Imprimir acórdão
Proc. nº 407/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, JP apresentou queixa contra JC, pela prática de crime de emissão de cheque sem provisão (fls. 2 e v.º), tendo sido contra este posteriormente formulada acusação pelo Ministério Público pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de dois crimes de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível pelos artigos 11º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, e com referência ao disposto nos artigos 26º e 217º e 218º do Código Penal 'ex vi' dos artigos
28º e 29º da Lei Uniforme relativa ao Cheque (fls. 20 e seguinte).
2. JC requereu a abertura da instrução (fls. 29 e seguintes), tendo JP requerido a sua constituição como assistente (fls. 50-51) e formulado contra o arguido e o Banco N pedido de indemnização cível (fls. 54 e seguintes). O mencionado requerimento de constituição como assistente foi deferido por despacho de fls. 75. Na decisão instrutória, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu não pronunciar o arguido (fls. 96 e seguintes).
3. O assistente JP, não se conformando com a 'decisão que indeferiu a arguição de nulidade dos actos de produção de prova de instrução e que decidiu não pronunciar o arguido', dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 102), tendo na respectiva motivação (fls. 103 e seguintes) apresentado, entre outras, as seguintes conclusões:
'I – Da nulidade dos actos de instrução
1– A produção de prova na presente instrução ocorreu à revelia do mandatário do assistente (e do arguido). O mandatário do assistente não foi notificado nem assistiu a quaisquer actos de produção de prova em sede de instrução, e que consistiram exclusivamente em inquirições e tomada de declarações anteriores ao debate instrutório.
[...]
5– O douto despacho recorrido que indeferiu a arguição da nulidade enferma de vários vícios e contradições, a saber:
[...] b) As eventuais dúvidas geradas pela letra da nova redacção do nº 2 do artº 289º do CPP dissipam-se com o confronto, por um lado, com as demais disposições normativas do mesmo código referentes à instrução (artºs 286º a 310º), nomeadamente os já invocados artºs 294º, 296º e 302º e, por outro lado, com o instituto do assistente, regulado nos arts. 68º a 70º, em particular o artº 69º nº 1 e nº 2 alínea a). [...]
[...]
6 – Os direitos das partes devem ser garantidos e este procedimento recorrido, não seguido, aliás, noutros Tribunais, é atentatório dos direitos, liberdades e garantias pessoais do arguido e do assistente lesado, e contrário ao interesse público, violando, para além das disposições do processo penal já invocadas, o disposto nos artigos 20º nº 1 e 32º nºs 1, 3, 5 e 7 da Constituição da República Portuguesa.
[...].'
Na sua resposta às motivações do recurso interposto (fls. 135-136), o representante do Ministério Público junto do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa pronunciou-se no sentido da confirmação da decisão recorrida, tendo sustentado que 'bem decidiu a Mmª Juiz a quo em julgar improcedente a nulidade invocada, nos precisos termos em que o fez, afigurando-se-nos correctos os pressupostos em que tal decisão assentou, porque muito claro é o artº 289º nº 2 do C.P.P.. Apresentando a fase instrutória um cariz algo inquisitório (na esteira da mais recente doutrina), apenas o debate instrutório tem natureza contraditória'. O arguido JC, na resposta às motivações do mesmo recurso (fls. 137 e seguintes), sustentou nomeadamente que:
'[...] a forma mais eficaz de assegurar a plenitude dos direitos do arguido e do assistente, na perspectiva da realização do debate instrutório e das finalidades da instrução, é a de admitir a presença dos respectivos mandatários nas diligências de prova. Tal é, de resto, a única ou pelo menos a melhor forma de compatibilizar a função do advogado com o seu ancestral estatuto vertido nas sucessivas leis que vigoraram e em vigor e no artº 208º da Constituição da República Portuguesa. Admitimos até que será de duvidosa constitucionalidade a norma inserta no artº
289º, nº 2 do C.P.Penal. Será tema que a Jurisprudência e a Doutrina porventura abordarão. [...].'
O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, no parecer de fls. 150 e seguintes, pronunciou-se no sentido da confirmação do despacho recorrido, tendo salientado que o artigo 289º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Penal é claro ao atribuir, em sede de instrução, natureza contraditória apenas ao respectivo debate. Responderam ao parecer do Ministério Público o arguido (fls. 155 e 156) e o recorrente (fls. 158-160).
4. Por acórdão de 3 de Maio de 2000 (fls. 162 e seguintes), o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, podendo ler-se no respectivo texto, para o que aqui releva, que:
'[...] A primeira questão que cumpre apreciar prende-se com a arguida nulidade dos actos de instrução que resultaria, segundo o recorrente, da ausência, por falta de notificação do assistente, para os actos levados a efeito durante a instrução. Sobre esta matéria cabe desde logo dizer que, ao contrário do que o recorrente entende, os actos de instrução não estão sujeitos ao princípio do contraditório. Na instrução apenas o debate instrutório é contraditório, uma vez que este se traduz numa «discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória» – cfr. artº 298º do C.P.Penal. Parece pertinente acrescentar que, ao contrário do que o recorrente alega, o
«instituto da Instrução» não é «herdeiro», nem muito menos «continuador», da instrução contraditória do C.P.Penal de 1929. Na realidade, para a «comprovação judicial» visada pela instrução (cfr. artº
286º), o legislador do C.P.P/87 estabeleceu a possibilidade de se realizar uma expedita «audiência preliminar» de algum modo semelhante à «preliminary examination», «preliminary hearing» ou «examination trial» do sistema anglo-americano. Atente-se que, logo em 1983, ao enunciar os contornos gerais da anunciada reforma global do processo penal (de que foi um dos principais artífices), o Prof. Figueiredo Dias referiu que, encerrado o inquérito, se deveria considerar a existência duma instrução nos seguintes moldes:
[...] Note-se que o MºPº, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado apenas podem participar nos casos em que tenham o direito de intervir, nos termos expressamente previstos (cfr. artº 289º, nº 2 do C.P.Penal na redacção introduzida pela Lei nº 59/98, de 25/08). A introdução deste nº 2 teve como objectivo acentuar a natureza e a finalidade da instrução, bem como evitar entraves ao regular andamento da instrução (cfr. Maia Gonçalves in C.P.P. anotado, 11ª ed. pág. 556). Do que acima se expôs, concluímos que a decisão instrutória não merece qualquer crítica quando julgou improcedente a arguida nulidade, não tendo sido violado o disposto nos artºs 68º a 70º e 286º a 310º do C.P.Penal, nem os artºs 20º nº 1 e
32º nºs 1 , 3, 5 e 7 da C.R.P.
[...].'
5. O assistente JP interpôs então, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, recurso para o Tribunal Constitucional do mencionado acórdão da Relação de Lisboa, pretendendo 'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 289º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que as diligências de instrução prévias ao debate instrutório, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, são realizadas sem a notificação e presença dos mandatários do assistente e do arguido, bem como do Magistrado do Ministério Público', por violação, nomeadamente, dos artigos 20º, n.º 1, e 32º, n.ºs 1, 3, 5 e 7 da Constituição (fls. 169). O recurso foi admitido por despacho de fls. 170.
6. Nas alegações apresentadas junto do Tribunal Constitucional (fls. 172 e seguintes), o recorrente concluiu do seguinte modo:
'– Com fundamento no nº 2 do artº 289º do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, decidindo que as diligências de produção de prova da Instrução, prévias ao debate instrutório, são realizadas sem a notificação e presença dos mandatários do assistente e do arguido, bem como do Magistrado do M.P., e a audição do arguido sem a notificação e presença do mandatário do assistente.
– O douto acórdão recorrido defende, aliás, que os mandatários do arguido e do assistente e o M.P. só têm direito a participar no debate instrutório, sendo completamente afastados de todas as demais diligências processuais da instrução, nomeadamente da produção de prova.
– Sem a participação dos mandatários na produção de prova, ainda que sem direito a instância dada a estrutura acusatória desta fase processual, não podem estes pronunciar-se sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos nesta fase processual, muito menos formular quaisquer sínteses e conclusões, para além de lhes ficar coarctada a possibilidade de juntarem os requerimentos e documentos que acharem pertinentes em face do desenrolar das diligências de prova, como prevê o artº 296º do Código de Processo Penal, tornando o debate instrutório numa diligência inútil, despropositada e sem sentido, que nada tem de debate e discussão sérias, contrária à finalidade prevista no artº 298º do mesmo código.
– E não existe qualquer diferença de substância entre o regime previsto no artº
294º, conjugado com o nº 2 do artº 271º do CPP, em que para as diligências de prova é obrigatória a notificação dos mandatários e a sua presença admitida, e as diligências dessa mesma prova realizadas na data normalmente designada, devendo estas considerar-se, para o caso, também como para memória futura e seguir o mesmo regime.
– O entendimento preconizado pelo Venerando Tribunal da Relação viola os direitos do arguido, do assistente e o interesse público, consignados no Código de Processo Penal, nos seus artºs 61º a 64º, nomeadamente no artº 61º nº 1 alínea f); 68º a 70º, em particular o 69º nº 1 e nº 2 alínea a); e 286º a 310º, com especial incidência o supra invocado 294º, conjugado com o 271º nº 2, e o
296º e 298º.
– Tendo a norma do artº 289º nº 2 do Código de Processo Penal sido interpretada e aplicada com aquele entendimento e alcance, mostra-se ela afectada de inconstitucionalidade material, por violação dos artºs 20º nº 1, 32º nºs 1, 3, 5 e 7, e 205º nº 1 da Constituição.' Nas contra-alegações (fls. 178 e seguintes), concluiu assim o Ministério Público:
'1 – Não padece de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20º e 32º, nº
5 da Constituição da República Portuguesa, a interpretação da norma constante do nº 2 do artigo 289º do Código de Processo Penal que se traduz em dispensar a participação do assistente em acto de inquirição, levado inquisitoriamente a cabo na fase de instrução, sendo-lhe facultada, no decurso do ulterior debate instrutório, plena oportunidade para aceder ao conteúdo integral das declarações prestadas, podendo questioná-las e requerer a produção de quaisquer provas indiciárias complementares que se revelem necessárias e pertinentes aos fins daquela fase do processo penal.
2 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
O recorrido JC não alegou (fls. 185).
II
7. Do requerimento de interposição do presente recurso (supra, 5.), resulta que o recorrente pretende que seja apreciada a compatibilidade constitucional da norma constante do n.º 2 do artigo 289º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que as diligências de instrução prévias ao debate instrutório, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, são realizadas sem a notificação e presença dos mandatários do assistente e do arguido, bem como do Magistrado do Ministério Público, à luz, nomeadamente, dos artigos 20º, n.º 1, e 32º, n.º s 1, 3, 5 e 7 da Constituição. Como é óbvio, a apreciação da compatibilidade da referida interpretação com certos preceitos do Código de Processo Penal não pode constituir objecto do presente recurso, que se limita a questões de constitucionalidade normativa. Assim sendo, é irrelevante a referência à violação de certos preceitos do Código de Processo Penal, constante do requerimento de interposição do recurso e das alegações que o recorrente produziu junto do Tribunal Constitucional: apenas a eventual violação de preceitos constitucionais pode ser agora considerada. Por outro lado, e tal como foi salientado pelo Ministério Público nas contra-alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, no caso dos autos é o assistente que questiona a compatibilidade constitucional da referida interpretação normativa. Deste modo, o objecto do presente recurso há-de ser reduzido à luz das regras sobre a legitimidade para recorrer, não podendo o recorrente questionar a admissibilidade da falta de notificação e presença do mandatário do arguido e do magistrado do Ministério Público. Dito de outro modo, apenas pode estar em causa no presente recurso, porque só para pedir a apreciação de tal questão o assistente tem legitimidade, a compatibilidade constitucional da norma constante do n.º 2 do artigo 289º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que as diligências de instrução prévias ao debate instrutório, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, são realizadas sem a notificação e presença do mandatário do assistente. Este, pois, o objecto possível do presente recurso. O que acaba de ser dito não significa que, como adiante se verá, a questão suscitada pelo recorrente não possa ser solucionada nos mesmos termos que uma outra já analisada pelo Tribunal Constitucional, mas cuja apreciação havia sido pedida pelo arguido.
8. É o seguinte o teor do n.º 2 do artigo 289º do Código de Processo Penal de 1987, na redacção emergente da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto
(transcrevendo-se também o n.º 1 do preceito, para melhor compreensão da questão suscitada pelo recorrente):
Artigo 289º Conteúdo da instrução
[1- A instrução é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes civis.]
2- Fora do caso previsto no número anterior, o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado apenas podem participar nos actos em que tenham o direito de intervir, nos termos expressamente previstos neste Código.
A questão colocada pelo recorrente tem, como se disse, contornos semelhantes a uma outra já apreciada pelo Tribunal Constitucional, mais precisamente pela sua
3ª Secção, no acórdão n.º 372/00 (publicado no Diário da República, II Série, nº
262, de 13 de Novembro de 2000, p. 18407 ss). O Tribunal Constitucional pronunciou-se então no sentido da não inconstitucionalidade, à luz do artigo 32º, n.º 5, da Constituição, do artigo
61º, n.º 1, alíneas a) e f), do Código de Processo Penal, com base numa argumentação que pode perfeitamente ser utilizada na decisão do objecto do presente recurso. Dispõe o mencionado artigo 61º, n.º 1, do Código de Processo Penal que: 'o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de: a) estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito; [...] f) intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias'. Disse o Tribunal Constitucional, a propósito dessa norma, no acórdão n.º 372/00:
'[...] Sustentam as recorrentes que as alíneas a) e f) do nº 1 do artigo 61º do Código de Processo Penal, quando interpretadas em termos de considerar que não conferem ao arguido e ao seu defensor o direito de estar presente e intervir nos actos de inquirição de testemunhas por si arroladas, a realizar na fase de instrução, que hajam sido delegados pelo juiz nos órgãos de polícia criminal, são inconstitucionais, designadamente por violação do princípio do contraditório consagrado no artigo 32º, nº 5, da Constituição. Vejamos. Acerca do conteúdo essencial do princípio do contraditório escreveu-se logo no parecer da Comissão Constitucional nº 18/81 (Pareceres da Comissão Constitucional, 17º vol., pp. 14 e ss.) e, mais tarde, em vários acórdãos deste Tribunal (cfr., designadamente os acórdãos nºs 434/87 e 172/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10º vol. pp. 502 e 503, 22º vol., p. 350 e 351, respectivamente) que ele está, «em que nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar». Já sobre a extensão processual do princípio do contraditório dispõe o nº 5 do artigo 32º da Constituição que a ele está subordinada a audiência de julgamento, bem como os actos instrutórios que a lei determinar. A Constituição remete assim para a lei ordinária a tarefa de concretização dos actos intrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do contraditório. A este propósito, escreveu-se no Acórdão nº 434/87 (já citado) «Na determinação dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do contraditório goza, assim, o legislador de grande liberdade. Ele só não pode esquecer que o arguido tem de ser sempre respeitado na sua dignidade de pessoa, o que implica ser tratado como sujeito do processo, e não como simples objecto da decisão judicial. Ou seja, tem sempre de ter presente que o processo criminal há-de ser a due process of law, a fair process, onde o arguido tenha efectiva possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o Ministério Público. É que, como adverte Eduardo Correia, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 114º, p. 365, o princípio do contraditório se traduz, ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido». Pois bem, em face do que antecede, a pergunta relevante é então a de saber se a interpretação normativa que a decisão recorrida fez das alíneas a) e f) do nº 1 do artigo 61º do Código de Processo Penal – considerando não ser obrigatória a presença do arguido e do seu defensor nos actos de inquirição de testemunhas por si arroladas, a realizar na fase de instrução, que hajam sido delegados pelo juiz nos órgãos de polícia criminal – obsta ou não a que o processo criminal se mantenha como um due process of law, a fair process (para utilizarmos as palavras do Acórdão nº 434/87), onde o arguido tenha efectiva possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o Ministério Público, num momento prévio a qualquer decisão que o possa afectar. Cremos, efectivamente, que não. Sublinhe-se, neste momento, que ao Tribunal Constitucional não compete decidir se estamos ou não em face de uma boa solução legislativa (solução que, aliás, já foi em parte alterada, uma vez que o artigo 290º, nº 2 do Código de Processo Penal proíbe hoje expressamente ao juiz de instrução a delegação nos órgãos de polícia criminal dos actos de inquirição de testemunhas) mas, apenas, decidir se essa solução legislativa está ou não de acordo com a Constituição e, no caso concreto, se se situa ou não ainda dentro dos limites impostos pelo contraditório. O núcleo essencial do princípio do contraditório, tal como vem sendo definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, não será, in casu, afectado, na medida em que ao arguido e ao seu defensor seja garantido o direito de, num momento prévio à decisão instrutória, se pronunciar e contraditar os depoimentos em causa.
É o que acontece. Na situação que agora é objecto dos autos, tal direito (ao contraditório), encontra-se efectivamente garantido no seu núcleo essencial, sendo apenas – como, bem, nota o Ministério Público – diferido o momento do seu exercício. Efectivamente, o respeito pelo contraditório é aqui garantido não apenas pelo facto de o arguido e o seu defensor poderem ter acesso integral aos depoimentos prestados, que são obrigatoriamente reduzidos a escrito, mas, fundamentalmente, pelo facto de, nos termos do artigo 302º, nº 2, do Código de Processo Penal, o defensor do arguido poder, no início do debate instrutório, contraditar o teor das declarações anteriormente prestadas pelas testemunhas ouvidas pela GNR, podendo inclusivamente requerer a produção de prova indiciária suplementar
(incluindo mesmo, se necessário, uma nova inquirição daquelas testemunhas) que considere pertinente.
[...].'
Embora no acórdão n.º 372/00 estivesse em causa a apreciação da conformidade constitucional, designadamente por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, do disposto nas alíneas a) e f) do nº 1 do artigo 61º do Código de Processo Penal, 'quando interpretadas em termos de considerar que não conferem ao arguido e ao seu defensor o direito de estar presente e intervir nos actos de inquirição de testemunhas por si arroladas, a realizar na fase de instrução, que hajam sido delegados pelo juiz nos órgãos de polícia criminal', e não, como sucede no presente recurso, a apreciação da compatibilidade constitucional da norma constante do n.º 2 do artigo 289º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que as diligências de instrução prévias ao debate instrutório, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, são realizadas sem a notificação e presença do mandatário do assistente, a questão analisada naquele acórdão e aquela que cumpre analisar no presente recurso são, como se disse, e resulta claramente do trecho do acórdão acima transcrito, substancialmente as mesmas.
E, acolhendo os argumentos expendidos naquele acórdão, também agora se entende que, na determinação dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do contraditório, goza o legislador de grande liberdade (tal como, aliás, decorre do próprio teor literal do artigo 32º, n.º
5, da Constituição da República Portuguesa, na parte em que determina que estão subordinados ao princípio do contraditório os actos instrutórios que a lei determinar) e que o respeito pelo contraditório é garantido não apenas pelo facto de o mandatário do assistente poder ter acesso integral aos depoimentos prestados, que são obrigatoriamente reduzidos a escrito, mas, fundamentalmente, pelo facto de, nos termos do artigo 302º, n.º 2, do Código de Processo Penal, esse mandatário poder, no início do debate instrutório, contraditar o teor das declarações anteriormente prestadas pelas testemunhas ouvidas durante a fase da instrução, podendo requerer a produção de prova indiciária suplementar
(incluindo mesmo, se necessário, uma nova inquirição daquelas testemunhas) que considere pertinente. Assim, nenhuma censura merece a interpretação normativa ora em causa, à luz do n.º 5 do artigo 32º da Constituição. O mesmo se diga em relação à alegada violação do n.º 7 do artigo 32º da Constituição ('O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei'), que atribui ao legislador grande liberdade na definição dos contornos da intervenção do ofendido, nomeadamente quanto ao momento dessa intervenção.
9. Relativamente à eventual violação dos n.º s 1 e 3 do artigo 32º da Constituição, considera-se que, tendo sido o presente recurso delimitado à luz das regras da legitimidade para recorrer – e ficado, por isso, cingido à questão da compatibilidade constitucional da norma constante do n.º 2 do artigo 289º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que as diligências de instrução prévias ao debate instrutório, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, são realizadas sem a notificação e presença do mandatário do assistente –, não faz qualquer sentido (tal como aliás, se salienta nas contra-alegações do Ministério Público), invocar aqueles preceitos, que apenas se referem ao arguido.
10. Em relação ao artigo 20º da Constituição, não se vê em que medida a interpretação normativa em apreço o pode afrontar. Que uma das dimensões desse preceito – a do direito ao contraditório – não foi afrontada, já se explicou; quanto às restantes dimensões, a questão suscitada em nada indicia que elas possam estar em causa.
11. Finalmente, quanto ao artigo 205º, n.º 1, da Constituição, em nada releva para a questão sub judice, que não respeita a um problema de fundamentação das decisões judiciais.
III
12. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 289º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual as diligências de instrução prévias ao debate instrutório, nomeadamente os depoimentos das testemunhas, são realizadas sem a notificação e presença do mandatário do assistente; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2001 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida (tendo votado vencido no Acórdão nº 372/00, votei igualmente vencido o presente acórdão, na medida em que, entendo que deve ser assegurado a presença do mandatário do arguido, tal implica a concomitante presença do mandatário do assistente). José Manuel Cardoso da Costa (vencido, acompanhando a declaração de voto do Exmº Conselheiro Vice-Presidente, Luís Nunes de Almeida)