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Proc. nº 525/98 ACÓRDÃO Nº 429/99
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. M. foi condenada, por sentença do 2º Juízo Criminal do Tribunal de Matosinhos, como autora de um crime de emissão de cheque sem provisão previsto e punível nos termos do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de
28 de Dezembro, com referência ao artigo 218º, nº 1, do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão. Tendo o ofendido e lesado P. deduzido pedido cível no valor de 2.069.575$00, a arguida foi ainda condenada no pagamento de uma indemnização no valor do quantitativo titulado pelo cheque (1.700.000$00), acrescido de juros legais vencidos e vincendos até integral pagamento.
2. M. interpôs recurso da sentença condenatória para o Tribunal da Relação do Porto. Por acórdão de 24 de Setembro de 1997, o recurso da decisão criminal foi julgado procedente, sendo, consequentemente, a arguida absolvida da prática do crime de emissão de cheque sem provisão. O Tribunal da Relação do Porto negou, porém, provimento ao recurso da decisão cível, confirmando a condenação no pagamento da indemnização.
3. M. interpôs recurso do acórdão de 24 de Setembro de 1997 na parte que manteve a condenação no pagamento da indemnização para o Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso não foi admitido, por despacho de fls. 11. Para tanto considerou-se que das decisões do Tribunal da Relação proferidas em recurso da decisão do Tribunal Singular de 1ª instância, ainda que circunscritas ao pedido cível de valor superior à alçada do Tribunal da Relação, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 427º e 432º do Código de Processo Penal.
M. reclamou da decisão de não admissão do recurso, sustentando que a interpretação dos artigos 427º e 432º do Código de Processo Penal acolhida pela decisão reclamada, segundo a qual as decisões proferidas pelo tribunal criminal singular na parte estritamente cível só admitem recurso para o Tribunal da Relação, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade. A reclamante fundamentou tal entendimento nas seguintes razões: Se o processo corresse nos tribunais cíveis, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça seria possível, nos termos do artigo 678º do Código de Processo Civil; a subtracção da discussão da questão estritamente civil à competência dos tribunais cíveis ocorre apenas por vontade do lesado (artigos 71º e 72º do Código de Processo Penal), não podendo o arguido evitar o julgamento de tal questão no processo penal.
A reclamação foi desatendida, por decisão de 16 de Fevereiro de 1998. Nessa decisão considerou-se que o disposto no artigo 400º, nº 2, do Código de Processo Penal, não constitui excepção às regras dos artigos 427º e 432º do mesmo diploma, só tendo, nessa medida, aplicação quando, nos termos destas disposições, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça é admissível.
4. M. interpôs recurso de constitucionalidade ao abrigo dos artigos
280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas dos artigos 427º e 432º do Código de Processo Penal, tal como foram interpretadas e aplicadas pela decisão recorrida.
Junto do Tribunal Constitucional a recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1ª. A indemnização por perdas e danos emergentes de crime tem natureza civil e
é regulada pela lei civil, como dispõe o art. 129 do CP;
2ª. Os recursos penais circunscritos à parte indemnizatória são sempre admissíveis, havendo, tão só, que averiguar do cumprimento do critério da sucumbência. A menção que o nº 2 do art. 400 do CPP faz à 'alçada' convoca a certeza da clara referência ao processo civil, maxime ao art. 678 do CPC, pois, como é sabido, no foro criminal os tribunais não têm alçada;
3ª. O princípio constitucional da igualdade pode sintetizar-se na seguinte máxima: situações iguais devem ser juridicamente regulamentadas de modo igual e vice-versa;
4ª. A qualificação de situações como iguais demanda sempre um juízo valorativo da realidade, designadamente de ordem jurídica, e sempre em vista alcançar um determinado fim;
5ª. Estando em causa 'um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela «ratio» do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A «ratio» do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério.” - autora supra citada, ibidem, pg. 41; cfr. t.b., Augusto Cerri, 'L'eguaglianza nella giurisprudenza della corte costituzionale', Milão, 1976, pgs. 43 e 127 e Karl Engisch,
'Introdução ao Pensamento Jurídico', Gulbenkian, 1968, pg. 235;
6ª. Haverá violação do princípio da igualdade “quando o critério valorativo que permite a qualificação da igualdade das sítuações se não conexiona com o fim que se pretende atingir, ou ainda quando, havendo conexão, ela é manifestamente insuficiente ou desrazoável para atingir o fim em vista.” - autora supra citada, ibidem, pgs. 46 e 47;
7ª. A ratio subjacente aos arts. 400, nº 2, 427 e 432 do CPP é substancialmente igual à que se encontra na base do art. 678 do CPC. O fim precípuo dessas normas legais é o de impedir o acesso desmesurado à última instância de recurso, evitando que, desse modo, o Supremo Tribunal de Justiça tenha que conhecer questões de diminuta importância ou de reduzido valor;
8ª. A admissibilidade do recurso em matéria cível é aferida segundo o critério estatuído no art. 678 do CPC, pelo que, todos indivíduos que preencham os pressupostos integrativos desse critério estão objectivamente na mesma posição, devendo ser tratados de modo igual quando recorram ao Supremo Tribunal de Justiça;
9ª. Em consequência da anterior conclusão, não faz qualquer sentido estabelecer-se um critério diferente para os casos em que a questão civil é apreciada nos tribunais de competência criminal;
10ª. Por razões de paridade de tratamento e respeito pelo conteúdo do art. 13º da Constituição, sempre que o foro penal seja chamado apreciar a obrigação de indemnizar por via de acção cível enxertada, não pode a causa deixar de ser sindicada por via de recurso ordinário até ao Supremo Tribunal de Justiça;
11ª. Com a interpretação propugnada na decisão impugnada foram violados os arts. 427, 432 e 400, nº 2, do CPP, e, especialmente, o art. 13 da CRP.
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
1º - A norma resultante da conjugação dos artigos 400º, nº 2, 427º e 432º do Código de Processo Penal, na medida em que sujeita os recursos interpostos em processo de adesão à limitação, própria do processo penal, do duplo grau de jurisdição, não viola o princípio da igualdade nem qualquer outro preceito ou princípio da Lei Fundamental.
2º - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
6. A questão de constitucionalidade objecto do presente recurso consiste na apreciação da conformidade à Constituição das normas dos artigos
427º e 432º do Código de Processo Penal na medida em que consideram irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça a decisão do Tribunal da Relação que confirmou a sentença condenatória do tribunal singular em matéria estritamente civil, independentemente do valor da causa. A recorrente sustenta que tais normas violam o princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição), uma vez que de acordo com os critérios da lei processual civil o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça seria admissível, dado o valor da causa, se a acção corresse termos nos tribunais cíveis.
O Tribunal Constitucional já apreciou a questão de constitucionalidade normativa suscitada (cf., entre outros, o Acórdão nº 201/94
- D.R., II Série, de 20 de Maio de 1994).
No aresto citado, o Tribunal Constitucional entendeu que o princípio da adesão, não permitindo a confusão entre as pretensões subjacentes à acção cível e à acção penal, impõe, pela sua lógica, que o pedido cível siga a tramitação processual penal (que, em matéria de recursos, consagra o carácter unitário do recurso ordinário). Assim, o Tribunal Constitucional evidenciou a diferença existente entre o pedido de indemnização civil deduzido perante um tribunal cível de acordo com as regras da respectiva lei processual e um pedido de indemnização fundado na prática de um ilícito de natureza penal. Afirmando que o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, impõe tratamento igual a situações essencialmente iguais e tratamento desigual ao que
é substancialmente diferente, o Tribunal Constitucional concluiu que, por força do sistema de adesão, o pedido de indemnização derivado de responsabilidade civil conexa com a prática do acto ilícito penal tem de ser efectivado jurisdicionalmente de acordo com o regime do processo penal.
O Tribunal sublinhou ainda que a admissão de dois graus de recurso na questão cível, quando a matéria penal apenas admite um grau de recurso, consubstanciaria uma violação da ideia de congruência que se extrai do princípio do Estado de direito democrático.
Em consequência, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucionais as normas aplicadas, negando provimento ao recurso.
7. O Tribunal considera que, na sua essência, este entendimento se aplica ao caso sub judicio.
Com efeito, ao sistema de adesão subjazem razões de economia processual, de uniformização de julgados (ou, dito de outro modo, de coerência entre a decisão civil e a decisão penal) e de celeridade processual (cf., sobre esta matéria, Jorge Ribeiro de Faria, Indemnização por perdas e danos arbitrada em processo penal - o chamado processo de adesão, 1978, p. 117 e ss; germano marques da silva, Direito processual penal , I, 1993, p. 254). Mas a apreciação num mesmo processo - no processo penal - da questão criminal e da questão civil funda-se, essencialmente, na existência de uma conexão entre os dois ilícitos, resultante da unidade do facto simultaneamente gerador de responsabilidade civil e de responsabilidade penal (cf. Jorge Ribeiro de Faria, ob.cit., p. 59 e ss., e Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º vol., 1974, p. 540 e ss., onde se refere como razão de ser do sistema de adesão a “natureza tradicionalmente absorvente do facto que dá causa às duas acções”). É essa unidade que justifica um julgamento global do caso, fundamental para a coerência e racionalidade da decisão final.
Ora, o julgamento no processo penal do pedido de indemnização civil implicará a aplicação a este último das regras do processo penal quanto a recursos, exactamente para obter os resultados de coerência e celeridade processual referidos.
São alheias à lógica dos recursos em processo penal as regras de recurso do processo civil que se referem ao valor da acção. O facto de no processo penal prevalecer sobre a realização do interesse das partes uma dimensão, insusceptível de avaliação pecuniária, de reparação dos danos do crime, tanto no plano colectivo como no do ofendido, implica que a sujeição de uma causa ao processo penal, nomeadamente por opção do autor da queixa quanto ao pedido de indemnização civil (artigo 72º, nº 2, do Código de Processo Penal), tenha como consequência uma dimensão relativamente à qual não prevalece a afectação do sistema dos recursos pelo valor da alçada.
Esta dimensão distinta do objecto processual condiciona, consequentemente, os critérios do respectivo sistema de recursos. Porém, estes critérios não se encontram questionados em si mesmos neste processo, mas apenas na medida em que, quanto ao pedido de indemnização civil, não são adoptados os critérios do valor da alçada.
Assim, sob a pura perspectiva da igualdade, pela qual a recorrente pretende que seja apreciada a questão, não há, obviamente, qualquer tratamento diferenciado de situações idênticas. Com efeito, o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal é processualmente tratado de modo idêntico à causa penal e sujeito aos seus critérios processuais de recurso, justificados pela dignidade pública da justiça penal.
Nessa medida, não é legítima a pretendida identidade entre as duas situações, dado que existem razões justificadoras de um diferente tratamento, em razão do facto gerador de eventual responsabilidade civil ter natureza criminal.
8. A recorrente sustenta, por último, que se encontra limitada no exercício dos seus direitos de defesa, não se podendo opor à discussão da indemnização no foro penal [artigo 72º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal].
Mas não é procedente invocar uma limitação dos direitos de defesa decorrente de a acção cível seguir termos no processo penal, em que se encontram asseguradas, na máxima plenitude, por imposição constitucional, as garantias de defesa. O facto de o sistema de recursos no processo penal obedecer a outros critérios não diminui as garantias de defesa relativamente ao processo civil. A perspectiva da recorrente, a ser aceita, implicaria a conclusão, sem qualquer fundamento constitucional, de que o sistema de recursos no processo penal seria menos garantístico para a defesa do que no processo civil, apesar de funcionar num processo penal, globalmente, mais garantístico do que o processo civil.
Assim, também não é pertinente o argumento de que o arguido em processo penal não se pode opor à discussão da indemnização no foro penal
(artigo 72º, nº 2, do Código de Processo Penal), pois que a opção do ofendido pelo foro civil pressupõe a sua renúncia ao direito de queixa (artigo 72º, nº 2, do Código de Processo Penal), correspondendo apenas à possibilidade concedida ao ofendido de não ser impedido de obter reparação civil, no caso de não pretender suscitar a acção penal.
Qualquer direito do arguido de oposição à escolha do foro pelo ofendido significaria, necessariamente, neste sistema, uma limitação do próprio direito de queixa, cuja admissibilidade não é constitucionalmente imposta.
9. Conclui-se, assim, pela não inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 427º e 432º do Código de Processo Penal.
III Decisão
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucionais as normas contidas nos artigos 427º e 432º do Código de Processo Penal, tal como foram interpretadas e aplicadas pela decisão recorrida, negando provimento ao recurso e confirmando, consequentemente, o acórdão recorrido, de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 30 de Junho de 1999-07-05 Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida