Imprimir acórdão
Processo n.º 254/00 Plenário Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.O Provedor de Justiça veio, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 281º da Constituição da República Portuguesa e do n.º 3 do artigo 20º do seu Estatuto, requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 4º, n.ºs 2 e 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 263/98, de 19 de Agosto (que estabelece as condições de acesso e de exercício da profissão de motorista de táxi), e do n.º 2 da Portaria n.º 788/98, de 21 de Setembro (que estabelece normas relativas às condições de emissão do certificado de aptidão profissional de motoristas de veículos ligeiros de passageiros de transporte público de aluguer - táxis). As normas objecto do pedido dispõem o seguinte:
Decreto-Lei n.º 263/98, de 19 de Agosto:
“Artigo 4º Emissão do certificado de aptidão profissional
(...)
2 – Consideram-se não idóneas, durante um período de três anos após o cumprimento da pena, as pessoas que tenham sido condenadas em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, salvo reabilitação.
3 – Por portaria dos Ministros do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território e do Trabalho e da Solidariedade são estabelecidas normas relativas a outras condições de emissão do certificado de aptidão profissional e de homologação dos cursos de formação profissional, nomeadamente: a) Requisitos gerais de acesso ao certificado tais como a idade e a escolaridade.
(...)”
Portaria n.º 788/98, de 21 de Setembro:
“2º Requisitos gerais de acesso ao certificado de aptidão profissional O certificado de aptidão profissional de motorista de táxi pode ser obtido por candidatos que preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos gerais: a) Idade compreendida entre 18 e 65 anos; b) Escolaridade obrigatória; c) Domínio da língua portuguesa; d) Carta de condução (categoria B);” e) Em síntese, o Provedor de Justiça alegou o seguinte como fundamentação do pedido:
- Quanto às normas constantes do artigo 4º, n.º 2, o que a norma em análise faz é precisamente estipular em sentido contrário à Constituição, estabelecendo automaticamente uma consequência acessória à pena resultante da condenação por decisão judicial, atingindo desta feita o gozo de um direito fundamental, qual seja a liberdade de profissão.
- Será porventura razoável que a Administração, habilitada por lei, pondere no caso concreto a idoneidade moral e cívica de cada candidato que pretende exercer funções no âmbito da actividade de motorista de táxi, mas não é de todo admissível a previsão mecânica que a lei faz no normativo em foco, desencadeando os efeitos precisamente contrários aos que a Constituição pretende salvaguardar com o teor do n.º 4 do seu artigo 30º.
- No caso vertente faz-se corresponder à aplicação de uma pena de prisão com um mínimo de certa duração a privação do direito de exercício da profissão de motorista de táxi, sem que essa pena acessória tenha sido aplicada pela entidade judicial competente.
- A norma constante do n.º 2 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98, de 19 de Agosto, viola assim a regra com assento no artigo 30º, n.º 4, da Constituição, padecendo de inconstitucionalidade material.
- Quanto às normas constantes do artigo 4º, n.º 3, alínea a), estando o decreto-lei devidamente credenciado por habilitação parlamentar prévia, nenhuma dúvida geram as restrições que directamente prevê, designadamente as relacionadas com a exigência do certificado de aptidão profissional (artigo 2º, n.º 1).
- Contudo, o artigo 4º, n.º 3, do citado diploma estabelece a viabilidade de, por portaria dos Ministros do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território e do Trabalho e da Solidariedade, serem estabelecidas normas relativas a outras condições de emissão do certificado de aptidão profissional e de homologação dos cursos de formação profissional, a saber as elencadas nas suas várias alíneas.
- Ganha particular relevo o conteúdo da alínea a) do referido artigo 4º, n.º 3, onde se prevê a possibilidade de, por portaria dos membros do Governo citados, serem fixados os requisitos gerais de acesso ao certificado de aptidão profissional, exemplificando-se com a idade e a escolaridade exigidas.
- Esta norma em si é materialmente inconstitucional, ao pretender, contrariamente ao ordenado pela Constituição, autorizar a intromissão do poder regulamentar na emissão de normas primariamente restritivas de um direito, liberdade e garantia.
- Viola assim o artigo 4º, n.º 3, alínea a), a norma do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, na medida em que prevê a restrição de um direito, liberdade e garantia por uma norma regulamentar e não legislativa.
- Viola também a norma do artigo 165º, n.º 1, alínea b), na medida em que a competência primária para essa restrição pertence à Assembleia da República, que a pode, contudo, delegar no Governo, como aliás o fez para a aprovação do Decreto-Lei n.º 263/98.
- Por outro lado, inconstitucional materialmente que é a norma do artigo
4º, n.º 3, alínea a), por pretender deslegalizar o que não é deslegalizável, por violação das normas contidas no artigo 18º, n.º 2, 1.ª parte, e no artigo 165º, n.º 1, alínea b), são também inconstitucionais, formal e organicamente, as normas do n.º 2 da Portaria n.º 788/98, de 21 de Setembro.
- Esta portaria, baseada na norma legislativa aqui atacada, pretende estabelecer os requisitos para atribuição do certificado de aptidão profissional para o exercício da profissão de motorista de táxi. Tratando-se de restrição a um direito, liberdade e garantia, a forma própria é a legislativa, pertencendo essa competência em primeiro lugar à Assembleia da República ou, sendo caso disso, depois de autorizado, ao Governo, não através de um ou mais ministros mas do Conselho de Ministros (artigo 200º, n.º 1, alínea d), da Constituição). Conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 4º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 263/98, de 19 de Agosto (por violação do artigo 30º, n.º 4, da Constituição), no artigo 4º, n.º 3, alínea a), do mesmo Decreto-Lei
(por violação do artigo 18º, n.º 2, 1.ª parte, e do artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição) e no n.º 2 da Portaria n.º 788/98, de 21 de Setembro, (por violação dos mesmos artigos 18º, n.º 2, 1.ª parte, e 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição).
2.Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro veio pronunciar-se no sentido da não inconstitucionalidade das normas, invocando, designadamente, o seguinte:
- Quanto à norma constante do artigo 4º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 263/98, o seu conteúdo não preenche o conceito jurídico-constitucional de perda de direitos profissionais (os únicos que estão aqui em causa), nem tão-pouco se poderá considerar ofensivo do princípio fundamental supremo da dignidade da pessoa humana. O objectivo do Governo é, no caso, impedir que indivíduos com antecedentes criminais considerados graves possam ser titulares de um certificado de aptidão profissional que os colocará em contacto imediato com o público em geral.
- Também nada no preceito legal impugnado impede ou restringe o direito que assiste a todo o candidato que vê a sua pretensão preterida de recorrer aos tribunais no sentido de fazer valer as suas expectativas legítimas. Neste último caso, resulta óbvio, será um tribunal a decidir a questão.
- Não se vê bem como o normativo em causa possa violar o disposto no n.º 4 do artigo 30º da Constituição, que estabelece, genericamente, os limites das penas e das medidas de segurança. A finalidade do preceito constitucional, a sua
“teleologia intrínseca”, segundo a doutrina e jurisprudência constantes, é a de retirar às penas efeitos estigmatizantes, impossibilitadores da readaptação social do delinquente, e impedir, consequentemente, que se decrete a morte profissional do cidadão. Nada disso se encontra presente na norma arguida de inconstitucional.
- Não se trata de uma “pena acessória” à pena resultante de uma anterior condenação por decisão judicial, nem de uma “consequência” produzida ope legis por condenação a uma pena propriamente dita, circunstâncias essas que determinariam a violação do disposto no n.º 4 do artigo 30º da Constituição, nem tão-pouco a decretação da morte profissional do cidadão. Do que se trata é antes de dispor, de modo claro e inequívoco, como deve ser apanágio da lei, e de forma discriminada, os requisitos necessários, subjectivos e objectivos, do exercício de uma certa e dada profissão, que pelo interesse de que se reveste se encontra sujeita a um estatuto público.
- Não há aqui violação do gozo de nenhum direito fundamental, mas a sujeição de uma actividade a um estatuto público constitucionalmente necessário, exigível, adequado e proporcional a um fim que o legislador visa prosseguir.
- No caso da norma constante do artigo 4º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 263/98, não se verifica uma violação da Constituição no que concerne à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, em sede de direitos, liberdades e garantias (artigo 165º, n.º 1, alínea d)), porque existe autorização legislativa.
- Questão diversa, mas conexa, é a de o disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98 violar o preceituado no artigo 18º, n.º 2,
1ª parte, da Constituição. Quanto a este problema, deve dizer-se que os direitos, neste incluído o de escolha e exercício de profissão, não são reconhecidos de modo absoluto. São-no com o sentido objectivo e nos estritos limites em que vêm consignados na Constituição. E a Lei Fundamental é, nesta matéria, clara: “(t)odos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade” (artigo 47º, n.º 1).
- Neste caso, resulta óbvio que, a existir restrição, esta é fixada
(autorizada) directamente pela Constituição: salvas as restrições legais inerentes à sua própria capacidade. Com efeito, nem se trata aqui sequer de restrições legais impostas pelo interesse colectivo, mas pura e simplesmente de limitações inerentes à própria capacidade do candidato à obtenção de certificado de aptidão profissional.
- A idade e escolaridade mínima obrigatória para obtenção do certificado de aptidão profissional não pode ser vista, em caso algum, como uma restrição a direitos, liberdades e garantias constitucionalmente não autorizada para os efeitos do disposto na 1ª parte do n.º 2 do artigo 18º da Lei Fundamental. Do mesmo modo que o exercício da advocacia pressupõe, antes de mais, uma licenciatura em Direito e um tirocínio judiciário, sob fiscalização da própria Ordem, também aqui o acesso e exercício da profissão de motorista de táxi se encontra sujeito a limites objectivos que têm a ver com a fixação da idade e escolaridade legalmente exigidas”. Não ter em conta esta exigência, de nível constitucional (“limitações inerentes à própria capacidade”) e legal (idade e escolaridade legalmente exigidas) é proceder a uma interpretação incorrecta e desadequada do próprio texto constitucional.
- No caso das normas constantes do n.º 2 da Portaria n.º 788/98, de 21 de Setembro, não se trata, também, de uma qualquer restrição a um direito, liberdade e garantia, mas simplesmente da fixação dos requisitos gerais de acesso à emissão do certificado de aptidão profissional.
- Do exposto resulta que não parece curial nem credível falar aqui em processo de “deslegalização” ou de “degradação do grau hierárquico”. Nada no disposto no n.º 2 da Portaria n.º 788/98 nos permite concluir que a regulamentação aí contida foi para além do que já se encontrava determinado, concretizado e especificado no Decreto-Lei n.º 263/98, circunstância essa a
única que permitiria arguir o vício de inconstitucionalidade. Mais: o regime material e substantivo de concretização do direito em causa vem definido na norma legislativa autorizada e não no n.º 2 da Portaria n.º 788/98. Discutida e fixada a orientação deste Tribunal com base em memorando elaborado pelo Presidente, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, cumpre elaborar o correspondente acórdão.
II – Fundamentos
3.Importa começar por tratar de questões prévias que possam obstar, total ou parcialmente, ao conhecimento do pedido. Isto, desde logo, porque algumas das normas cuja apreciação vem pedida já se não encontram em vigor. Assim, o requerente suscitou a questão de saber se o artigo 4º, n.º 3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 263/98 contrariamente ao ordenado pela Constituição, autorizar a intromissão do poder regulamentar na emissão de normas restritivas de direitos, liberdades e garantias. É que a norma questionada remete para um acto regulamentar (no caso, uma portaria dos Ministros do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território e da Trabalho e da Solidariedade) a fixação de “outras condições de emissão do certificado de aptidão profissional e de homologação dos cursos de formação profissional, nomeadamente: a) Requisitos gerais de acesso ao certificado tais como a idade e a escolaridade”. Tal significaria, no entender do requerente, autorizar a intromissão do poder regulamentar na emissão de normas primariamente restritivas de um direito, liberdade e garantia, uma vez que está em causa a liberdade de profissão. Haverá, contudo, que ter em conta as alterações legislativas entretanto ocorridas, por via do Decreto-Lei n.º 298/2003, de 21 de Novembro. Este diploma, no uso da autorização legislativa conferida pela Lei n.º 20/2003, de 26 de Junho, veio alterar o regime de acesso e de exercício da profissão de motorista de táxi contido no Decreto-Lei n.º 263/98. Não obstante o objectivo central do Decreto-Lei n.º 298/2003 ter sido a adopção de medidas “transitórias” que “permitam obviar os efeitos negativos que alguma falta de disponibilidade de oferta formativa impliquem, por forma a que não se verifiquem quebras na oferta deste meio de transporte público, decorrentes da eventual falta de motoristas de táxi certificados” (2º parágrafo do preâmbulo), operou também diversas alterações ao regime e à sistemática do Decreto-Lei n.º
263/98 (v. artigos 1º e 2º do Decreto-Lei n.º 298/2003). Ora, uma das normas alteradas foi exactamente o artigo 4º do Decreto-Lei n.º
263/98, destacando-se, desde logo, a mudança da sua epígrafe: antes “Emissão do certificado de aptidão profissional” e agora “Requisitos de emissão do certificado de aptidão profissional e da autorização especial” (itálico aditado). E, em consonância com a nova epígrafe, verifica-se que o “novo” artigo 4º passou a regular directamente, tanto os requisitos gerais (n.º 1), como os requisitos especiais (n.º 3) do certificado de aptidão profissional, sem remeter, quanto aos primeiros, para acto regulamentar (designadamente, portaria). A norma originariamente contida na alínea a) do n.º 3 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98, cuja apreciação era objecto do presente pedido, deixou, assim, de vigorar na ordem jurídica, por força da nova redacção conferida ao mesmo artigo pelo Decreto-Lei n.º 298/2003.
4.O Provedor de Justiça requereu também que fosse declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 2 da Portaria n.º 788/98, por violação do artigo 165º, n.º1, alínea b), e do artigo 18º, n.º 2, 1.ª parte, da Constituição. A norma visada pelo requerente é a que decorre da redacção primitiva do n.º 2 da Portaria, e que estabelece os requisitos gerais de acesso ao certificado de aptidão profissional. Verifica-se, contudo, que a disposição em causa também foi revogada. Desde logo, foi revogada tacitamente pelo regime introduzido pelo Decreto-Lei n.º 298/2003, que passou a regular directamente, no seu artigo 4º, n.º 1, os referidos requisitos gerais de acesso ao certificado de aptidão profissional. E, posteriormente, foi revogada expressamente pela Portaria n.º 121/2004, de 3 de Fevereiro. O n.º 1 desta Portaria veio dar nova redacção ao n.º 2 da Portaria n.º 788/98, passando aí a regular-se uma matéria distinta da que era tratada originariamente (respeitante aos requisitos de acesso à autorização especial e sua validade).
5.Em face da revogação das normas referidas, constantes da alínea a) do n.º 3 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98 e do n.º 2 da Portaria n.º 788/98 (ambas na sua redacção primitiva), importa agora averiguar se se verifica uma inutilidade no conhecimento do mérito do pedido relativamente a estas normas revogadas, tendo em conta que o Tribunal Constitucional tem entendido que a revogação das normas não obsta a que se conheça de pedidos a elas relativos, desde que tal se mostre indispensável para corrigir ou eliminar efeitos entretanto produzidos por tais normas durante o período da sua vigência. Ora, nota-se, desde logo, que uma eventual declaração de inconstitucionalidade nunca iria pôr em causa as situações em que o certificado de aptidão profissional foi efectivamente emitido. Por outro lado, quanto aos restantes casos (de candidatos que eventualmente não tenham conseguido obter o certificado em questão, por não cumprirem os requisitos gerais de acesso), sempre os interessados terão ao seu dispor o instrumento processual da fiscalização concreta da constitucionalidade, como meio suficiente para impedir ou obviar à aplicação, no seu caso, do preceito questionado, não se tornando indispensável recorrer ao mecanismo da fiscalização abstracta para corrigir ou eliminar efeitos entretanto produzidos por tais normas, durante a sua vigência. Assim sendo, conclui-se que não deve conhecer-se do mérito do pedido quanto às normas contidas na alínea a) do n.º 3 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98 e no n.º 2 da Portaria n.º 788/98 (ambas na sua redacção originária), por falta de interesse jurídico relevante.
6.Importa, pois, passar a analisar a questão da inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98. Neste ponto, a questão relevante para efeitos de apreciação de constitucionalidade consiste em determinar se o artigo 4º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 263/98, viola o artigo 30º, n.º 4, da Constituição, que estabelece:
Artigo 30º Limites das penas e das medidas de segurança
“(...)
4. Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos.” Como resulta da sua epígrafe, o artigo 30º da Constituição refere-se genericamente aos limites das penas e das medidas de segurança. O seu n.º 4 proíbe que da aplicação de uma pena resulte automaticamente, de forma meramente mecânica, uma outra pena, sem que haja uma intervenção judicial. Pretende-se proibir que à pena a aplicar pelos tribunais acresça, ope legis, uma nova pena.
É esta a interpretação de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 198) que explicitam ainda o seguinte:
“Embora o n.º 4 se refira apenas à proibição de efeitos necessários das penas, a proibição estende-se também por identidade de razão aos efeitos automáticos ligados à condenação pela prática de certos crimes, pois não se vê razão para distinguir.”
(defendendo, em sentido inverso, que o n.º 4 do artigo 30º proíbe apenas que o legislador faça corresponder, de forma automática, certos efeitos a certas espécies de penas, e não já que faça corresponder à condenação pela prática de certos crimes esses efeitos automáticos, cfr. Mário Torres, “Suspensão e demissão de funcionários ou agentes como efeito de pronúncia ou condenação criminais”, Revista do Ministério Público, Ano 7º, n.º 25, 1986, págs. 111 e segs., e n.º 26, 1986, págs. 161 e segs.). O n.º 4 do artigo 30º da Constituição foi introduzido na revisão constitucional de 1982, pretendendo-se com este novo número acolher o entendimento de política criminal constante do então recente Código Penal de 1982 (artigo 65º), que impõe que se retire às penas o seu efeito estigmatizante, para isso determinando que
“nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”. Acolhe-se, assim, como princípio jurídico-constitucional, o princípio político-criminal de luta contra o efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno das penas (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Lisboa, 1993, pág. 159). Este princípio encontrava-se já vertido no artigo 76º
(77º após a revisão ministerial) do “Projecto de Código Penal de 1963” de que fora autor Eduardo Correia (separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º
157). Sobre as disposições aprovadas em 1982 escreveria depois o autor (Eduardo Correia, “O novo Código Penal Português e Legislação Complementar”, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, Centro de Estudos Judiciários, pág. 29):
“O Código, aliás em consonância com a Constituição, fez desaparecer o efeito infamante das penas, não considerando seu efeito automático a perda de direitos civis, políticos e profissionais (artigo 65º). Temos, assim, que todo o labéu, todo o estigma jurídico, se dilui, ficando apenas a possibilidade autónoma ou paralela de cominar penas acessórias.” Inspirando-se no anteprojecto de Eduardo Correia, Jorge Miranda propusera a consagração deste princípio no projecto de Constituição que apresentara em 1975, e insistiu nele, com sucesso, a propósito de Um Projecto de Revisão Constitucional (Coimbra, 1980, pág. 35). Aí escreveu:
“O novo n.º 4 tem por fonte o artigo 76º do anteprojecto de parte geral do Código penal, de autoria de Eduardo Correia. Já constava do meu projecto de Constituição de 1975.” Figueiredo Dias explica que a consagração desta medida no Código Penal de 1982 revelou “o apego do legislador penal à convicção básica de que importa retirar
às penas todo e qualquer efeito infamante ou estigmatizante que acresça ao
(inevitável) mal da pena”. E que “assim se dá expressão legal ao indeclinável dever do Estado de não prejudicar, mas pelo contrário favorecer, a socialização do condenado” (p. 158). Com a sua consagração constitucional na revisão de 1982
“se patenteia o alto grau em que o nosso legislador constitucional prezou princípios político-criminais fundamentais, elevando-os, qua tale, à categoria de princípios integrantes da «Constituição político-criminal»” (p. 160; na mesma linha, o autor refere a questão em “Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro”, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 43,
1983, pág. 36). No Diário da Assembleia da República (1.ª série, de 11 de Junho 1982, págs. 4176 e segs.) encontram-se reflectidas as considerações que foram tecidas a propósito da introdução deste n.º 4 pela 1.ª revisão constitucional. Disse então a este propósito o Deputado A.:
“A aprovação do n.º 4 vem obviar (a) algumas disposições ainda hoje vigentes na nossa lei penal, de extraordinária violência, como eram as que envolviam, como efeito necessário de certas penas, a perca de alguns direitos. Designadamente, lembro o caso de certas infracções criminais cometidas por funcionários públicos
(...) que envolviam necessariamente e como efeito acessório a demissão.”
7.Este Tribunal pronunciou-se já, em várias ocasiões, sobre o sentido e alcance do artigo 30º, n.º 4, da Constituição. Assim, merece destaque, desde logo, o Acórdão n.º 16/84 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional [ATC], vol. 2º, pág. 367), no qual se afirmou:
“[A Constituição] partindo da dignidade da pessoa humana, princípio estrutural da República Portuguesa (artigo 1º), intentou, através do n.º 4 do seu artigo
30º, retirar às penas todo o carácter infamante e evitar que a atribuição de efeitos automáticos estigmatizantes perturbe a readaptação social do delinquente). No fundo, o n.º 4 do artigo 30º da Constituição deriva, em linha recta, dos primordiais princípios definidores da actuação do Estado de Direito democrático que estruturam a nossa Lei Fundamental, ou sejam: os princípios do respeito pela dignidade humana (artigo 1º) e os de respeito e garantia dos direitos fundamentais (artigo 2º). Daí decorrem os grandes princípios constitucionais de política criminal: o princípio da culpa; o princípio da necessidade da pena ou das medidas de segurança; o princípio da legalidade e o da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal; o princípio da humanidade; e o princípio da igualdade. Ora, se da aplicação da pena resultasse, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, far-se-ia tábua rasa daqueles princípios.” No Acórdão n.º 127/84 (publicado em ATC, vol. 4º, págs. 403 e segs.), por sua vez, escreveu-se o seguinte:
“Compreende-se tal solução constitucional. Ela não é mais do que um corolário do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º) nas suas implicações no
âmbito da «constituição penal». Com efeito, a perda de direitos civis, profissionais e políticos traduz-se materialmente numa verdadeira pena, que não pode deixar de estar sujeita, na sua aplicação, às regras próprias do Estado de direito democrático, designadamente: reserva judicial, princípio da culpa, princípio da necessidade e proporcionalidade das penas, etc.” E, na mesma linha, no Acórdão n.º 284/89 (publicado em ATC, vol. 13º, tomo II, págs. 859 e segs.), este Tribunal entendeu que o n.º 4 do artigo 30º da Constituição proibia “que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo inafastáveis de uma lei fundamental como a Constituição da República Portuguesa que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana”. Por sua vez, no Acórdão n.º 461/00 (publicado em ATC, vol. 48º, págs. 327 e segs.) concluiu-se sobre a proibição de penas automáticas:
“A sua justificação é simultaneamente a de obviar a um efeito estigmatizante das sanções penais e a de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade das penas, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação da gravidade do ilícito à da culpa, afastando-se a possibilidade de penas fixas ou ex lege.” Ora, como resulta da análise das normas em questão, é esta ponderação que não existe no caso vertente. Efectivamente, da conjugação do teor do artigo 4º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º
263/98 com o seu n.º 1 resulta que o certificado de aptidão profissional de motorista de táxi, cuja posse, nos termos do artigo 2º, é obrigatória para o exercício da profissão, não poderá ser emitido a quem não preencha o requisito de idoneidade. Considerando-se não idóneas, nos termos do n.º 2 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98, durante um período de 3 anos após o cumprimento da pena, as pessoas que tenham sido condenadas em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, salvo reabilitação, sempre resultará que todas as pessoas que tenham sofrido tal condenação, sem haverem sido entretanto reabilitadas, não poderão exercer, durante aquele período, a profissão de motorista de táxi, por não lhes ser emitido o necessário certificado. Importa, porém, analisar ainda, com mais detalhe, a proibição constitucional dos efeitos automáticos das penas, na dimensão específica da perda de direitos profissionais, uma vez que a norma constante do n.º 2 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98 suscita esta exacta problemática.
8.Efectivamente, o Tribunal Constitucional teve também já ocasião de apreciar a inconstitucionalidade de normas por violação do n.º 4 do artigo 30º da Constituição, na dimensão acima referida, relativa à perda de direitos profissionais. Desde logo, no Acórdão n.º 16/84 o Tribunal julgou inconstitucional o n.º 1 do artigo 37º do Código de Justiça Militar, que impunha a pena de demissão dos militares como efeito da condenação por certos crimes, efeito que foi considerado automático pelo Tribunal. Por seu turno, o Acórdão n.º 310/85
(publicado em ATC, vol. 6º, págs. 555 e segs.) também julgou inconstitucional esta norma, afirmando:
“Do contexto sistemático do Código de Justiça Militar resulta claro que a demissão de que se fala no artigo 37º (...) não é uma pena a que o réu seja condenado, mas uma consequência, produzida ope legis pela condenação a uma pena propriamente dita. “ Na sequência destes dois arestos, bem como dos Acórdãos n.º 127/84 (in Diário da República [DR], II série, de 12 de Março de 1985) e n.º 94/86 (in DR, II série, n.º 137, de 18 de Junho de 1986), o Tribunal Constitucional veio declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo
37º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, que impunha a demissão do oficial ou sargento dos quadros permanentes, ou de praças em situação equivalente, como efeito da respectiva condenação pelos crimes aí referidos, privando o militar, automaticamente e independentemente de condenação específica, do seu lugar no respectivo quadro, do seu título profissional e, bem assim, do direito a quaisquer recompensas e pensões (Acórdão n.º 165/86, publicado em ATC, vol. 7º, tomo I, págs. 231 e segs.). Contudo, não foi a demissão a única figura a preencher, até ao momento, o conceito de perda de direitos profissionais, na jurisprudência constitucional portuguesa. Assim, o Acórdão n.º 91/84 (ATC, 4º vol., págs. 7 e segs.), entre o mais, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 30º, n.º 4, da Constituição, da norma do artigo 8º do decreto da assembleia regional n.º 18/84, na parte em que previa as medidas de encerramento de estabelecimentos e de proibição do exercício da actividade industrial de bordados, como efeito necessário da condenação pelo descaminho de direitos nele previstos. Por sua vez, no Acórdão n.º 282/86 (publicado em ATC, vol. 8º, págs. 207 e segs.) o Tribunal declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 160º, § único, e 130º, § único, do Código da Contribuição Industrial, que estabeleciam, como efeito automático da aplicação de certas sanções disciplinares, o cancelamento da inscrição dos técnicos de contas, o que os impedia de desenvolverem a sua actividade profissional, entendendo que previam a perda de um direito. O Acórdão n.º 255/87 (in ATC, vol. 9º, págs. 805 e segs.) veio julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 37º do Código de Justiça Militar, que estatuía que a condenação pelos crimes mencionados no n.º 1 do mesmo artigo acarretava a baixa de posto. E, muito recentemente, o Acórdão n.º 562/03 (acessível em
www.tribunalconstitucional.pt), estando em causa uma norma do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana que estabelece como condição especial de promoção ao posto de cabo, por diuturnidade, não ter o militar sido punido na Guarda com o somatório de penas superiores a vinte dias de detenção ou equivalente, acrescentou:
“(...) onde esteja previsto um direito à promoção – progressão na carreira – ele se há-de configurar como um direito profissional. Ora, no caso dos autos, estamos perante uma promoção, por diuturnidade, que, consistindo no acesso ao posto imediato, independentemente da existência de vaga e desde que satisfeitas as condições de promoção, não só se pode considerar estruturada como um direito (profissional), mas também, e sobretudo, que não pode configurar-se como um eventual prémio ou recompensa.”
9.Quanto à norma presentemente em análise – o artigo 4º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 263/98 –, estabelece que as pessoas que tenham sido condenadas em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, sem haverem sido entretanto reabilitadas, não poderão exercer a profissão de motorista de táxi, durante o período de três anos após o cumprimento da pena, por não lhes ser emitido o necessário certificado. Resulta, desta forma, da previsão da norma em questão, numa leitura articulada, designadamente, com o artigo 2º e com o n.º 1 do artigo 4º, um efeito que decorre automaticamente da condenação em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, e que consiste em que, salvo reabilitação, todos os que sejam condenados nessa pena fiquem, por três anos, impedidos de exercer a actividade de motorista de táxi, assim os impossibilitando, temporariamente, do gozo dos direitos de escolha e exercício de profissão (artigo 47º da Constituição). Na verdade, a liberdade de escolha de profissão prevista no artigo 47º da Constituição, vem sendo entendida numa dupla vertente, englobando quer a liberdade de escolha de profissão, quer a liberdade do seu exercício (v., por exemplo, o Acórdão n.º 187/2001, in ATC, vol. 50º, págs. 42 e segs.). Aliás, a doutrina defendia já esta ideia, mesmo antes da Constituição de 1976 (v.g. Afonso Rodrigues Queiró e Barbosa de Melo, “A liberdade de empresa e a Constituição”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, XIV, 1967, págs. 216 e segs.). Sobre a liberdade de escolha de profissão, na sua dupla vertente, veja-se Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2.ª edição, Coimbra, 1993, págs. 438 e segs., e “Liberdade de trabalho e profissão”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXX, n.º 2, Abril-Junho 1988, págs. 153, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3.ª edição, Coimbra, 1993, págs. 261 e 262, e, ainda, deste último autor, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, pág. 468. Refira-se ainda que os direitos de escolha e exercício de profissão integram o elenco de exemplos de direitos profissionais apresentados por Gomes Canotilho e Vital Moreira quando interpretam o segmento do artigo 30º, n.º 4, da Constituição que menciona os “direitos civis, profissionais e políticos”
(Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pág. 198). Note-se, ainda, que se trata aqui de direitos – de escolha e de exercício de uma profissão – de que os afectados pela norma em questão são já titulares anteriormente à imposição da pena em causa, não surgindo essa norma no processo relativo ao seu reconhecimento. A situação é, pois, diversa da que estava em causa no Acórdão n.º 461/00 (publicado em ATC, vol. 48º, págs. 327 e segs.), que analisou a conformidade constitucional da caducidade da carta ou licença de condução provisórias no caso de condenação na pena de proibição de conduzir ou na sanção de inibição de conduzir, pois aqui a licença estava dependente de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico, acrescendo que, durante o período experimental e de licenciamento provisório, o condutor deveria confirmar as condições pessoais adequadas para lhe ser conferida uma licença de condução definitiva (estaria sujeito a “uma espécie de período probatório”). Assim, não pode deixar de concluir-se que a norma em apreciação no presente caso, ao impedir quem tenha sido condenado em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, salvo reabilitação, de exercer a actividade de motorista de táxi, tem durante esse período de tempo como efeito a perda das liberdades de escolher e de exercer esta profissão de motorista de táxi, ou seja, a perda de um direito profissional, quer a pessoa em questão já tivesse antes exercido essa profissão, quer pretendesse a ela aceder – e isto, independentemente da questão de saber se, em geral, podem ser consideradas como verdadeiras restrições à liberdade de escolha e de exercício de profissão, ou, mais especificamente, como
“perda de direitos profissionais”, para efeitos do artigo 30º, n.º 4, da Constituição da República, todas as exigências relativas à possibilidade de acesso a uma profissão que é objecto de regulamentação pelo Estado, que resultem de anteriores condenações.
10.Apurado que o efeito da norma em causa é, no tocante às consequências sobre a possibilidade de exercer a actividade de motorista de táxi, o da perda de um direito profissional, durante o período de tempo em causa, e como consequência de uma condenação penal, resta, agora, saber se essa consequência, prevista no artigo 4º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 263/98, deve ser tida como um efeito automático interdito pelo artigo 30º, n.º 4, da Constituição. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a eleger como critério para a aplicação desta norma constitucional a possibilidade de existência, segundo a previsão legal, de juízos de valoração ou ponderação que podem vir a afastar a automaticidade dos efeitos das penas. Ora, verificar-se-á, no caso em análise, uma mera “valoração de uma pena” nas condições concretas de obtenção do certificado de aptidão profissional para o exercício da profissão de motorista de táxi? Fundamental para compreensão do que está em causa no caso em apreciação é o referido no Acórdão n.º 522/95 (publicado em ATC, vol. 32º, págs. 345 e segs.) que não julgou inconstitucional a norma do artigo 65º, n.º 3, do Regulamento dos Serviços do Registo e do Notariado, no segmento que se reporta à prestação de informações sobre o cadastro disciplinar dos concorrentes no âmbito de concurso documental para os lugares de conservador e notário. O Tribunal entendeu nesse aresto que esta situação não era susceptível de ser subsumida na regra constitucional relativa aos limites das penas e das medidas de segurança, nomeadamente aos efeitos necessários delas decorrentes. Isto porque, como se disse:
“[A norma em análise] apenas prescreve que a Direcção-Geral há-de submeter a despacho ministerial a relação dos requerentes acompanhada de «informações sobre a classificação, antiguidade e cadastro disciplinar dos concorrentes» e não dispõe já sobre uma qualquer consequência automática (ope legis) a extrair, independentemente de decisão judicial, de penas disciplinares que porventura tenham sido aplicadas aos interessados, caso em que, por certo, afrontaria a regra constitucional.” E, realçando a necessidade de se entender existir uma valoração acerca do cadastro disciplinar, para se poder afastar o julgamento de inconstitucionalidade, disse-se ainda:
«A junção do cadastro disciplinar dos concorrentes é imprescindível como diligência instrutória, não certamente a fim de se extrair automaticamente da eventual aplicação de penas disciplinares quaisquer consequências sobre a ordenação de participantes no concurso, mas como simples meio de “informação” sobre quaisquer circunstâncias que tenham servido de suporte a essa eventual aplicação de penas disciplinares e que apresentem relevância no quadro factual a considerar no âmbito do concurso. Nenhum impedimento, lógico ou jurídico, há, por isso, a que os factos materiais que integram uma infracção disciplinar (a falta de zelo, de assiduidade ou o incumprimento de qualquer outro dever geral ou especial da função), considerados em si mesmos, e independentemente da sanção disciplinar a que deram lugar, produzam outros efeitos jurídicos em enquadramentos normativos diverso» Também, aliás, no já referido Acórdão n.º 363/91 (publicado em ATC, vol. 19º, págs. 79 e segs.) se considerou o seguinte:
«[A cessação da situação de objector de consciência não é] encarada pelo decreto em apreciação como consequência ou efeito automático de uma condenação pela prática de certo crime, pressupondo antes uma comprovação administrativa, de forma individualizada, de certos comportamentos que, se existentes e conhecidos na fase administrativa da concessão do estatuto de objector de consciência, implicariam uma decisão negativa ou de recusa de atribuição desse estatuto”, uma vez que se “vier a ser condenado por certo crime violento, por exemplo o de homicídio doloso, fica comprovada, de forma insofismável, a ausência ou a não subsistência da convicção manifestada de ilegitimidade do uso de meios violentos de qualquer natureza contra o seu semelhante.» Diversamente, porém, na situação em apreço, o n.º 2 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98 impede, por um período de 3 anos, o acesso à profissão de motorista de táxi, ao proibir, na sequência de uma condenação em pena de prisão superior a
3 anos e sem qualquer ponderação no caso concreto, que a pessoa em causa possa ser considerada idónea, pelo que automaticamente lhe ficará vedada a obtenção do certificado de aptidão profissional, obstando ao acesso à profissão. Não se vê, pois, no caso em análise, onde possa estar a “valoração de uma pena” como requisito para a emissão do certificado de aptidão profissional: não existe previsão de qualquer decisão, sequer administrativa, de apreciação da idoneidade do candidato, funcionando a norma do artigo 4º. n.º 2, do Decreto-Lei n.º 263/98 como um efeito automático de uma pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos anteriormente aplicada. O que está em causa é, assim, a imposição, pela lei, da impossibilidade temporária do exercício de um direito profissional, prevendo-se uma
“consequência automática (ope legis) a extrair, independentemente de decisão judicial, de penas” aplicadas aos interessados, caso em que, como refere o Acórdão n.º 522/95, a norma “por certo, afronta[ria] a regra constitucional”.
11.Conclui-se, assim, que a norma constante do artigo 4º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 263/98, ao determinar que se considerem “não idóneas, durante um período de três anos após o cumprimento da pena, as pessoas que tenham sido condenadas em pena de prisão efectiva igual ou superior a 3 anos, salvo reabilitação”, tem como consequência, automaticamente, sem qualquer mediação ponderadora numa condenação judicial ou numa decisão administrativa concreta, a impossibilidade temporária do exercício de um direito profissional (o direito de escolha de profissão e consequente exercício), ficando essas pessoas, ope legis, impedidas de exercer a profissão de motorista de táxi. Pelo que deve considerar-se essa norma materialmente inconstitucional por violação do n.º 4 do artigo 30º da Constituição.
III Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas contidas na alínea a) do n.º 3 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98, de
19 de Agosto, e no n.º 2 da Portaria n.º 788/98, de 21 de Setembro (ambas na sua redacção originária); b) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 263/98, de 19 de Agosto, por violação do n.º 4 do artigo 30º da Constituição.
Lisboa, 16 de Março de 2004 Paulo Mota Pinto Maria Helena Brito Benjamim Rodrigues Vítor Gomes Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida quanto à al. b) da decisão, no essencial, pelos motivos constantes da declaração junta pelo senhor Conselheiro Bravo Serra). Carlos Pamplona de Oliveira – vencido quanto à alínea b) da decisão por entender que a norma não viola o nº 4 do artigo 30º da Constituição, pois visa – com respeito pelo princípio da proporcionalidade a estabelecer um mero requisito ao exercício desta profissão. Bravo Serra (vencido, quanto à alínea b) da decisão, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida
DECLARAÇÃO DE VOTO
Tendo dissentido do juízo que conduziu à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do nº 2 do artº 4º do Decreto-Lei nº 263/98, de 19 de Agosto, cumpre-me explicitar, muito em síntese, as razões da minha dissidência.
O acórdão de que esta declaração faz parte integrante efectuou tal juízo por ter entendido que a proibição de acesso à profissão de motorista de táxi ditada pela norma analisada operava automaticamente, isto é, implicava que a autoridade administrativa competente para a emissão do certificado de aptidão profissional o não emitisse caso o candidato tivesse, anteriormente, sido alvo de uma condenação em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, salvo reabilitação.
Entendo, todavia, que é possível ler o preceito em que tal normativo se incorpora como estatuindo ele que a circunstância de o candidato à emissão de certificado de aptidão profissional para o exercício da profissão de motorista de táxi ter sofrido uma pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos constitui tão somente um indício de que o mesmo não possui a idoneidade necessária para tal emissão.
Esta leitura, que, na minha óptica, se não apresenta como forçada e não ultrapassa os cânones da interpretação da lei consentidos pelo artº 9º do Código Civil, vai, desde logo, afastar a característica da automaticidade de um efeito da pena sofrida pelo candidato que o acórdão vislumbrou na norma em apreço.
É que, na interpretação que defendo, é possível ao candidato, ainda que a autoridade administrativa, tendo em conta o indício de inidoneidade resultante do cumprimento de pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, não emita o certificado de aptidão profissional, solicitar a revogação ou modificação do acto administrativo consubstanciador da não emissão, fazendo demonstração de que possui idoneidade e, na hipótese de não ter atendimento a sua pretensão, impugna-a hierárquica ou contenciosamente.
Nesta postura interpretativa, não se me antolha a norma
ínsita no nº 2 do artº 4º do Decreto-Lei nº 263/98 como constitucionalmente insolvente.
Bravo Serra