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Proc. n.º 1062/98
1ª Secção Cons. Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. – No Tribunal de Círculo de Abrantes realizou-se o julgamento, em processo de querela, de A... pronunciada como autora imediata de dois crimes de abuso de confiança agravado, puníveis pelo artigo 300º, n.º1 e n.º 2, alínea a) do Código Penal de 1982 (CP/82).
Após três adiamentos da audiência de discussão e julgamento, dois dos quais por falta da arguida que, devidamente notificada, justificou as faltas, realizou-se nova audiência em 8 de Julho de 1998, em que a arguida, apesar de devidamente notificada para comparecer com a advertência da sua comparência ser obrigatória, sob pena de ser condenada em multa, se faltar injustificadamente e de ser julgada como se estivesse presente e representada pelo seu defensor oficioso, nos termos do artigo 566º, do Código de Processo Penal de 1929, voltou a não estar presente.
Antes da audiência, o mandatário da arguida fez chegar ao Tribunal, por «fax» um requerimento arguindo a nulidade insuprível (artigo
119º, alínea f), do C.P.P.) do despacho que ordenara a notificação da arguida nos termos atrás referidos, por entender que ao caso devia aplicar-se o Código de Processo Penal em vigor em tudo o que lhe fosse mais favorável, sendo certo que tal despacho viola os artigos 29º, n.ºs 1 e 4. 32º, n.ºs 2 e 3 e 202º da Constituição.
Aberta a audiência de julgamento, foi proferida pelo Presidente do Tribunal Colectivo, a seguinte decisão:
'Atendendo aos fundamentos constantes do requerimento de hoje que deu entrada neste Tribunal Judicial da Golegã, via fax, os quais se afiguram pertinentes, entende o Tribunal não aplicar aos presentes autos o disposto no artº 566º, n.º1, do C.P.P. de 1929, parágrafo 1º, na medida em que a arguida deixa entender que pretende estar presente na audiência de discussão e julgamento, sendo certo que tem justificado as faltas. Afigura-se que tal norma é mesmo inconstitucional, por violação do disposto nos artºs 32º, n.ºs 1 e 5, e 2º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que impede que seja decretado um ulterior adiamento da audiência de julgamento quando a arguida, notificada da nova data do julgamento e tendo manifestado a intenção de estar presente nessa audiência, venha a faltar na data marcada por estar comprovadamente impossibilitada de comparecer por motivo justificado. Neste sentido já se pronunciou o Tribunal Constitucional (1ª Secção) Ac. nº
339/97, de 23/04/97, Processo n.º 663/96, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 466, pág. 125 e segs.) Assim, o Tribunal decide não realizar hoje a audiência de julgamento marcada. Para a audiência de discussão e julgamento designa-se o próximo dia 27 de Outubro de 1998, pelas 09, 45 horas, na sede do Tribunal de Círculo de Abrantes. Caso a ré A..., a testemunha IO... e a declarante I..., esta última se se mostrar devidamente notificada, não justificarem a falta no prazo legal vão desde já condenadas em 7.500$00 de multa e em igual montante de indemnização, cada uma, a favor do Cofre Geral dos Tribunais (artº 91º do C.P.P.(1929).'
2. – É desta decisão que vem interposto o presente recurso obrigatório de constitucionalidade pelo Ministério Público.
Nas alegações apresentadas neste Tribunal, o Procurador-Geral adjunto em exercício, formulou as seguintes conclusões:
'1º A norma constante do artigo 566º, § 1º, do Código de Processo Penal de 1929, aplicável residualmente aos processos regidos por esse diploma, enquanto prevê a possibilidade de realização do julgamento com dispensa da presença do arguido que já haja faltado duas vezes, justificando embora as faltas por razões de saúde, não é inconstitucional, a partir do momento em que entrou em vigor a nova redacção do n.º6 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, emergente da revisão operada pela Lei Constitucional n.º 1/97.
2º Tal norma apenas é inconstitucional enquanto conexionada com a Segunda parte do artigo 568º do mesmo Código, na medida em que se satisfaz com a notificação da decisão condenatória proferida ao defensor, presente naquela audiência, dispensando que seja notificado o próprio arguido, dispensado de comparecer ao julgamento, já que tal regime não assegura, em termos bastantes, os direitos de defesa.
3º Termos em que deverá proceder, em parte, o presente recurso, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade (meramente parcial) da norma desaplicada pela decisão recorrida.'
A arguida, recorrida, não apresentou alegações.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS:
3. – Torna-se necessário delimitar com precisão o objecto do presente recurso.
Com efeito, no requerimento de interposição do recurso, o representante do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apenas refere que na 'decisão judicial foi recusada a aplicação da norma constante do artigo
566º, parágrafo 1º, do C.P.P. de 1929, com fundamento na sua inconstitucionalidade', pelo que só esta norma pode ser objecto da apreciação do Tribunal.
É certo que, nas suas alegações, o Ex.mo Procurador-Geral adjunto em exercício neste Tribunal alarga o conhecimento do recurso a uma outra norma: a que resulta da conexão do artigo 566º com a segunda parte do artigo 568º do mesmo código, na medida em que se dispensa a notificação pessoal ao próprio arguido, já dispensado de comparecer no julgamento, bastando-se com a notificação da decisão ao defensor oficioso, não se garantido assim os direitos de defesa do arguido.
Ora, é manifesto que esta norma não foi de todo em todo aplicada ou melhor, recusada a sua aplicação na decisão recorrida. Não foi recusada nem o podia ter sido; embora o julgamento tenha sido marcado, certo é que ainda se não iniciou, pois, apenas se verificaram sucessivos adiamentos do mesmo, não havendo ainda qualquer decisão que devesse ser notificada ao arguido.
Nestes termos, não tendo sido recusada a aplicação da norma do artigo 566º, § 1º conjugada com a segunda parte do artigo 568º do C.P.P. de 1929, falta um dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, pelo que não pode conhecer-se da questão da sua conformidade à Lei Fundamental como objecto do presente recurso, que apenas abrangerá a norma do artigo 566º e parágrafo 1º, do mesmo Código.
4. – Vejamos, antes de mais, o teor da norma que vem questionada.
'Artigo 566º Se o réu estiver praticamente impossibilitado de comparecer na audiência de julgamento por idade, moléstia, ou por outra causa justificativa, como a de residir em lugar afastado do território português continental, insular ou ultramarino, poderá ser interrogado no domicílio ou dispensado de comparecer em julgamento, procedendo-se a este, como se estivesse presente, nos termos do §1º do artigo 418º, sem prejuízo, porém, de ulterior determinação sobre a sua comparência, se o tribunal a reputar necessária ao esclarecimento da verdade.
§1º Se a causa de não comparência do réu for de natureza temporária, adiar-se-á o julgamento pelo tempo reputado necessário, a requerimento do Ministério Público, do réu ou do assistente, ou oficiosamente em despacho fundamentado, e, decorridos dois meses, quando o processo for de querela ou correccional, ou um mês quando for outra a forma do processo, a contar do dia para esse julgamento designado e a que de novo tenha faltado, proceder-se-á ao julgamento à revelia no dia que for fixado, dentro dos quinze subsequentes ao decurso daqueles prazos, devendo o réu ser notificado para o julgamento com essa cominação.'
A norma cuja aplicação foi recusada na audiência de 8 de Julho de 1998 e acabada de transcrever permite que o arguido em processo penal seja julgado sem que esteja fisicamente presente na audiência (revelia imprópria), no caso de estar impossibilitado de comparecer por razão considerada justificada e decorridos certos prazos, no caso de a impossibilidade ser temporária.
Ora, a presença do arguido na audiência de julgamento é uma exigência do princípio das garantias de defesa que o processo criminal tem constitucionalmente de assegurar – artigo 32º, n.º1, da Constituição. De igual modo, tal presença é também imposta pelo princípio da imediação das provas, que
é uma exigência do processo criminal de um Estado de direito assente no respeito da dignidade da pessoa humana.
Assim, o Tribunal Constitucional não só já julgou inconstitucional uma norma de conteúdo idêntico à norma que vem questionada – o artigo 394º, nº3, do Código de Justiça Militar (Acórdão n.º394/89, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 13º V., II, pág.1087), como também já julgou inconstitucional, em outros arestos, a própria norma do CPP de 1929 (Acórdãos n.ºs 212/93 e 339/97, o primeiro publicado in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 24º V, pág.571 e o segundo no 'Diário da República', IIª Série, de 3 de Julho de 1997), em situação muito semelhante à dos próprios autos, isto
é, numa situação em que a norma impede que seja decretado um novo adiamento quando o arguido notificado da data do julgamento, e tendo manifestado a intenção de estar presente na audiência, venha a faltar na data marcada por estar impossibilitado de comparecer com motivo justificado.
E, se não se tivessem entretanto alterado os parâmetros de aferição da conformidade constitucional da norma em causa, bastaria, para a resolução do caso em apreço, a renovação dos argumentos já expendidos nos referidos acórdãos.
Porém, posteriormente à prolação destes acórdãos, mas antes da data em que foi proferida a decisão recorrida, entrou em vigor a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, que aprovou a quarta revisão constitucional.
Com esta alteração da Constituição, acrescentou-se o n.º6 do artigo 32º, que tem o seguinte teor:
'A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento'.
Esta norma constitucional resultou dos projectos do PSD e do PS, com a intenção de permitir a regulamentação pelo legislador ordinário dos chamados julgamentos á revelia, uma vez que a inexistência de uma norma constitucional como esta vinha-se revelando um factor de bloqueamento de uma justiça pronta, pelos sucessivos adiamentos das audiências de julgamento e de impedimento da aceleração das decisões dos tribunais.
A norma constitucional em questão dá claramente abertura
à realização de actos processuais, aí se incluindo expressamente o julgamento, sem a presença do arguido, desde que fiquem assegurados os seus direitos de defesa. Como refere o Procurador-Geral adjunto nas suas alegações, 'visou-se pôr termo ao inadmissível protelamento indefinido das audiências penais, obtido pelos arguidos à custa de sucessivas faltas, mesmo que justificadas'.
Assim sendo, a norma do artigo 566º e §1º do CPP de
1929, na medida em que permite a realização do julgamento sem a presença do arguido não é inconstitucional desde que fiquem garantidos os restantes direitos de defesa do arguido.
Aliás, mesmo quando se entendia que a ausência do arguido na audiência não era constitucionalmente aceitável, mesmo então já se aduziam situações em que a sua presença podia ser dispensada sem afectar o princípio geral: nos casos em que as infracções tinham fraca ressonância ética ou sanções leves, no caso de o arguido ter conveniência em não comparecer
(artigo 394º, n.º2 do Código de Processo Penal) ou a sua presença se torne impossível (artigos 332º, n.ºs 5 e 6, e 334º, n.º1 do mesmo Código) ou a sua presença seja um factor de perturbação (artigo 325º, nº4, do referido Código).
De qualquer modo, uma vez que a norma constitucional do n.º6 do artigo 32º condiciona a dispensa da presença do arguido ou acusado ao asseguramento das garantias de defesa, há que verificar se a norma cuja aplicação se recusou, caso venha a ser aplicada, não afecta desnecessária ou desproporcionadamente o direito-dever de o arguido ser ouvido e de assistir ao julgamento.
No caso em apreço, a norma do artigo 566º, no corpo do preceito, estabelece que o arguido, se estiver impossibilitado de comparecer na audiência, pode ser interrogado no seu domicílio ou, em alternativa, dispensado de comparecer. Porém, esta dispensa fica sujeita a que ulteriormente, se o tribunal assim o reputar necessário, determine de novo a sua comparência para o completo esclarecimento da verdade. Pelo seu lado, o § 1º do preceito prevê o adiamento da audiência pelo tempo considerado necessário para ultrapassar o impedimento de comparência, no caso de este ser de natureza temporária. Decorrido este prazo, se o arguido voltar a faltar ao julgamento entretanto marcado, a norma determina que se proceda, em quinze dias, ao julgamento à revelia do arguido decorridos os prazos fixados na lei, mas impondo que 'o réu seja notificado pessoalmente para o julgamento com aquela cominação' (julgamento
à revelia).
Ora, este regime, apenas relativo à notificação para julgamento, não afecta de forma relevante ou excessiva o núcleo essencial do direito de defesa.
Assim, tendo em atenção o que se dispõe no artigo 32º, n.º6, da Constituição da República Portuguesa, a norma questionada não é inconstitucional, pelo que deve o presente recurso proceder e a decisão recorrida ser revogada. III – DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao presente recurso, não julgando inconstitucional a norma do artigo
566º e § 1º do Código de Processo Penal de 1929 e, em consequência, determina-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Junho de 1999 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida