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Processo nº 268/99 ACÓRDÃO Nº 440/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1.Relatório:
1. E. e P. interpõem recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Outubro de 1998 - acórdão que o segundo recorrente ainda pediu fosse julgado
'nulo e inválido por irregularidade', o que foi indeferido pelo acórdão de 14 de Janeiro de 1999.
No aresto recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou três dos quatro recursos interlocutórios interpostos pelo arguido P., e não tomou conhecimento do outro; rejeitou os dois recursos interlocutórios interpostos pelo arguido E.; e rejeitou, bem assim, os recursos que os dois arguidos interpuseram do acórdão condenatório do tribunal colectivo da 1ª Vara Criminal de Lisboa.
O tribunal colectivo tinha condenado os arguidos nas penas seguintes:
(a). o arguido E., na pena única de 20 anos de prisão: 14 anos de prisão, pelo crime de chefia de associação criminosa; 13 anos de prisão, pelo crime de tráfico agravado de estupefacientes; e 9 anos de prisão, por um crime de conversão e transferência de bens agravado;
(b). e o arguido P., na pena única de 12 anos de prisão: 6 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de participação em associação criminosa; 8 anos de prisão, pelo crime de tráfico agravado de estupefacientes; e 4 anos de prisão, pelo crime de conversão e transferência de bens agravado.
O recorrente E. pede se aprecie a constitucionalidade das normas que constam dos artigos do Código de Processo Penal que, a seguir, se indicam:
1ª. Artigo 412º, n.º 2, alínea a), interpretado no sentido de que 'a indicação, na motivação de recurso intercalar, das normas violadas considera-se como tendo indicado apenas nas conclusões a violação dos artigos 188º, 352º, 128º e 129º do Código de Processo Penal', quando ele, 'na motivação de recurso intercalar e nas respectivas conclusões', indicou 'as normas violadas e o sentido em que o tribunal as interpretou'; e interpretado ainda no sentido de que 'é necessário indicar as alíneas, os números correspondentes às normas indicados na motivação e nas conclusões';
2ª. Artigos 128º, n.º 1, e 129º, n.º 1, interpretados no sentido de que 'o depoimento das testemunhas de ouvir dizer pode ser valorado quando o tribunal chame a fonte e mesmo que esta validamente se recuse a prestar declarações'; e interpretados também no sentido de que 'não se aplicam ao depoimento do arguido';
3ª. Artigo 420º, n.º 1, interpretado no sentido de que, 'havendo quase transcrição integral nas conclusões daquilo que se disse no texto da motivação deve entender-se como existindo falta de motivação levando à rejeição do recurso'; e interpretado, bem assim, no sentido de que 'o recorrente não concretizou as escutas que foram imediatamente transcritas e levadas ao conhecimento do juiz', quando ele alegou que 'todas as transcrições não foram levadas imediatamente ao conhecimento do juiz';
4ª. Artigo 188º, n.º 1, interpretado no sentido de que 'a arguição de nulidade com fundamento nesta norma o deveria ter sido até ao encerramento do debate instrutório';
5ª. Artigo 412º, n.º 1, interpretado no sentido de que 'o recorrente não concretizou as escutas que foram imediatamente transcritas e levadas ao conhecimento do juiz', quando ele alegou que 'todas as transcrições não foram levadas imediatamente ao conhecimento do juiz'.
De sua parte, o recorrente P. pede se aprecie a constitucionalidade das normas que constam dos artigos do Código de Processo Penal que, a seguir, se indicam:
1ª. Artigo 129º, n.º 1, 2ª parte, 'bem como todo o n.º 1 citado';
2ª. Artigo 352º, n.º 1, alínea a);
3ª. Artigo 412º, n.ºs 1 e 2, alínea b);
4ª. Artigo 420º, n.º 1.
O recorrente E., no que aqui importa, concluiu como segue as suas alegações:
1. É pois inconstitucional, por contender com o artigo 32º, n.º 1, da CRP, a interpretação dada pelo douto tribunal a quo ao artigo 412º do CPP, quando, tendo o recorrente mencionado os preceitos jurídicos no texto da sua motivação de recurso, se fundamenta a decisão, interpretando o citado preceito de forma incorrecta.
2 .No douto acórdão começa por se defender a inaplicabilidade do estatuído no artigo 129º ao depoimento do arguido. A ser assim, ter-se-ia de aplicar a regra geral - artigo 128º do CPP -, do que resultaria de forma evidente a inconstitucionalidade deste preceito, pois veda por completo o depoimento indirecto.
3. Mas, ainda que se aplique o artigo 129º, a interpretação dada pelo douto acórdão sempre seria inconstitucional, quando valora o depoimento de uma testemunha que baseia o seu testemunho naquilo que ouviu dizer a outra testemunha e/ou arguido, sendo certo que se recusaram a depor.
4. Com efeito, os factos narrados por esta testemunha de ouvir dizer não são susceptíveis de ser submetidos ao contraditório. E, por isso, ficaria a defesa impedida de se defender E, mesmo que o tribunal chamasse a fonte a depor, e no caso desta se recusar validamente a prestar declarações, da mesma forma, a defesa se encontraria impedida de se defender.
5. Esta interpretação viola os mais elementares princípios de defesa designadamente o princípio do contraditório -, contendendo, assim, com o estatuído no artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da CRP. Violou-se o artigo 32º, nºs 1 e 2, da CRP. Nestes termos e nos demais de direito, deverá ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, declarar-se inconstitucional a interpretação dada aos artigos 412º,nºs 1 e 2, alínea), 128º e 129º do CPP.
O recorrente P. concluiu as suas alegações, para o que aqui importa, do modo seguinte:
1. O artigo 352º n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, ao impor o afastamento do arguido da sala de audiência, é inconstitucional, por violar o artigo 32º, n.ºs 1, 3, 5 e 6, da Constituição da República Portuguesa [..].
2. Sobre a inconstitucionalidade do artigo 129º, n.º 1, do Código de Processo Penal, adianta-se, esclarecendo que esta norma é inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, desde que o depoimento indirecto de se ouvir dizer a pessoas determinadas seja valorado e sirva como meio de prova, quando haja impossibilidade de inquirição, resultante da lei ou não, por as pessoas a inquirir não desejarem, legalmente, prestar quaisquer declarações ou por estas não serem encontradas.
3. O artigo 412º, nºs 1 e 2, alínea b), do Código de Processo Penal, sob pena de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, deve ser interpretado no sentido de que a falta de conclusões, ou o entendimento de que nelas não se resumem as razões do pedido ou de que se não indica ainda o que consta da referida alínea b) do n.º
2, leva apenas à rejeição das conclusões, sem isso equivaler à falta de conclusões.
4. Com a consequência de que o artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sob pena de violar o disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, deve ser interpretado no sentido de que o recurso é rejeitado, sempre que lhe faltar a motivação, e não apenas sempre que lhe faltar, ou se entenda que lhe faltam, as conclusões, por nelas não se resumirem as razões do pedido, como estipula o n.º 1, ou por nelas não se indicar ainda o que consta na alínea b) do n.º 2, todos do artigo 412º do Código de Processo Penal, não equivalendo a alegada falta de conclusões à falta de motivação.
O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em funções neste Tribunal concluiu assim as suas alegações:
1. O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, notando embora cedas deficiências formais na motivação dos recursos interpostos pelos arguidos, não extraiu delas a consequência processual invocada pelos recorrentes, não interpretando e aplicando as normas constantes dos artigos 412º e 420º do Código de Processo Penal com o sentido de tais vícios implicarem, só por si, rejeição liminar de tais recursos, cujo mérito acabou por apreciar, considerando-os
'manifestamente improcedentes', por razões de fundo, e não de forma.
2. Não há utilidade em apreciar a questão de constitucionalidade, reportada à norma do artigo 352º do Código de Processo Penal, já que o acórdão recorrido considerou, além do mais, que a hipotética irregularidade que derivaria da interpretação normativa de tal preceito, questionada pelos recorrentes, estava precludida, por não ter sido devida e atempadamente invocada pelos interessados, radicando tal sanação na aplicação de norma que não integra o objecto do presente recurso de constitucionalidade.
3. O recorrente P. não especificou, de forma minimamente adequada, no seu requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade qual a interpretação normativa do artigo 129º nº 1 do Código de Processo Penal que considera inconstitucional
4. Tal norma não foi, aliás, aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça com o sentido, alegadamente inconstitucional invocado pelos recorrentes, já que - como resulta dos autos - os depoimentos das testemunhas de acusação em causa não podem ser qualificados como puros 'depoimentos indirectos' e os dois arguidos, ora recorrentes, tiveram plena oportunidade processual de os questionarem no decurso do julgamento, já que foram chamados pelo tribunal a pronunciar-se sobre as 'conversas' tidas com as referidas testemunhas, não constando da acta do julgamento que se tenham recusado a depor, invocando o seu 'direito ao silêncio'.
5. Não viola as garantias de defesa do arguido a interpretação normativa do citado nº 1 do artigo 129º do Código de Processo Penal, traduzido em poder o tribunal valorar livremente certo 'depoimento indirecto' de uma testemunha, sempre que relate conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a prestar declarações, no exercício do 'direito ao silêncio', equiparando a limitação do contraditório que daqui deriva à que ocorreria no caso de impossibilidade de audição de tal pessoa, em consequência de ausência em parte incerta.
6. Termos em que não deverá conhecer-se dos recursos interpostos, pelos fundamentos indicados nos nºs 1 a 4º das conclusões; e julgar-se improcedente o recurso interposto, com base no alegado na conclusão 5ª.
O MINISTÉRIO PÚBLICO suscita, pois, a questão prévia do não conhecimento dos recursos, na parte em que eles têm por objecto as normas constantes dos seguintes artigos do Código de Processo Penal:
(a). artigo 129º, n.º 1 (conjugado com o artigo 128º, nº 1), salvo na medida adiante indicada;
(b). artigo 352º;
(c). artigo 412º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b);
(d). e artigo 420º.
Significa isto que, no entender do Ministério Público, o Tribunal só deve conhecer dos recursos, na parte em que eles têm por objecto o mencionado artigo
129º, enquanto interpretado (em conjugação com o artigo 128º) no sentido de que o tribunal pode valorar livremente o 'depoimento indirecto' de uma testemunha que relatou conversas tidas com o co-arguido que, chamado a depor, se recusou a prestar declarações, no exercício do seu direito ao silêncio.
Os recorrentes foram ouvidos sobre esta questão prévia. Disse o recorrente E.:
1. Tendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecido do mérito do recurso e tendo o Mº Pº o mesmo entendimento fica ultrapassada a inconstitucionalidade levantada pela defesa dos artigos 412º e 420º do CPP.
2. O recorrente atacou o despacho do douto tribunal que indeferiu a arguição de nulidade da retirada do recorrente da sala.
3. Sendo assim deve ser conhecida a inconstitucionalidade do artigo 352º tal como foi considerada pelo recorrente.
4. O depoimento das testemunhas baseado naquilo que ouviram dizer a outra testemunha ou aos arguidos é indirecto.
5. Com efeito, o conhecimento directo versa sobre os factos descritos na acusação, sobre a percepção desses mesmos factos e não tendo por base aquilo que uma testemunha ou arguido disse sobre os factos constantes da acusação.
6. Sendo depoimento indirecto o mesmo só pode ser valorado se essa testemunha indicar a fonte e este prestar declarações.
7. Caso a mesma validamente não preste declarações o depoimento indirecto já não pode ser valorado.
8. A não ser assim a defesa, através do confronto do depoimento do testemunho indirecto e da fonte, não poderá contraditar os factos.
9. Com efeito, qualquer elemento de prova só poderá ser valorado caso seja submetido ao contraditório.
10. Ora, o testemunho indirecto não é susceptível de ser contraditado sobre os factos uma vez que apenas tem conhecimento daquilo que lhe disseram sobre esses mesmos factos.
11. Acresce ainda que o artigo 129º sendo uma excepção ao artigo 128º contempla várias situações de valoração de depoimento indirecto não mencionado a que vimos discutindo.
12. É pois inconstitucional a interpretação dada pelo douto tribunal “a quo” ao artigo 129º quando interpreta este preceito com o sentido de que é de valorar o testemunho indirecto quando se chame a fonte e esta validamente não preste declarações, por contender com o disposto no artigo 32º, nº 1, da CRP.
13. A interpretação mais conforme à Constituição é a de não valorar o depoimento de uma testemunha quando baseia o seu testemunho naquilo que ouviu dizer a determinada pessoa sendo que esta validamente não presta declarações.
Disse o recorrente P.: “deve-se conhecer do recurso interposto, por ser irrelevante o juízo de improcedência manifesta que se faz quanto aos recursos, julgados em conferência e rejeitados no Supremo Tribunal de Justiça”; “não existe inutilidade na apreciação da inconstitucionalidade do artigo 352º, nº 1, a), do Código de Processo Penal”; “a inconstitucionalidade suscitada [quanto ao artigo 129º, nº 1, do Código de Processo Penal] refere-se à recusa dos arguidos em prestarem declarações e à recusa da testemunha A. em depor”.
2. Cumpre decidir. E, desde logo, se deve conhecer-se dos recursos interpostos, com o objecto que os recorrentes lhes definiram, ou se apenas na medida apontada pelo Ministério Público.
II. Fundamentos:
3. Questão prévia do não conhecimento parcial dos recursos:
3.1. Começa por anotar-se que não constitui objecto do recurso a norma constante do artigo 188º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que 'a arguição de nulidade com fundamento nesta norma o deveria ter sido até ao encerramento do debate instrutório'. Na verdade, embora a tenha indicado no requerimento de interposição do recurso, o recorrente Portela não a mencionou, nas conclusões da alegação, como norma que este Tribunal deva julgar inconstitucional. Ou seja: usou da faculdade legal de restringir, nessa parte, o objecto do recurso.
Prosseguindo:
3.2. Quanto ao artigo 129º, nº 1 (em conjugação com o artigo 128º n.º 1):
3.2.1. O recorrente P., no requerimento de interposição de recurso, indica como inconstitucional a '2ª parte do artigo 129º, n.º 1', 'bem como todo o n.º 1 citado', mas não esclarece, com a necessária clareza e precisão, qual a interpretação que considera incompatível com a Constituição. De sua parte, o recorrente Portela indicou esses normativos em bloco, sem restringir a acusação de inconstitucionalidade aos respectivos nºs 1 ou a qualquer dimensão normativa deles. Mas, interpretando o que os recorrentes disseram na motivação dos recursos intercalares interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça, reportando-se aos depoimentos das testemunhas C., M. e Mar., deve concluir-se que ambos questionaram o citado artigo 129º, nº 1 (conjugado com o artigo 128º, nº 1), interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar como meio de prova, sujeitando-o à sua livre apreciação, o depoimento de uma testemunha que disse ter ouvido do próprio arguido os factos que relata, quando este, chamado a prestar declarações, o não quis fazer, no exercício do seu direito ao silêncio.
3.2.2. Acontece, no entanto, que, como bem sublinha o Ministério Público, tais normativos, interpretados nos termos apontados, só parcialmente foram aplicados nos autos.
Na verdade, as referidas testemunhas só em parte se poderão considerar testemunhas de ouvir dizer, pois o seu conhecimento dos factos, ao menos em certa medida, é um conhecimento directo. É que, - como consta da fundamentação da sentença da 1ª Instância -, tendo participado na actividade delituosa dos arguidos, elas relataram encontros que presenciaram, 'entregas, transportes, conversas preparatórias e combinatórias dessas entregas e transportes, quer de drogas, quer de dinheiro, entre os diversos intervenientes e designadamente do A. com os arguidos E. e P.'. Ou seja: o seu conhecimento dos factos adveio-lhes, ao menos em parte, de os terem presenciado.
Mas, mesmo quanto à parte dos depoimentos dessas testemunhas que sejam meros relatos de conversas que tiveram com os arguidos ou de factos que lhes ouviram, não pode dizer-se, como fazem os recorrentes, que o tribunal valorou esses depoimentos, apesar de as pessoas de quem elas ouviram, chamadas a depor, não se terem pronunciado sobre os mesmos, por se terem recusado a prestar declarações ou terem declarado que o não desejavam fazer. De facto, os recorrentes foram chamados a pronunciar-se sobre o teor das conversas que tiveram com as referidas testemunhas e, conforme consta da acta de julgamento e se refere no acórdão recorrido, não se recusaram a depor. Apenas uma das pessoas referenciadas pelas ditas testemunhas (o arguido do processo principal, A.) se recusou a depor. Lê-se, com efeito, no acórdão recorrido: Em princípio, não pode ser considerado como indirecto o depoimento de uma testemunha que relata conversas que teve ou que ouviu ao arguido, ou arguidos, sendo aquele depoimento passível de livre apreciação pelo tribunal, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal. Encontram-se nessa situação os depoimentos das testemunhas em causa na parte em que se reportam ao que ouviram dizer aos arguidos P. e E. e ao co-arguido no processo principal A. na medida em que este se recusou a depor como testemunha. Por outro lado, o artigo 129º, n. º 1, do Código de Processo Penal só proíbe o depoimento que resulta do que se ouviu dizer a pessoa determinada, se esta não for chamada a depor, tendo por finalidade que se determine a razão de ciência daquele depoimento, sujeitando-o ao contraditório [..]. Se a pessoa chamada se recusar a depor, isto não invalida o depoimento da testemunha que a indicou, ficando sujeito à livre apreciação do tribunal, que deverá ter em conta tal recusa. Ora, apesar de tudo, in casu, o juiz presidente do tribunal a quo admitiu, logo no despacho recorrido que os arguidos em causa depusessem em qualquer altura, sobre a matéria em apreço e ordenou a convocação da testemunha A. para o mesmo efeito - v. fls 11051. Ora, quanto aos dois referidos arguidos, foi logo na mesma audiência dado cumprimento ao que vai dito, sendo certo que, conforme consta da acta daquela, a fls. 11052, questionados sobre o se lhes oferecia dizer, a respeito dos depoimentos das testemunhas M, C. Ferreira e Mar., nada ficou expresso na mesma acta quanto à sua recusa em prestar declarações sobre tal matéria; sendo certo que não foi impugnada a veracidade desta acta. Logo, não se pode concluir que tenha ocorrido a referida recusa, ao contrário do que o recorrente e o E. dizem. Quanto ao A., o tribunal também o chamou a depor sobre a questão em apreço, mas ele recusou-se a fazê-lo como já dissemos. Portanto, tendo o tribunal cumprido o que dispõe o artigo 129º, nº 1, do Código de Processo Penal, a entender-se ser esta disposição aplicável ao presente caso, os depoimentos das três testemunhas em apreço não podem considerar-se meios de prova proibidos, pelo que o tribunal podia sujeitá-los à sua livre apreciação. Nem com isto se viola o princípio do contraditório, consagrado no artigo 32º, nº
5, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que aos arguidos em questão foi dada a possibilidade de prestar declarações a respeito dos depoimentos das três testemunhas atrás mencionadas, não sendo, neste sentido, inconstitucional o artigo 129º, nº 1, do Código de Processo Penal [..].
3.2.3. Decorre de quanto se disse que o artigo 129º nº 1 (conjugado com o artigo
128º, nº 1) do Código de Processo Penal, na interpretação cuja constitucionalidade é questionada pelos recorrentes, apenas foi aplicado pelo acórdão recorrido, na medida em que este valorou, apreciando-os livremente, os depoimentos das mencionadas testemunhas, na parte em que tais depoimentos são mera reprodução de factos que essas testemunhas não presenciaram e que ouviram da boca do referido A. Só nesta medida, pois, se conhecerá dos recursos, na parte em que eles têm por objecto os normativos acabados de referir.
3.3. Quanto às normas constantes dos artigos 412º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), e
420º, nº 1, do citado Código:
3.3.1. Os recorrentes questionam a constitucionalidade da interpretação das apontadas normas, feita pelo acórdão recorrido, em termos de a falta de concisão das conclusões da motivação do recurso implicar a rejeição deste, com fundamento em que essa falta de concisão equivale à própria falta de conclusões, e a falta destas implica a falta de motivação. E questionam, bem assim, a constitucionalidade de uma interpretação segundo a qual também implica a rejeição do recurso a não indicação, pelo menos em termos perceptíveis, do sentido em que o tribunal recorrido interpretou determinada norma jurídica e daquele em que ela devia sido interpretada.
3.3.2. Acontece, no entanto, que, como sublinha o Ministério Público, a consequência da rejeição do recurso não a extraiu o acórdão recorrido dos apontados vícios formais. Fê-la, antes, decorrer de outras razões que, implicando a manifesta improcedência dos mesmos, conduziram igualmente à sua rejeição (cf. fls. 11719 verso, 11720, 11720 verso, 11721, 11725, 11726 e 11726 verso desse acórdão). A razão do julgamento de rejeição dos recursos ficou-se, assim, a dever ao facto de eles serem manifestamente improcedentes, e não, propriamente, à eventual existência daqueles vícios formais. Pode, por isso, concluir-se, como faz o Ministério Público, que o acórdão recorrido não aplicou as normas processuais penais indicados pelos recorrentes com “a interpretação, alegadamente inconstitucional, de estar irremediavelmente precludido o conhecimento dos recursos por força dos vícios e insuficiências formais das motivações apresentadas pelos recorrentes'.
Se, porém, esta conclusão dever considerar-se excessiva, haverá, pelo menos, de entender-se, ainda com o Ministério Público, que, como o 'juízo de improcedência manifesta sempre subsistiria, independentemente do sentido da decisão proferida sobre a existência de vícios formais da motivação dos recursos e respectivas consequências processuais', não há interesse no conhecimento desses recursos. De facto, ainda que este Tribunal viesse a concluir pela inconstitucionalidade das normas agora em apreciação, esse seu julgamento não iria repercutir-se sobre a decisão do caso de que emergiram tais recursos, pois o Supremo Tribunal de Justiça continuaria a rejeitar, por os julgar manifestamente improcedentes, os recursos que para si foram interpostos. Ora, os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental. E, por isso, só se justifica que deles o Tribunal conheça, quando o julgamento sobre a questão de constitucionalidade puder influir na decisão do caso que os motivou.
3.3.3. O Tribunal não vai, pois, conhecer dos recursos, na parte em que eles têm por objecto as normas constantes dos artigos 412º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), e
420º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
3.4 Quanto ao artigo 352º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal:
3.4.1. O recorrente P., depois de considerar ilegal 'o afastamento dos arguidos
[da sala de audiência] durante a prestação de declarações das mencionadas testemunhas de acusação' (refere-se às testemunhas C., M. e Mar., já referidas), que 'já foram co-arguidas no processo principal', conclui que 'o artigo 352º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Penal, pese embora o disposto no seu n.º
2, é inconstitucional' (cf. as conclusões 6ª, 9ª e 10ª da motivação do recurso interposto dos despachos de fls. 11.021 a 11.023 e 11.050 a 11.051). Sobre esta questão, o acórdão recorrido disse:
[..] o próprio facto de as três testemunhas em causa terem declarado que pretendiam prestar os seus depoimentos sem a presença dos arguidos - v. fls
11021 e 11023 - é elemento mais que suficiente para que o tribunal 'a quo', em nome da objectividade e serenidade de tais depoimentos, tivesse decidido que havia razões para crer que a presença dos arguido inibiria as testemunhas de dizer a verdade, determinando, correctamente, o afastamento dos arguidos durante os depoimentos daquelas. De todo o modo, ainda que se tratasse de irregularidade, a verdade é que esta devia ter sido logo arguida pelo recorrente no próprio acto em que foi determinado o afastamento dos arguidos, como determina o artigo 123º nº 1, do Código de Processo Penal, ficando sanada a irregularidade. Por outro lado o artigo 352º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal não é inconstitucional, pois as garantias de defesa e do contraditório ficam salvaguardadas pelo disposto no nº 2 daquele artigo, que remete para o nº 7 do artigo 332º do mesmo Código, que impõe, sob pena de nulidade, que, voltando o arguido à sala de audiência, seja resumidamente instruído pelo Presidente do que se tiver passado na sua ausência [..].
3.4.2. O Tribunal também não vai conhecer do recurso, na parte em que ele tem por objecto o referido artigo 352º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal. E isto, por razões similares às que o levam a não conhecer dos recursos, na parte em que eles têm por objecto as normas dos artigos 412º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), e 420º, nº 1, do mesmo Código.
De facto, fosse qual fosse o julgamento que este Tribunal viesse a proferir sobre a constitucionalidade da norma agora sub iudicio, não teria ele qualquer influência na decisão do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que, se alguma irregularidade, acaso, foi cometida com o afastamento da sala de audiências das testemunhas atrás mencionadas, sempre o conhecimento dela estaria precludido, por força do disposto no artigo 123º, nº 1, do Código de Processo Penal, cuja constitucionalidade não vem questionada. Por isso, é absolutamente inútil o julgamento da questão de constitucionalidade atinente ao artigo 352º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
4. A questão de constitucionalidade:
Recorda-se que a questão de constitucionalidade de que unicamente se vai conhecer é a que tem por objecto a norma constante do artigo 129º, nº 1
(conjugado com o artigo 128º, nº 1), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que o tribunal pode valorar como meio de prova, sujeitando-o à sua livre apreciação, o depoimento de uma testemunha que disse ter ouvido do próprio arguido os factos que relata, quando este, chamado a prestar declarações, o não quis fazer, no exercício do seu direito ao silêncio. E, ainda assim, apenas na parte em que o acórdão recorrido valorou, apreciando-os livremente, os depoimentos das testemunhas mencionadas atrás, no ponto em que os seus depoimentos sejam mera reprodução de factos que elas não presenciaram e que ouviram da boca do referido A..
No artigo 128º, nº 1, do Código de Processo Penal, preceitua-se que 'a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova'. E, no artigo 129º, nº 1, do mesmo Código, acrescenta-se: 'Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas'. Destes preceitos legais decorre que, embora o testemunho directo seja a regra, o depoimento indirecto não é, em absoluto, proibido. Não existe, de facto, entre nós, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (hearsay evidence rule). O princípio hearsay is no evidence (ouvir dizer não constitui prova) sofre, assim, limitações. E, com isso - tal como se mostrou no acórdão nº 213/94
(publicado no Diário da República, II série, de 23 de Agosto de 1994), para cuja fundamentação aqui se remete -, o processo penal continua a assegurar todas as garantias de defesa. Continua a ser a due process of law. Escreveu-se nesse aresto: Ora, entende-se que a regulamentação consagrada na norma do nº 1 do artigo 129º do Código de Processo Penal se revela como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law).
A disciplina contida no referido artigo 129º, nº 1 - mostrou-se no mesmo aresto
- também não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório: de facto, aquele preceito, ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. E, desse modo, garante a imediação e possibilita a cross-examination. Só assim não será (isto é, as pessoas referidas não são chamadas a depor), se a sua inquirição não for possível, 'por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas'. Nessa hipótese, tornado-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas de outiva indicaram como fonte, tem de considerar-se razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indirecto. Tanto mais que este depoimento é apreciado pelo tribunal, segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção (cf. artigo
127º do Código de Processo Penal).
No caso dos autos, existe impossibilidade absoluta, decorrente da própria lei, de interrogar o co-arguido A., pois que este, no exercício do seu direito ao silêncio, se escusou a prestar declarações. Tal recusa por parte do referido arguido verificou-se no seguinte quadro factual: as testemunhas que o indicaram não são meras testemunhas de ouvir dizer, pois que, elas próprias, participaram na actividade delituosa dos arguidos; o tribunal chamou a depor todas as pessoas que essas testemunhas indicaram; dessas pessoas, apenas o referido A. se recusou a prestar declarações, pois os outros arguidos, ora recorrentes, tiveram oportunidade de, na audiência, se pronunciar sobre os depoimentos das referidas testemunhas, designadamente contraditando-os. Sendo este o quadro em que se verificou a impossibilidade de ouvir a pessoa indicada como fonte pelas testemunhas de acusação, que, de resto, puderam ser contraditadas pelos recorrentes; não havendo nenhum facto cuja prova tenha assentado exclusivamente nos referidos depoimentos indirectos; e sendo estes depoimentos apreciados pelo tribunal com a prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte impõe e de acordo com as regras da lógica e da experiência; é razoável e proporcionado que esses depoimentos possam ser valorados como meios de prova. Desde logo, porque não há diferença substancial entre a situação do arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu direito ao silêncio para não depor. Depois, porque, tratando-se de testemunhas que 'tiveram participação importante na actividade delituosa do grupo', se os seus depoimentos não puderem ser atendidos, estar-se-á a desprezar um importante meio de descoberta da verdade. Finalmente, porque não ocorre no caso uma situação similar à julgada no citado acórdão nº 213/94, pois sobre os depoimentos indirectos prestados pelas testemunhas de acusação não incide qualquer proibição de prova.
Há, assim, que concluir que o artigo 129º, nº 1 (conjugado com o artigo 128º, nº
1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Não o atinge, ao menos na dimensão em que essa norma foi aplicada no caso. Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal norma não é inconstitucional.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). não conhecer dos recursos interpostos nos termos que se deixaram indicados;
(b). negar provimento aos recursos, na parte em que deles se conhece;
(c). condenar os recorrentes nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça, a pagar por cada um deles.
Lisboa, 8 de Julho de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Luís Nunes de Almeida