas respeitarem a direitos e garantias fundamentais, ao regime geral de punição de infracções disciplinares e bases do regime e âmbito da função pública, matérias de reserva relativa da Assembleia da República – alíneas b), d) e v) do art. 168º da CRP (3ª Revisão) – o que inquina o acto recorrido de vício de violação de lei.
15 – O Governo legislador do EMGNR e da LOGNR quis prever um processo sancionatório e uma medida sancionatória com CARACTERÍSTICAS INOVADORAS, fazendo-o de uma forma subreptícia e ilegal ao redefinir a natureza do ilícito, definir o tipo de sanção e as regras gerais de outro tipo de processo – o processo próprio de dispensa de serviço.
16 – Mesmo que erroneamente se entendesse que de mera repetição e transcrição se tratara, sempre importaria saber se os diplomas, onde tal matéria tinha sido já anteriormente regulada e que em 1993 teriam sido 'copiados', tinham sido proferidos pelas entidades com competência legislativa para os proferir, pois, o vício no caso inverso de incompetência originária contaminaria os diplomas que posteriormente os tenham vindo a acolher.
17 – O Governo não só inovou legislativamente em relação às normas constantes dos DL 333/83, 465/83 e 142/77, como também estes primeiros dois diplomas ora referidos foram decretados sem a indispensável autorização da Assembleia da República nos termos da CRP então vigente (1982).
18 – Hoje em dia, no fundamental, não existe nenhuma diferença significativa, nem quanto à sua missão nem quanto à sua tutela, entre a força de segurança GNR e a força de segurança PSP (estas sim, distintas na missão – vd. art. 275º da CRP – e na tutela, das Forças Armadas).
19 – E o que também se constata, é que tanto para o comum trabalhador privado, como para o funcionário público em geral, como ainda também para o agente militarizado membro da força de segurança PSP, a ruptura do vínculo de emprego, fundada em justa causa, sempre se decide após a verificação e comprovação desta ser invariável e imperativamente apurada em sede de processo disciplinar integralmente assegurador das garantias de defesa do arguido.
20 – No entender do Recorrente, não existe uma só razão distinta ou argumento plausível que justifique e legitime poder ter sido, como foi, decidida a ruptura do vínculo de emprego através da originalíssima dispensa de serviço, processo inexistente, ao invés do processo disciplinar, nos restantes casos supra indicados.
21 – A indevida sujeição dos membros da GNR à medida estatutária de dispensa de serviço constitui notória violação daquele requisito e dos princípios constitucionais da proibição do excesso e da salvaguarda do núcleo essencial do direito fundamental (vd, por todos J.J. Gomes Canotilho – Direito Constitucional, 4ª edição, págs. 482 a 493), ínsitos nos nºs. 2 e 3 do art. 18º da CRP, consubstanciando inequivocamente a violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade arguida pelo Recorrente.
22 – Em boa verdade, além de deverem ter fundamento na Constituição, cumpre sempre apurar se a especificidade estatutária concreta exige aquela concreta restrição ao direito fundamental afectado (vd. J.J. Gomes Canotilho, ob. cit. págs. 501 a 503). No caso dos autos claramente se constata o desrespeito pelos princípios da exigibilidade e da salvaguarda do núcleo essencial, em virtude de, por maior que seja o persistente esforço, não se conseguir vislumbrar o que possa justificadamente exigir a existência de dispensa de serviço na GNR e a sua não existência na PSP.
23 – O Recorrente discorda fundamentadamente do modo processualmente
ínvio como foi punido, e do tipo e da medida da sanção com que foi punido.
24 – Ao invés do considerado no douto Acórdão recorrido o princípio da igualdade foi ofendido, não porque não tenha sido aplicada a mesma medida a todos os membros da GNR envolvidos na prática de factos idênticos aos do Recorrente, mas precisamente porque o processo de dispensa de serviço em todos os casos seguidos e a medida de dispensa de serviço a todos aplicada resulta manifestamente excepcional e a sanção desigual e desproporcionada em relação comparada às aplicadas, (penas de inactividade, suspensão e até prisão disciplinar) em abundantes e variados outros casos, públicos e notórios, a membros das forças de segurança GNR e PSP que cometeram ilícitos de muito maior gravidade (basta relembrar os casos do cabo C (VINHAIS) e sargento S (SACAVÉM), pronunciados e até já condenados por homicídio.
25 – O douto acórdão não reconhecendo a inconstitucionalidade das normas referidas tal como concretamente emergiram e foram aplicadas pelo despacho ministerial recorrido e negando provimento ao recurso contencioso, violou e fez errónea aplicação dos arts. 13º, 18º, nºs. 1, 2 e 3, 168º, nº. 1 alíneas b), d) e v) e 277º nº. 1 da CRP na versão anterior à última revisão.'
Em contra-alegações a entidade recorrida sustentou o improvimento do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - Resulta dos autos o seguinte:
a) O recorrente, Sargento da GNR, foi alvo de um processo de
'dispensa de serviço' que culminou com o despacho do Ministro da Administração Interna de 19/6/97 que o dispensou do serviço da GNR, determinando a sua passagem à situação de dispensado de serviço nos termos do nº 1 alíneas a) e b) do artigo 75º do EMGNR93 e nºs 2 e 4 do artigo 94º da LOGNR93
b) O recorrente impugnou este despacho em recurso contencioso a que foi negado provimento por acórdão do Tribunal Central Administrativo (fls. 89 e segs).
c) O acórdão do TCA foi confirmado pelo acórdão do STA de fls. 180 e segs ora impugnado.
d) – Em ambas as instâncias da jurisdição administrativa, o recorrente arguiu, sempre sem êxito, a inconstitucionalidade das mesmas normas que agora pretende ver apreciadas por este Tribunal.
3 - As normas cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada são as que constam dos artigos 94º do DL nº 231/93 (LOGNR93) e 75º do DL nº 265/93 (EMGNR93).
Prescreve o primeiro sob a epígrafe 'Dispensa de serviço':
'1 – A dispensa do serviço dos militares dos quadros permanentes ocorre a pedido dos próprios ou por iniciativa do comandante-geral.
2 – A dispensa do serviço, quando da iniciativa do comandante-geral, pode ter lugar sempre que o comportamento do militar indicie notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função, implicando tal medida a instauração de processo próprio com observância de todas as garantias de defesa e com a pensão de reforma que lhe couber.
3 – A dispensa do serviço a pedido do militar é da competência do comandante-geral.
4 – A adopção da medida prevista no nº 2 deste artigo é da iniciativa do comandante-geral, ouvido o Conselho Superior da Guarda, competindo a decisão final ao Ministro da Administração Interna.
5 – Da decisão do Ministro da Administração Interna cabe recurso, nos termos da lei.'
Estabelece o segundo, sob a epígrafe 'Dispensa por iniciativa do comandante':
'1 – Não pode continuar no activo nem na efectividade de serviço o militar ds quadros da Guarda cujo comportamento se revele incompatível com a condição de 'soldado da lei' ou que se comprove não possuir qualquer das seguintes condições:
a) Bom comportamento militar e cívico;
b) Espírito militar;
c) Aptidão técnico-profissional.
2 – O apuramento dos factos que levam à invocação da falta de condições referidas no número anterior é feito através de processo próprio de dispensa de serviço ou disciplinar.
3 – A decisão de impor ao militar a saída do activo e da efectividade de serviço é da competência do Ministro da Administração Interna, sob proposta do comandante-geral, ouvido o Conselho Superior da Guarda.
4 – A dispensa do serviço origina o abate nos quadros e a perda dos direitos de militar da Guarda, sem prejuízo da concessão da pensão de reforma nos termos da lei.'
Sustenta o recorrente que os diplomas em que se inserem as normas transcritas enfermam de inconstitucionalidade orgânica por dimanarem do Governo sem autorização legislativa da Assembleia da República; a competência deste
órgão de soberania, no caso, resultaria do disposto nas alíneas b), d) e v) do artigo 168º da CRP, na versão então vigente.
Para o recorrente, pois, o diploma versaria sobre matéria de
- direitos, liberdades e garantias, entendendo-se como tal os direitos de audiência e defesa no processo de dispensa do serviço e o direito à segurança no emprego;
- regime geral de punição das infracções disciplinares, por nele se incluir todos os ordenamentos sectoriais públicos, incluindo a 'força de segurança' GNR;
· bases do regime e âmbito da função pública.
Por outro lado, e pondo em causa o fundamento do acórdão recorrido no sentido de que aqueles diplomas não inovam na matéria em causa, defende o recorrente que não só existe inovação relativamente aos DL nºs 333/83, de 14 de Julho e 465/83 de 31 de Dezembro, com a redefinição da natureza do ilícito e a definição do tipo de sanção e as regras gerais de outro tipo de processo – o processo próprio de dispensa de serviço (sendo certo que o Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo DL nº 142/77 apenas prevê a pena disciplinar de 'separação de serviço', através do único e competente processo disciplinar) como também aqueles mesmos diplomas igualmente enfermavam de inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 168º alíneas b), d) e u) da CRP (versão de 82).
Vejamos, em primeiro lugar, se procede a arguição de inconstitucionalidade orgânica.
4 - A primeira e decisiva questão que se suscita é a de saber se as normas em causa traduzem qualquer substancial inovação relativamente ao que se previa sobre a matéria. Na verdade, se tal se não verificar e ao regime anterior se não puder imputar idêntico vício, a improcedência da arguição impõe-se desde logo, prejudicando a ponderação das várias vertentes em que o recorrente analisa a referida inconstitucionalidade.
A ausência de inovação em legislação aprovada por órgão sem competência para o efeito no quadro da repartição de competências entre órgãos de soberania constitucionalmente definido torna irrelevante o vício de inconstitucionalidade orgânica, sempre que o regime substancialmente mantido não enferme da mesma violação da Lei Fundamental – esta uma jurisprudência firme do Tribunal Constitucional como se pode ver, entre outros, no Acórdão nº 174/93 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 24º vol. pp. 57 e segs.
No caso, deve-se recuar no tempo até à publicação do DL nº 142/77, de 9 de Abril que aprova o Regulamento de Disciplina Militar (RDM), diploma que dimana do Conselho da Revolução, órgão que, nos termos do artigo 148º nº 1 alínea a) da CRP, na versão originária, tinha competência para o efeito.
O RDM previa, então, no artigo 34º nº 1, a pena disciplinar de separação de serviço que consistia, nos termos do artigo 32º 'no afastamento definitivo de um militar do exercício das suas funções (...) com a pensão de reforma que lhe couber'. Por força do artigo 34º nº 2 a pena só poderia ser aplicada 'em processo disciplinar após aprovação dos conselhos superiores de disciplina respectivos', ou quando resultasse da apreciação da capacidade profissional e moral dos elementos das forças armadas que não revelem as qualidades essenciais para o exercício das suas funções militares, nos termos do artigo 134º'. Por seu turno, o artigo 70º nº 2 prescrevia que a pena correspondia 'aos factos e comportamentos objectivamente mais graves e lesivos da disciplina, cuja prática ou persistência revele impossibilidade de adaptação do militar, bem como aos casos de incapacidade profissional ou moral, ou de práticas e condutas incompatíveis com o desempenho da função ou decoro militar, mediante parecer do conselho superior de disciplina'. Finalmente, o artigo 134º atribuía aos conselhos superiores de disciplina competência para dar parecer 'sobre a conduta de militares quando, através de processo disciplinar, se verifique poder haver lugar à aplicação das penas de (...) separação de serviço' (alínea b)), 'sobre a capacidade profissional de oficiais ou sargentos que revelem falta de energia, decisão ou outras qualidades essenciais para o exercício das suas funções militares' (alínea c)) e 'sobre a capacidade moral de oficiais ou sargentos que afectem a sua respeitabilidade, o decoro militar os ditames da virtude e da honra' (alínea d)); o artigo 143º, depois de no nº 1 dispor sobre o conteúdo da deliberação do conselho no que respeita à conclusão de sujeição do arguido à medida disciplinar que no seu prudente arbítrio entender, estabelecia no nº 2 que o conselho 'poderá igualmente pronunciar-se (...) pela separação de serviço, conforme se revele incompatível a sua permanência na efectividade de serviço ou nas fileiras'.
Com fundamento em dúvidas surgidas acerca das 'atribuições' dos conselhos superiores de disciplina conferidas pelo RDM e para afirmar a 'interpretação autêntica' dos respectivos preceitos, o Conselho da Revolução edita o DL nº
203/78, de 24 de Julho onde se distinguem duas partes no artigo 34º nº 2 do RDM, sendo que, na segunda, a 'apreciação da capacidade profissional ou moral de militares (...) é independente de quaisquer processos militares ou criminais respeitantes à actuação dos mesmos militares, e não é prejudicada pela extinção do procedimento disciplinar ou criminal, excepto no caso de morte' (artigo 2º nº
1).
Em 11 de Dezembro de 1982 é publicada a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei nº 29/82), aprovada pela Assembleia da República, diploma que, no seu artigo 69º nº 1, manda aplicar 'aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo na Guarda Nacional Republicana' o disposto nos artigos 31º, 32º e 33º; o artigo 32º estabelece que
'as exigências específicas do ordenamento aplicável às Forças Armadas em matéria
(...) de disciplina serão reguladas (...) no Regulamento de Disciplina Militar'.
Surgem, depois, respectivamente em 14 de Julho e 31 de Dezembro de 1993 os DL nºs 333/83 e 485/83, aprovando o primeiro a Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (LOGNR83) e o segundo o Estatuto do Militar da Guarda Nacional Republicana (EMGNR83), emanando ambos do Governo, nos termos do artigo 201º nº 1 alínea a) da CRP.
Na parte que interessa, o artigo 63º da LOGNR83 manda aplicar aos militares da GNR o RDM; estabelece, depois, o artigo 70º nº 1:
'O militar do quadro permanente da Guarda Nacional Republicana no activo ou na efectividade de serviço que não convenha ao serviço ou ainda por razões de ordem moral, física, militar e técnico-profissional poderá ser dispensado do serviço ou passar às situações de reserva, reforma ou separado de serviço, após apuramento processual dos factos'.
No EMGNR83, que mantém a sujeição do militar da Guarda ao RDM (artigo 4º nº
1),dispõe o artigo 37º nºs 1, 2 e 3 sobre a mesma matéria:
'1 – Não pode continuar no activo, nem na efectividade de serviço, o militar que não convenha ao serviço da Guarda ou que se comprove não possuir qualquer das seguintes condições: a) Boas qualidades morais; b) Bom comportamento militar e civil; c) Espírito militar; d) Aptidão técnico-profissional; e) Aptidão física e psíquica adequada.
2 – O apuramento dos factos que levam à invocação de o militar não convir ao serviço é feito através de processo adequado.
3 – O apuramento dos factos que levam à invocação da falta de condições referidas nas alíneas a), b) e c) do nº 1 é feito através de processo próprio ou disciplinar.'
.............................................................................................................................'
Finalmente, em 26 de Junho e 31 de Julho de 1993, são publicados, respectivamente, os DL nºs 231/93 e 265/93 que aprovam, o primeiro, o Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (EMGNR93) e o segundo a Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (LOGNR93), ambos emanando do Governo, nos termos do artigo 201º nº 1 alínea a) da CRP, onde, com os termos supra transcritos, se inserem as normas cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada
Da evolução legislativa que acaba de se descrever resulta sem margem para dúvidas o seguinte:
Aprovada pela Assembleia da República a Lei da Defesa Nacional (Lei nº 29/82), à disposição que desta consta sobre a aplicação ao pessoal da GNR do RDM não pode imputar-se qualquer vício de inconstitucionalidade formal ou orgânica. Isto significa que tal aplicação tem neste aspecto credencial bastante, pelo menos a partir da entrada em vigor da citada Lei nº 29/82, não se suscitando igualmente dúvidas de que o RDM de 77 foi aprovado por quem na altura tinha competência constitucional para o fazer – o Conselho da Revolução – nos termos do artigo
148º nº 1 alínea a) da CRP, na sua versão originária.
Por outro lado o RDM de 77 tem que ser interpretado nos termos em que o DL nº
203/78 o fez (como 'interpretação autêntica').
Mas, se assim é, a questão a resolver, tal como foi equacionada, passa pela de saber se a 'dispensa do serviço' aplicada ao recorrente – e nos termos em que o foi – resulta de uma medida legislativa substancialmente inovatória relativamente ao que se prescreve nos citados diplomas de 77 e 78, ou seja, em direitas contas, se um sargento da GNR não poderia ser afastado do serviço, através de processo próprio de dispensa de serviço ou disciplinar, por não ter
'bom comportamento militar e cívico' ou 'espírito militar', já no âmbito daqueles diplomas, bem como no dos EMGNR83 e LOGNR83.
A resposta é resolutamente negativa.
Com efeito, no âmbito do RDM, conjugado com o que se dispõe no DL nº 203/78, qualificado então como pena de 'separação de serviço', está já previsto aquele afastamento nos casos em que os 'elementos das forças armadas' 'não revelem as qualidades essenciais para o exercício das sua funções militares' (artigo 34º nº
2 do RDM), isto em resultado da apreciação da sua 'capacidade profissional e moral' que é, aliás, 'independente de quaisquer processos disciplinares ou criminais' (artigo 2º nº 1 do DL nº 203/78).
No que ao caso importa, nada de substancialmente novo trazem o EMGNR83 e a LOGNR83), pois também aí se prevê a 'separação de serviço' (agora ao lado da medida de 'dispensa de serviço', nos termos do artigo 70º nº 1 da LOGNR83), aplicável nos casos em que o militar 'não convenha ao serviço da Guarda', ou por se comprovar que ele não possui 'boas qualidades morais', 'bom comportamento militar e civil', 'espírito militar' ou 'aptidão física e psíquica adequada'(artigo 37º nº 1 do EMGNR83).
O mesmo se poderá dizer relativamente aos diplomas de 93, onde a medida de
'dispensa do serviço' é aplicável, em 'processo próprio com observância de todas as garantias de defesa' 'sempre que o comportamento do militar indicie notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função' (artigo 94º nº 2 da LOGNR), resultando ainda do EMGNR93 que não pode continuar no activo nem na efectividade do serviço o militar que não tiver bom comportamento militar e cívico e espírito militar (artigo 75º nº 1).
Em suma, pois, ressalvando diferenças de 'nomen juris' e de expressões verbais relativas a conceitos idênticos, ou mesmo sobre a natureza (disciplinar ou estatutária) da medida, que não contendem com a substância das coisas, as normas que fundamentam o afastamento do recorrente do serviço da GNR não são inovatórias, tendo em conta a Lei nº 29/82 que mandou aplicar ao pessoal da GNR o RDM - lei essa que, na matéria em causa, não enferma, manifestamente, de inconstitucionalidade formal ou orgânica – sendo certo que, na mesma matéria, também o EMGNR83 e a LOGNR83 não introduziram alterações significativas ao regime que então vigorava.
O que se deixa dito face à citada jurisprudência deste Tribunal, dispensa-nos de apreciar se as normas em causa versam matéria que, segundo o recorrente, integram o disposto nas alíneas b), d) e v) do nº 1 do artigo 168º da CRP.
Improcede, pois, a alegação de inconstitucionalidade orgânica e formal.
5 - Sustenta depois o recorrente que as normas dos artigos 75º do EMGNR93 e 94º da LOGNR93 enfermam de inconstitucionalidade material por ofenderem os princípios da igualdade e da proporcionalidade.
Mas sem razão, como se verá.
Segundo o recorrente, a violação daquele primeiro princípio tem desde logo como premissa a afectação do direito à segurança no emprego com guarida no artigo 53º da CRP, sendo que relativamente a todos os outros trabalhadores, no âmbito do direito privado ou do direito público, o despedimento só pode ocorrer com justa causa e em processo disciplinar.
Não se afigura forçado admitir que a medida de dispensa do serviço ponha em causa a segurança no emprego. Simplesmente, o que parece claro, face ao disposto nas referidas normas do EMGNR93 e da LOGNR, é que ela não é aplicável sem que se verifiquem as condições nelas previstas, embora com a utilização de conceitos indeterminados. O tipo de funções que o militar da GNR exerce, enquadrado num modelo organizacional próprio, exige que a esse militar se imponham especiais condições de aptidão física e psíquica e a observância de rigorosos padrões comportamentais e éticos, sem os quais se não pode deixar de justificar a quebra do 'vínculo laboral'. E é precisamente a falta dessas condições e desses requisitos que as normas em causa prevêem como justificativas da imposição da medida.
No caso, pois, existindo uma causa adequada à cessação da 'relação laboral', não
é legítima a identificação da dispensa de serviço com observância do disposto nas citadas normas com um despedimento sem justa causa, sendo ainda certo que no processo em que a medida é aplicada se asseguram 'todas as garantias de defesa'
(artigo 94º nº 2 da LOGNR93).
Mas o recorrente aborda ainda a violação do princípio da igualdade, comparando o regime a que estão sujeitos os membros da PSP com o que rege para os militares da GNR.
Como repetidamente o Tribunal Constitucional o tem afirmado, o princípio da igualdade não obsta a toda e qualquer diversidade de tratamento, impedindo apenas que eventuais distinções assentem em fundamentos desrazoáveis ou arbitrários.
Ora, para que se pudesse afirmar, no caso, a violação do princípio da igualdade, teria que se demonstrar que, na sua diferença, o regime a que está sujeito o militar da GNR, carecia de fundamento racional ou que ele era arbitrário.
A verdade, porém, é que entre a GNR e a PSP há diferenças suficientes para invalidar uma tal demonstração.
A GNR é constituída, nos termos do artigo 1º da LOGNR93, por militares organizados num corpo especial de tropas, na dependência do Ministro da Defesa Nacional no que concerne á uniformização e normalização da disciplina militar, do armamento e do equipamento e em caso de guerra ou em situação de crise pode ser colocada na dependência operacional do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (artigo 9º daquela Lei); está, ainda subordinada a princípios de comando e os seus militares estão sujeitos a aquartelamento e enquadramento hierárquico muito próximo do das Forças Armadas.
Esta proximidade com as Forças Armadas já não se verifica no caso da PSP que não
é uma força de segurança militar e está organizada e hierarquizada em termos substancialmente diversos dos da GNR.
As referidas diferenças são, como se disse, bastantes para justificar, ou, pelo menos para não ter como desrazoável ou arbitrário, que, no espaço da sua liberdade de conformação, o legislador tenha previsto a aplicação da medida de dispensa do serviço aos militares da GNR, já não o fazendo para os membros da PSP.
Não há, pois, violação do princípio constitucional da igualdade.
E também se não vislumbra que a medida de dispensa do serviço seja desproporcionada ou viole o princípio da proporcionalidade.
Com efeito, pelo que se deixou dito quanto às funções que a GNR exerce e tendo em conta os objectivos cometidos a este corpo especial de tropas, não se vê até como a verificação dos pressupostos de facto legalmente previstos para a aplicação da medida – designadamente os que no caso ocorreram – não preenchendo o militar da GNR as condições previstas nos Artigos 94º nº 2 da LOGNR93 e 75º nº
1 do EMGNR93, pudesse permitir a continuação desse militar ao serviço; não há, assim, qualquer inadequação entre a medida de dispensa do serviço e a gravidade da conduta a que ela corresponde.
Registe-se, por último, que o presente acórdão seguiu de perto o que este Tribunal decidiu já sobre as mesmas questões nos Acórdãos nºs 504/2000, publicado in Diário da República, II Série, de 5/1/01 e 505/2000 (inédito).
6 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2001 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa