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Processo nº 61/2001 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. IB recorreu, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Outubro de
2000. Pediu que este Tribunal apreciasse a constitucionalidade do artigo 433º do Código de Processo Penal de 1987, 'na medida em que dispõe que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito', e, bem assim, a da «interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça do nº 2 do artigo 412º do Código de Processo Penal, na medida em que não admite o recurso interposto pelo recorrente, por ter entendido que o recorrido 'não indicou qualquer dos elementos mencionados nas três alíneas do nº 2 do citado artigo 412º', por isso 'o recurso tem de ser rejeitado nesta parte' e 'trata-se de rejeição imediata, ou seja, não há que fazer qualquer convite ao recorrente para dar cumprimento ao disposto no referido normativo'».
O Conselheiro relator no Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 6 de Dezembro de 2000, não admitiu o recurso assim interposto. Argumentou para tanto, e entre o mais, que, quanto ao citado artigo 433º, o recurso – para além de não ter qualquer utilidade – é manifestamente infundado; e, quanto ao mencionado artigo 412º, nº 2, que, antes da prolação do acórdão recorrido, o recorrente não suscitou a sua inconstitucionalidade, podendo e devendo tê-lo feito, por ser uniforme e 'extensíssima' a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que a falta de cumprimento daquele normativo implica a imediata rejeição do recurso.
2. É deste despacho de não admissão do recurso que o recorrente agora reclama para este Tribunal, pedindo que o mesmo seja admitido.
O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em exercício de funções neste Tribunal disse: Relativamente à questão de constitucionalidade suscitada quanto à norma constante do art. 433º do CPP, a reclamação deduzida é manifestamente improcedente, já que – tendo o recorrente impugnando exclusivamente matéria de direito e recorrendo directamente para o STJ – não poderiam obviamente os poderes cognitivos deste Tribunal abarcar a dirimição de 'questões de facto' que o recorrente nem sequer curou de levantar. Já assistirá, porém, razão ao ora reclamante no que respeita à interpretação normativa que o acórdão recorrido fez do art. 412º, nº 2, da CRP – persistindo-se, aliás, numa interpretação desproporcionadamente 'formalista' e preclusiva dos requisitos e especificações que devem constar das conclusões da motivação do recorrente, e que este Tribunal Constitucional já considerou colidente com o princípio das garantias de defesa, em situações perfeitamente análogas à dos autos – cf. nomeadamente, os acs. 193/97, 43/99, 417/99, 43/00,
337/00 e 288/00, em que se julgou inconstitucional precisamente esta norma do nº
2 do art. 412º, na interpretação que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nela se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado. Não é, por outro lado, exigível à parte que supõe ter cumprido os ónus 'formais' que sobre ela recaem o ónus adicional de antecipar a questão de constitucionalidade da interpretação normativa que – partindo de uma possível insuficiência das especificações das conclusões da motivação do recorrente – trate de rejeitar liminarmente o recurso, sem qualquer convite ao aperfeiçoamento. Em suma: o princípio constitucional das garantias de defesa levava necessariamente a que – se o STJ entendia que o recorrente não havia conseguido colocar, em termos perfeitamente inteligíveis, uma 'questão de direito' no que respeita à determinação da medida concreta da pena que lhe foi cominada – deveria tê-lo convidado a especificar os elementos normativos que considerasse estarem em falta e prejudicarem a plena inteligibilidade da questão colocada à apreciação do Supremo – em vez de, aproveitando tal deficiência, rejeitar liminarmente o recurso. Nestes termos, somos de parecer que a presente reclamação deverá parcialmente ser deferida.
3. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. A reclamação só pode ser deferida, se o recurso, na parte em que tem por objecto o artigo 433º do Código de Processo Penal (redacção inicial), contrariamente ao que decidiu o despacho reclamado, não for manifestamente infundado; e se, na parte em que tem por objecto a norma do artigo 412º, nº 2, do mesmo Código, o recorrente dever ser dispensado do ónus da suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo.
É que, se o recurso for manifestamente infundado, o despacho reclamado não merece qualquer censura no que toca ao não recebimento do recurso quanto ao citado artigo 433º, uma vez que – dispõe o artigo 76º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional -, num tal caso (isto é, sendo manifestamente infundado o recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da mesma Lei), deve o respectivo requerimento ser indeferido no tribunal recorrido; e isso foi o que no caso aconteceu. O despacho reclamado também não mereceria censura quanto ao não recebimento do recurso relativamente ao artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal, caso fosse exigível que o recorrente, na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitasse a inconstitucionalidade daquele normativo, interpretado no sentido de que o seu não cumprimento implica a imediata rejeição do recurso
(ou seja, sem ele ter que ser previamente convidado a suprir a falta de indicação dos elementos que, sob pena de rejeição, tais conclusões têm que conter quando o recurso verse matéria de direito, como era o caso). E isto, porque o conhecimento do recurso pressupõe, entre o mais, que o recorrente tenha suscitado perante o tribunal recorrido a questão de inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada ratione constitutionis, em termos de este estar obrigado a dela conhecer [cf. os artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional]; e, no caso, o recorrente tal não fez.
5. Pois bem: o recurso, na parte em que tem por objecto o dito artigo 433º, é, na verdade, manifestamente infundado, pois tal normativo, ao dispor que 'o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito', não viola qualquer norma ou princípio constitucional; designadamente, não viola o direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto (e, assim, o nº 1 do artigo 32º da Constituição). Na verdade – e sem sequer fazer apelo à jurisprudência deste Tribunal que, embora com vozes discordantes, sempre julgou compatível com a Constituição o recurso de revista alargada tal como ele se achava regulado nos artigos 433º e
410º, nºs 2 e 3 (versão inicial) do Código de Processo Penal [cf., desde logo, o acórdão nº 322/93 (Acórdão do Tribunal Constitucional, volume 25º, página 375)]
-, desde sempre este Tribunal chamou a atenção para que o artigo 433º, 'em si mesmo considerado, e só por si' (e ele é, no caso, a única norma que constitui objecto do recurso interposto) 'não pode violar o artigo 32º, nº 1, da Constituição', na medida em que, de um lado, 'não fecha irremessivelmente a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça reexaminar a matéria de facto, remetendo-se aqui, na parte inicial da norma em questão, para o artigo 410º, nºs
2 e 3, do Código de Processo Penal'; e, de outro, na medida em que o artigo 32º, nº 1, da Constituição 'não exige um recurso irrestrito em matéria de facto' [cf. o acórdão nº 234/93 (Acórdãos citados, volume 24º, página 601)]. Sendo o recurso, nesta parte, manifestamente infundado, a reclamação tem que, nesse ponto, ser indeferida.
De resto, mesmo que o recurso não fosse manifestamente infundado, sempre a reclamação devia ser, nesse ponto, indeferida, uma vez que o dito artigo 433º não foi – nem podia ser – aplicado no recurso com esse sentido que o reclamante acusa de inconstitucional. E isso, pela singela razão de que, no recurso, apenas estava em causa matéria de direito, e não também matéria de facto, razão por que toda a argumentação expendida no acórdão recorrido a respeito da questão de inconstitucionalidade não passa de obiter dicta ou, talvez mesmo, de argumentação ad ostentationem, insusceptível, por isso, de abrir a via do recurso de constitucionalidade.
A reclamação já porém não pode ser indeferida, na parte em que, com ela, se visa a admissão do recurso, tendo por objecto a norma constante do artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal, na interpretação que se apontou atrás.
É certo que o recorrente, na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não suscitou a inconstitucionalidade do artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de fazer decorrer do deficiente cumprimento dos ónus, que nele se impõem, o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que se dê ao recorrente a oportunidade processual de vir suprir o vício detectado. Simplesmente, como o dito artigo 412º, nº 2, na interpretação apontada, já foi julgado inconstitucional por este Tribunal (cf. acórdão nº 288/2000, de 17 de Maio de 2000, por publicar), tirado em recurso vindo do Supremo Tribunal de Justiça, era razoável que o recorrente esperasse ser convidado a suprir as deficiências que as conclusões da motivação, acaso, apresentassem. E, sendo isso razoável, não lhe era exigível que, na motivação, antecipasse qualquer acusação de inconstitucionalidade do normativo em causa, se ele viesse a ser interpretado como realmente foi. Há, por isso, que dispensar o recorrente do ónus da suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo.
Devendo o recorrente ser dispensado do cumprimento de tal ónus, deve a reclamação ser deferida para o efeito de o recurso interposto ser admitido, mas apenas quanto à norma do referido artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal, na interpretação que se deixou apontada.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se deferir parcialmente a reclamação, a fim de ser admitido o recurso interposto, na parte em que ele tem por objecto o artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o deficiente cumprimento dos ónus nele impostos implica a imediata rejeição do recurso, sem que se dê ao recorrente a oportunidade processual de vir suprir os vícios detectados.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2001 Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida