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Processo nº 134/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio, 'nos termos dos arts 280º, nº 1-a), e 3, da Constituição da República Portuguesa, 70º, nº 1-a), e 72º, nºs 1-a) e 3 da Lei nº 28/82, de 15/11', interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação do Porto (1ª Secção), de 12 de Janeiro de 2000, uma vez que 'no mesmo foi recusada, com fundamento na sua inconstitucionalidade material e orgânica, a aplicação das normas dos arts 122º, nºs 4 e 5, e 130º, nº
1-a), ambos do Código da Estrada ora vigente'.
2. Nas suas alegações, concluiu assim o Ministério Público recorrente:
'Decorrendo das normas dos artigos 122º, nºs 4 e 5, e 130º, nº 1, alínea a), ambos do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, o efeito automático e necessário da caducidade da carta ou licença de condução em consequência da aplicação ao seu titular, durante o período probatório de dois anos, da pena de proibição de conduzir ou de sanção de inibição de conduzir efectiva, deve concluir-se que tais normas violam o preceituado no nº 4 do artigo 30º da Constituição.'
3. Não foi apresentada contra-alegação pelo recorrido LV, com os sinais identificadores dos autos.
4. Tudo visto, cumpre decidir. O autos revelam que no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo,
'julgado em processo comum, perante o Tribunal singular, subsequente a pronúncia, o arguido LV, foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelos artigos 137º, nº 1 e 69º, nº 1, al. a), do CP, em 180 dias de multa à taxa diária de 1000$00, com 120 dias de prisão subsidiária, e a cumprir durante seis meses a proibição de conduzir qualquer veículo motorizado. Nos termos dos artigos, 125º, nºs 3 e 4 do CE (redacção do Decreto-Lei nº
114/94), e 122º, nº 4 e 130º, nº 1, al. a) do mesmo CE (ora vigente), foi declarada caduca a carta de condução de que é titular o arguido, com o processo nº 1092630'. Dessa decisão interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação do Porto e o acórdão recorrido, sob o Titulo: 'A declaração de caducidade da carta de condução (provisória) do arguido', discorre deste modo:
'Nos termos dos artigos, 125º, nºs 3º e 4º do CE (redacção do Decreto-Lei nº
114/94), e 122º, nº 4º e 130º, nº 1º, al. a) do mesmo CE (ora vigente), foi declarada caduca a carta de condução de que é titular o arguido, com o nº P
1092630. Como se decidiu no recentíssimo Acórdão desta Relação de 5 do corrente, prolatado no Recurso nº 257/99-1ª Sº, oriundo da mesma comarca, subscrito por três dos signatários:
‘Estabelece o nº 4º do artº 122º do CE que ‘o título de condução emitido a favor de quem não se encontra já legalmente habilitado para conduzir qualquer das categorias de veículos nele previstas tem carácter provisório e só se converte em definitivo se durante os dois primeiros anos do seu período de validade não for instaurado ao respectivo titular procedimento pela prática de crime ou contra-ordenação a que corresponda proibição ou inibição de conduzir’. E, prosseguindo, dispõe o nº 5º que ‘se durante o período referido no número anterior for instaurado procedimento pela prática de crime ou contra-ordenação a que corresponda proibição ou inibição de conduzir, o título de condução mantém o carácter provisório até que a respectiva decisão transite em julgado ou se torne definitiva. Por fim e complementando, o artº 130º, sob a epígrafe ‘Caducidade do título de condução’, prevê na al. a) do seu nº 1º que a carta ou licença de condução caduca quando, ‘sendo provisória nos termos dos nºs 4º e 5º do artigo 122º, for aplicada ao seu titular pena de proibição de conduzir ou sanção de inibição de conduzir efectiva’. A disciplina assim transcrita, acolhida na actual versão do Código da Estrada, aprovada pelo Dec.Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, já constava, nos seus traços essenciais, da primitiva versão desse Código, em cujo artº 125º, nos nºs 3º e
4º, se previa: a) o carácter provisório das cartas de condução nos dois primeiros anos do seu período de validade; b) a sua conversão em definitiva só após o decurso desse prazo sem que ao seu titular houvesse sido aplicada sanção de inibição do direito de conduzir; e, por fim, c) que a aplicação desta sanção de inibição de conduzir implicava a caducidade de tal carta de condução provisória. Com estes elementos, vejamos, então, a nossa questão. Numa primeira reflexão, não deixaremos de anotar que a obtenção de título de condução por alguém está condicionada à satisfação cumulativa de requisitos vários, logo os referidos no artº 126º do CE, entre os quais ter o candidato a necessária aptidão física, mental e psicológica e haver sido aprovado no respectivo exame de condução. Satisfeitos os requisitos exigidos, é concedido o título de condução que, conforme as disposições apontadas, tem carácter provisório durante dois anos, mas que se converterá em definitivo findo esse prazo, sem necessidade de cumprimento de qualquer outro requisito positivo, exigindo-se somente a satisfação de um requisito negativo, qual é o de não ter sido imposta ao titular da carta ou licença de condução, nesse período de provisoriedade, qualquer pena de proibição de conduzir ou sanção de inibição de conduzir efectiva. Isto significa, iniludivelmente, que nada de substancial quanto à sua capacidade para a condução distingue o condutor com mais ou menos de dois anos de carta, já que com o mero decurso desse prazo, sem necessidade de qualquer comprovação complementar, a lei considera tal condutor hábil em termos gerais. Donde que, à partida, logo com a satisfação dos requisitos para a concessão da carta, o titular adquira o direito ao exercício da condução em moldes idênticos, pelos anos fora. Porém, nos termos das disposições aqui em apreciação – os nºs 4º e 5º do artº
122º e al. a) do nº 1º do artº 130º -, a mera imposição de uma pena de proibição de conduzir ou de uma sanção de inibição de conduzir importa, só por si, que tal título dito provisório caduque e, por isso, que o seu titular se veja privado desse direito; o que sucede como efeito automático da imposição dessa sanção, proceda ela de crime ou de mera contra-ordenação, seja maior ou menor a gravidade do ilícito ou mais ou menos elevado grau de censurabilidade do comportamento do agente, prescindindo, por isso, da específica avaliação e decisão do julgador. Como, aliás, aconteceu na sentença em apreço, onde o Mmº Juiz nem sentiu a necessidade de ponderar a produção desse efeito (..). Mas, sendo assim, isto é, sendo tal caducidade da carta de condução consequentemente, a perda do direito que essa mesma carta corporiza – mera consequência necessária da condenação em pena acessória de proibição de conduzir ou em sanção de inibição de conduzir, parece evidente que se entra, de pleno, no campo da proibição estabelecida no nº 4º do acima citado artº 30º da CRP, não podendo deixar de se reconhecer a inconstitucionalidade material dos aludidos preceitos do Código da Estrada, cuja aplicação, assim, os Tribunais devem recusar, nos termos do artº 204º do diploma fundamental. E não se vê que se possa argumentar com o facto de ser tratar de título de condução ali qualificado de 'provisório', por isso, também, de um direito provisório: mais do que os aspectos formais, o que importa considerar serão as razões substanciais; e, nesse campo, como se pensa que acima se justificou, não se notam diferenças relevantes de fundo entre os encartados com mais ou com menos de dois anos, uns e outros havendo satisfeito por igual os mesmos requisitos positivos que justificaram a concessão do título de condução. Mas, pensa-se que, também organicamente, as ditas normas padecem de vício de inconstitucionalidade. Dentre as matérias que integram a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, elencadas no nº 1º do artº 165º da CRP, constam, nomeadamente, a 'definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal' – al. c) – e o 'regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo' – al. d). Crê-se que não sofre dúvida que aí se enquadrará a atribuição desse efeito da caducidade da carta de condução, enquanto integrando o regime jurídico que a lei define para certos crimes e contra-ordenações, aqueles e estas a que cabe, respectivamente, a pena acessória de proibição de conduzir ou a sanção de inibição de condução. Porque assim, em tal domínio, o Governo apenas pode legislar com e nos termos de prévia autorização da Assembleia da República, devendo a lei de autorização legislativa 'definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização' (nº 1º e 2º do citado artº 165º e artº 198º, nº 1º, al. b), da CRP). Como se disse atrás, o aqui versado regime de caducidade dos títulos de condução já constava, nos seus traços essenciais, da primitiva versão do Código da Estrada, aprovada pelo Dec.Lei nº 114/94, de 3 de Maio, tendo, então, o Governo legislado no uso de autorização legislativa conferida pela Lei nº 63/93, de 21 de Agosto. Ora, percorrendo detidamente o articulado desta Lei, nomeadamente o seu artº 2º, onde se define o sentido e a extensão da aludida autorização, em parte alguma se logra encontrar qualquer referência à caducidade da carta de condução, mormente como mero efeito da imposição ao seu titular de uma pena de proibição de conduzir ou de uma sanção de inibição de conduzir, não obstante a previsão de figuras próximas, v.g., a da cassação da carta de condução, medida de segurança que, no entanto, aí é função de um prévio juízo de inaptidão para a condução
(artº 2º, nº 2º, al. o), dessa Lei). Não se vê, pois, que esta Lei abranja aquela medida (...). Mas melhor sorte se não colhe da leitura da Lei nº 97/97, de 23 de Agosto, que autorizou o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada, donde resultou a versão actual, aprovada pelo Dec.Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, também nela se não vendo qualquer alusão à medida em causa, apesar de, tal como na Lei nº
63/93, do mesmo modo aí se conterem referências a figuras próximas, nomeadamente a aludida cassação de carta. Deste modo, conclui-se que, legislando nos termos apontados, o Governo extravasou os limites da autorização legislativa que lhe foi conferida, encontrando-se, por isso, as normas em apreço também feridas de inconstitucionalidade orgânica. Como tal, nos termos do acima citado artº 204º da CRP, não deviam essas normas ter sido aplicadas, o que significa que a decisão recorrida não pode subsistir na parte em que declarou a caducidade da carta de condução do arguido como mero efeito da sua condenação na pena acessória de proibição de conduzir.'
As normas questionadas, tal como consta do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, são os dos artigos 122º, nºs 4 e 5, e 130º, nº
1, a), do Código da Estrada vigente, segundo o texto revisto e republicado em anexo ao Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro (artigo 2º), e dispõem como se segue:
'Artigo 122º
4- O título de condução emitido a favor de quem não se encontra já legalmente habilitado para conduzir qualquer das categorias de veículos nele previstos tem carácter provisório e só se converte em definitivo se, durante os dois primeiros anos do seu período de validade, não for instaurado ao respectivo titular procedimento pela prática de crime ou contraordenação a que corresponda proibição ou inibição de conduzir'.
5 - Se durante o período referido no número anterior, for instaurado procedimento pela prática de crime ou contra-ordenação a que corresponda proibição ou inibição de conduzir, o título de condução mantém o carácter provisório até que a respectiva decisão transite em julgado ou se torne definitiva'. Artigo 130º
'1. A carta ou licença de condução caduca quando: a. Sendo provisória nos termos dos nºs 4 e 5 do artigo 122º, for aplicada ao seu titular pena de proibição de conduzir ou sanção de inibição de conduzir efectiva'. Aquelas normas inserem-se no Titulo V do Código da Estrada, que regula a matéria da habilitação legal para conduzir e, tal como já constava da versão do Código de 1994 (aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 5 de Maio), resulta desse Título que assumem 'carácter provisório' as cartas de condução nos dois primeiros anos do seu período de validade, convertendo-se em definitivas após o decurso desse prazo sem que ao seu titular houvesse sido aplicada sanção de proibição ou inibição do direito de conduzir, sendo que a aplicação desta sanção arrasta a caducidade da carta de condução provisória (este regime probatório da vigência das cartas de condução com a duração de dois anos foi introduzido pela primeira vez pelo Decreto-Lei nº 270/92, de 30 de Novembro, inovação que passou a constar do nº 1 do artigo 48º do Código da Estrada, mas só em 1994 se veio a prever a caducidade de tais cartas).
5. Acontece que, em caso similar, vindo também do Tribunal da Relação do Porto, o Tribunal Constitucional decidiu já julgar não inconstitucionais as mesmas normas dos artigos 122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº 1, a), do Código da Estrada, entendendo inexistir violação do artigo 30º, nº 4 da Constituição e não se verificar a inconstitucionalidade orgânica a que se reporta o acórdão recorrido. Fê-lo no acórdão nº 461/2000, publicado no Diário da República, II Série, nº
276, de 29 de Novembro. Concordando-se com a fundamentação de que se serviu esse acórdão nº 461/2000, há apenas que remeter para ela, com a consequência de merecer provimento o presente recurso.
6. Termos em que, DECIDINDO, concede-se provimento ao recurso e determina-se que seja reformado o acórdão recorrido, em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade. Lisboa, 13 de Dezembro de 2000- Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa