Imprimir acórdão
Proc. nº 1104/98
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. No Tribunal do Círculo Judicial de Santarém, mediante acusação do Ministério Público, foram pronunciados e submetidos a julgamento os arguidos A... e N..., tendo sido condenados, por acórdão de 28 de Maio de 1998:
– o arguido A..., como autor material dos crimes de tráfico de produtos estupefacientes (previsto e punível nos termos do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro), introdução em casa alheia (previsto e punível nos termos do artigo 176º, nº 1, do Código Penal, na sua versão originária) e furto simples (previsto e punível nos termos do artigo 203º, nº 1, do Código Penal, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março), na pena global de cinco anos e seis meses de prisão e cento e quarenta dias de multa (à taxa diária de oitocentos escudos);
– o arguido N..., como autor material de um crime de consumo de produtos estupefacientes (previsto e punível nos termos do artigo 40º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro), na pena de doze dias de multa (à taxa diária de oitocentos escudos).
2. O arguido A... interpôs recurso desta decisão, nos termos dos artigos
399º, 401º, nº 1, alínea b), 406º, nº 1, 408º, nº 1, alínea a) e 432º, alínea c), todos do Código de Processo Penal.
Na sua motivação, o recorrente restringiu o âmbito do recurso ao crime de tráfico de produtos estupefacientes, invocando como fundamentos:
'insuficiência de fundamentação do acórdão recorrido', 'insuficiência da matéria de facto para sustentar a condenação' e 'erro notório na apreciação da prova'. Concluiu que 'a conduta do arguido enquadra-se na previsão do disposto no art.
26º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, ou, na pior das hipóteses do art. 25º, al. a) do mesmo diploma legal', que deve 'beneficiar da atenuação especial da pena prevista nos artigos 72º e 73º do Código Penal' e que 'deveria ser-lhe aplicada pena de prisão até três anos, sendo suspensa a sua execução, uma vez que se verificam os parâmetros impostos pelo art. 50º do Código Penal'.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 21 de Outubro de 1998
(fls. 260), rejeitou o recurso por manifesta improcedência.
3. A... veio então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, pedindo a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 374º, nº 2, 410º e 433º do Código de Processo Penal, por considerar que 'tais normas violam o disposto nos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição, designadamente o princípio do contraditório
ínsito naquele último número'.
No Tribunal Constitucional, o recorrente concluiu assim as suas alegações:
'[...] devem as normas constantes dos arts. 374º nº 2, 410º nº 1 e 433º do Cód. de Processo Penal, quando interpretadas e aplicadas em termos de admitir que da fundamentação das sentenças se aluda somente os meios de prova atendíveis para o efeito e de não admitir o reexame da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça, ser julgadas inconstitucionais por limitarem as garantias de defesa do arguido constitucionalmente consagradas no art. 32º.'
Por sua vez, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'1º. O recorrente não suscitou, durante o processo – isto é, antes da prolação da decisão recorrida – podendo perfeitamente tê-lo feito, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que sirva de base ao recurso de fiscalização concreta que ora interpôs.
2º. Na verdade, no recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça limitou-se o recorrente a imputar à decisão recorrida a violação de preceitos e princípios da Lei Fundamental – qualificando-a como inconstitucional e sustentando padecer a mesma de nulidade.
3º. Termos em que não deverá conhecer-se do presente recurso, por não ter o recorrente cumprido, em termos adequados e tempestivos, o ónus que sobre ele recaía.'
4. Notificado para responder à questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público, o recorrente reafirmou que a questão de constitucionalidade foi por si invocada na motivação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
II
5. O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82
é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Constituem pressupostos deste tipo de recurso:
– que a norma que se pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional tenha sido aplicada no julgamento da causa, como ratio decidendi;
– que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de tal norma.
O recorrente pretende que este Tribunal aprecie as normas dos artigos 374º, nº 2, 410º e 433º do Código de Processo Penal.
Ora, o recorrente não suscitou, durante o processo, de modo adequado, qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça – a peça processual em que afirma ter suscitado a questão de constitucionalidade – o recorrente limitou-se a referir, nas conclusões:
'1º. O acórdão recorrido violou o disposto no art. 208º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e o art. 374º, nº 2, Código de Processo Penal, por ausência de fundamento da convicção do tribunal, uma vez que não explicita por que lhe mereceram crédito as declarações do co-arguido N... em detrimento das prestadas pelo ora recorrente, relativamente à alegada venda de heroina por este àquele, bem não indica quais os elementos de prova que fundaram a sua convicção relativamente à venda de heroina pelo recorrente a pessoas, em quantidades e valores indeterminados, violação que, atento o disposto no art. 379º, al. a) do mesmo diploma, tem como consequência a nulidade do acórdão recorrido.
2º. O Douto Tribunal a quo não tomou em consideração as fundadas dúvidas suscitadas na apreciação da prova, não tendo relevado a indeterminabilidade e incerteza das quantidades, preços e números de indivíduos a quem o recorrente alegadamente teria vendido heroina. Caso o tivesse feito, atendendo ao princípio in dubio pro reo, tal deveria ter levado à absolvição do recorrente do crime por que vinha pronunciado. Não o fazendo, violou o Douto Tribunal recorrido o disposto no artigo 32º, nº 2, da C.R.P., sendo ainda manifestamente insuficiente a matéria de facto apurada para a boa decisão da causa. Caso assim não se entenda,
3º. O acórdão recorrido violou o disposto no art. 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal, porquanto incorre em erro notório na apreciação da prova, ao considerar que o recorrente detinha em seu poder 3 colheres e 2 seringas que eram utilizadas na preparação da heroina para venda, utensílios esses que são pública, notoriamente e segundo as regras de experiência comum, destinados à preparação da heroina para consumo e não para venda – o que levou a que se fizesse uma qualificação jurídica não subsumível da matéria fáctica apurada.'
Tal significa que o recorrente dirigiu a censura de inconstitucionalidade não a uma ou mais normas aplicadas na decisão recorrida mas à própria decisão recorrida. O recorrente não pede portanto a este Tribunal a apreciação da constitucionalidade de qualquer norma convocada para a decisão da matéria objecto do litígio. Através do presente recurso de constitucionalidade, o recorrente pretende afinal obter um novo julgamento da matéria discutida no processo, como aliás ele próprio reconhece na resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público ('recorreu, por isso, a este Tribunal Constitucional como derradeira ocasião para corrigir decisões que, no seu entender, ofendem grave e profundamente as suas garantias constitucionalmente consagradas e se fundamentem em interpretações normativas violadoras dos princípios constitucionais').
Tal pretensão excede obviamente a competência do Tribunal Constitucional.
Como este Tribunal tem afirmado reiteradamente, uma decisão judicial não é uma norma, pelo menos no sentido em que o termo é usado no artigo 280º da Constituição da República Portuguesa. O controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade. As decisões judiciais, consideradas em si mesmas, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo.
6. Conclui-se assim que não estão verificados os pressupostos processuais do recurso interposto. III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 unidades de conta.
Lisboa, 29 de Junho de 1999