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Proc. nº. 405/97
1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida em 5 de Maio de 1997 pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa que julgou extinto o procedimento instaurado pelo Banco de Portugal - no âmbito do qual aplicou uma pena de inibição do exercício de cargos em instituições de crédito e financeiras a C..., respectivamente de 24 e 12 meses, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos - ordenando o arquivamento dos autos após o respectivo trânsito em julgado.
Na decisão ora em crise, a Mmª. Juíza recusou a aplicação do nº. 4 do artigo 3º do Decreto-Lei nº. 298/92, de 31.12, por entender que tal norma – ao permitir, por um lado, a aplicação de um regime transgressional por tal diploma revogado, a factos praticados antes da sua entrada em vigor, e, por outro, a aplicação do seu regime sancionatório contra-ordenacional aos mesmos factos – é materialmente inconstitucional face ao disposto no artigo 29º, nºs.
1, 3 e 4 da Constituição.
O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para este Tribunal
'nos termos dos artºs. 69º, 70º, 72º, nº. 1, al. a) e nº. 3, da Lei nº. 28/82, de 15/11, com as alterações introduzidas pela Lei nº. 85/89, de 7/9'.
O Exmº. Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal, apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
'O artigo 3º, nº. 4, do Decreto-lei nº.298/92, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, ao fixar uma norma transitória fazendo aplicar o novo regime a factos praticados antes da sua entrada em vigor e já puníveis nos termos da legislação anterior revogada, ressalvando, porém, a aplicação da lei antiga se esta se mostrar mais favorável ao agente, não viola o disposto no artigo 29º, nºs. 1, 3 e4, da Constituição da República Portuguesa'.
Inconformado com a decisão, o Banco de Portugal dela interpôs igualmente recurso ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea a) da Lei nº. 28/82, de 15.11, tendo concluído a sua alegação nos termos seguintes:
'1. A entrada em vigor do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL 298/92, de 31 de Dezembro, e a consequente revogação do regime instituído pelo DL 42641, de 12 de Novembro de 1959, não acarretou qualquer despenalização das condutas sancionadas por este diploma.
2. Apesar de o DL 42641, de 12 de Novembro, falar em transgressões
(cfr. art. 89º, corpo do artigo) e de prever a aplicação de multa a título de sanção principal (cfr. nº. 1 do art. 89º), a verdade é que do ponto de vista material não há diferenças substanciais entre os dois tipos de ilícito.
3. De facto, confrontando os regimes instituídos quer pelo DL 42641, de 12 de Novembro, quer DL 298/92, constata-se que está em causa a defesa de interesses puramente administrativos, confiados à tutela da Administração e cuja previsão se realiza através da imposição de obrigações ou proibições.
4. Esses interesses são os da normalidade e estabilidade do funcionamento do sistema financeiro e creditício. Com efeito, estamos na presença de uma actividade – a actividade financeira – em relação à qual, para além do risco que lhe é inerente, qualquer perturbação ou quebra da confiança neste domínio pode ter repercussões desastrosas do ponto de vista económico e social.
5. Justifica-se, por isso, que se regulamente o exercício através do estabelecimento de regras de cautela, conduta, contabilísticas e regras prudenciais, o que constitui objectivo comum dos dois diplomas (cfr. neste sentido, o preâmbulo do DL 42641/59 e o preâmbulo do DL 298/92).
6. Se tanto a lei anterior como a lei nova visam tutelar o mesmo bem jurídico não se pode falar em descriminalização das condutas em causa, segundo o disposto no nº. 2 do art. 2º do CP.
7. Na situação sub judice, para além da identidade do bem jurídico protegido, verifica-se que em ambos os casos a aplicação das sanções é da competência da Administração (cfr. o disposto no art. 96º do DL nº. 42641 e o estabelecido no art. 213º do DL nº. 298/92).
8. Acresce que, no âmbito do DL nº. 42641, a lei limitava-se a estabelecer a possibilidade de recurso contencioso da decisão da Administração para os tribunais administrativos (§ 3º do art. 97º). Situação por demais indiciadora no sentido de tratar-se de uma verdadeira sanção de natureza administrativa e de pressupor a existência de um litígio emergente de relações jurídico-administrativas (cfr. art. 214º, nº. 3, da CRP).
9. É por isso que se defende que a referência feita no âmbito do DL
42641 a transgressões deva interpretar-se como 'sinónimo de infracções e não no sentido técnico-jurídico de infracções penais', cfr. Acórdão do STA (Tribunal Pleno) de 25 de Maio de 1995.
10. Neste último aspecto, no regime instituído pelo DL 298/92, o legislador passou a confiar aos tribunais comuns a competência para dirimir os conflitos decorrentes da aplicação de contra-ordenações, o que não interfere com a natureza administrativa da relação jurídica em causa.
11. Em suma, embora o ilícito consagrado no DL 42641 não fosse formalmente considerado ilícito de mera ordenação social, tratava-se já, de um ponto de vista substancial, de um ilícito administrativo.
12. Não pode, pois, falar-se em descriminalização: era a um ilícito substancialmente administrativo que se referia a lei anterior; continua a ser um ilícito substancialmente administrativo a que se refere a nova lei.
13. Portanto, na situação dos autos, o que está em causa é uma sucessão de leis da mesma natureza, recaindo a situação no nº. 4 do art. 2º e não no nº. 2 do mesmo preceito do CP.
14. Ora, a norma transitória constante do art. 3º, nº. 3, do RGICSF revela, precisamente, que, na óptica do legislador, existe uma sucessão de leis. E, neste caso, a única exigência constitucional é a do respeito pelo princípio da aplicação da lei mais favorável, nos termos do estabelecido no nº. 4 do art.
2º do CP. Logo, por força deste princípio constitucional aplicar-se-á a lei antiga ou a lei nova, conforme o regime que se mostrar mais favorável.
15. Acontece que o referido preceito salvaguarda expressamente a possibilidade de aplicação da lei antiga conforme se mostrar mais favorável aos arguidos.
16. E não é, por isso, inconstitucional, pois só o seria se conduzisse à aplicação retroactiva da lei mais desfavorável.
17. Encontrando-se salvaguardadas as garantias fundamentais constitucionalmente estabelecidas na aplicação de leis sancionatórias, como ficou demonstrado, há-de entender-se que o legislador goza de liberdade para continuar a sancionar as infracções em causa.
18. A entender-se o contrário, questionar-se-á se isso não conduzirá a um resultado inconstitucional, agora por violação do princípio do Estado de direito.'
Os recorridos C... e M... apresentaram contra-alegações, louvando a decisão recorrida, concluíndo:
'1ª. Ao tempo dos factos praticados pelos recorridos, a inobservância de relações e limites prudenciais determinados por lei, pelo Ministro das Finanças ou pelo Banco de Portugal, constituía ilícito penal contravencional
(Decreto-Lei nº. 42641).
2ª. A entrada em vigor do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei nº. 298/92, de 31 de Dezembro, acarretou a revogação (art.5º nº. 1) do Decreto-Lei nº. 42641, de
12 de Novembro de 1959.
3ª. Da referida revogação, decorre a despenalização das condutas anteriormente sancionadas pelo Decreto-Lei nº. 42641, visto que, as mesmas condutas que constituíam ilícito contravencional, passaram a ser qualificadas como contra-ordenações.
4ª Apesar de se poder constatar, que em ambos os diplomas os bens jurídicos protegidos tendem a ser os mesmos, é a diferenciação na forma de sancionamento, que, em última análise estabelece a sua distinção.
5ª. O que antes se punia, a título principal, com multas e inibição temporária ou permanente do exercício de determinados cargos, sanciona-se, hoje, com coimas.
6ª. O art.3º, nº. 4, do Decreto-Lei nº. 298/92, de 31 de Dezembro, preconiza uma solução normativa que permite a punição como contra-ordenações de factos, praticados antes da entrada em vigor da norma que como tal os qualifica.
7ª. A norma em questão está irremediavelmente ferida de inconstitucionalidade material.
8ª. Sendo dado assente na Doutrina, e em geral no nosso ordenamento jurídico, a diferenciação material e formal entre crimes e contra-ordenações, decorre aqui, que a conversão legislativa de uma contravenção numa contra-ordenação, constitui uma despenalização da respectiva conduta, tendo necessariamente eficácia retroactiva.
9ª. A conduta dos recorridos não é assim susceptível de ser punida contravencionalmente, já que tal punição violaria frontalmente o princípio da legalidade na aplicação da lei criminal, contido no art. 29º da CRP, e o art. 2º nº. 2, do C. Penal.
10ª. A nova lei, o Decreto-Lei nº. 298/92, ao revogar o Decreto-Lei nº. 42641 eliminou o facto punível das infracções de natureza criminal.
11º. A desqualificação operada pelo Decreto-Lei nº. 298/92, implica que o mesmo ilícito que agora é visto como ilícito contra-ordenacional, não possa ser punido pelas normas do regime sancionatório revogado, sob clara ofensa a um dos corolários do princípio da não retroactividade da lei penal.
12ª. Aceitar a eficácia retroactiva de uma norma punitiva de natureza contraordenacional, será afrontar um dos princípios basilares do estado de Direito.
13ª. O direito das contra-ordenações, se não é direito penal, é em todo o caso direito sancionatório de carácter punitivo, donde deverão transpor-se para o seu domínio as garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal, designadamente o princípio da legalidade e o princípio da irretroactividade.
14ª. Ao presente recurso deve ser negado provimento por julgada inconstitucional a norma constante do nº. 4, do art. 3º, do Decreto-Lei nº.
298/92, de 31 de Dezembro, por violar o art. 29º nºs. 1, 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa, com as legais consequências'.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
2. A norma cuja inconstitucionalidade vem suscitada por ambos os recorrentes é a constante do artigo 3º, nº. 4 do Decreto-Lei nº. 298/92, de
31.12 que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras que dispõe:
' Aos factos previstos nos artigos 210º e 211º do Regime Geral praticados antes da entrada em vigor deste Regime e já puníveis nos termos da legislação agora revogada é aplicável o disposto nos artigos 201º a 232º, sem prejuízo da aplicação da lei mais favorável.'
Ambos os recorrentes defendem que a citada disposição legal do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras não ofende a Constituição, nomeadamente o previsto no artigo 29º, nºs. 1, 3 e 4.
O Tribunal 'a quo' recusou a aplicação da norma do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras na interpretação segundo a qual a referida norma ao permitir, por um lado, a aplicação de um regime transgressional revogado por aquele mesmo diploma a factos praticados antes da sua entrada em vigor e, por outra via, a aplicação do regime sancionatório contra-ordenacional previsto naquele diploma, é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 29º, nºs. 1, 3 e 4 da Lei Fundamental.
Antes da entrada em vigor do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, o Decreto-Lei nº. 42 641, de 12.11.59, estabelecia no Capítulo X, artigos 89º a 98º, as sanções aplicáveis às – por ele assim designadas – transgressões relativas à actividade bancária e das instituições auxiliares de crédito.
Pese embora uma das principais sanções ser designada no referido diploma por multa, há que atender à natureza de tal sanção - obviamente sempre relacionando-a com a 'infracção' a que respeita – para averiguar se efectivamente se tratava de uma infracção/sanção de natureza penal, administrativa ou outra.
Atendendo a que o artigo 96º do referido Decreto-Lei afirma a competência do Ministro das Finanças para aplicação das 'penas' referidas nos artigos anteriores, na sequência de instrução do processo e mediante parecer da (então) Inspecção-Geral de Crédito e Seguros, parece não restarem dúvidas de que o ilícito em presença não se tratava de um ilícito penal, subordinado, portanto, à exclusiva competência jurisdicional dos tribunais.
É certo que o Decreto-Lei nº. 42 641, que se vem referindo, admitia a possibilidade de impugnação contenciosa da decisão sancionatória do Ministro das Finanças, mas tal não arreda a característica essencial de a entidade competente para aplicar as sanções em primeira linha ser a autoridade administrativa, o que arreda em definitivo a classificação de tal ilícito como ilícito penal.
Mais tarde, com a nacionalização do Banco de Portugal operada pelo Decreto-Lei nº. 452/74, de 13.09 e da banca em geral operada pelo Decreto-Lei nº. 132-A/75, de 14.03, sentiu-se a necessidade de um maior controlo do sistema bancário por parte do Banco de Portugal, pondo-se fim à existência das duas estruturas paralelas, a do Banco de Portugal e a da Inspecção-Geral de Crédito e Seguros – tendo esta última sido extinta – confiando-se em exclusivo ao Banco de Portugal as atribuições que por lei cabiam àquela citada Inspecção-Geral, nomeadamente quanto à instauração e instrução de processos de transgressões, nos termos dos artigos 1º, nº. 2 e 4º, nº. 1 do Decreto-Lei nº. 301/75, de 20.06.
De acordo com este diploma, a competência para a aplicação de sanções continuava ainda a pertencer ao Ministro das Finanças.
Actualmente, a Lei Orgânica do Banco de Portugal, aprovada pelo Decreto-Lei nº.
337/90, de 30.10, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº. 231/95, de
12.09 e pelas Leis nº. 3/96, de 5.02 e 5/98, de 31.01 – texto em vigor até ao início da 3ª fase da União Económica e Monetária – estabelece a competência para aquele banco adoptar as sanções legalmente previstas que se mostrem necessárias
à prevenção ou cessação das actuações contrárias à política monetária e cambial definidas [cfr. artigos 22º, nº. 2 e 24º, alínea b)].
Com a aprovação do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (Decreto-Lei nº. 298/92, de 31.12), a competência para a instauração dos processos e para a aplicação de sanções previstas na lei passou a pertencer ao Banco de Portugal (cfr. artigos 213º e seguintes), cabendo recurso da decisão sancionatória para os tribunais nos termos dos artigos 228º e seguintes, sendo subsidiariamente aplicável às infracções previstas neste diploma o regime geral dos ilícitos de mera ordenação social (cfr. artigo 232º).
À data da prática dos factos nos presentes autos, não estava ainda em vigor o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, pelo que importa prosseguir a análise respeitante à natureza do ilícito em presença.
Refira-se, para além do que já acima se deixou dito, que a doutrina e a jurisprudência largamente se haviam pronunciado sobre a questão, em termos que resumidamente vamos recordar.
Assim, a Procuradoria-Geral de República, no Parecer nº. 269/77, de 2.03.1978, in DR, II série, de 20.05.78, afirmou que 'As infracções praticadas nos domínios monetário, cambial e financeiro a que se reportam os Decretos-Leis nºs. 42 641, de 12 de Novembro de 1959 (...) têm natureza administrativa ...', atribuindo-se-lhes essa natureza pelo critério da entidade aplicadora/julgadora da sanção/ilícito e pelo facto de, respeitando tais infracções à ordem financeira do Estado, serem estranhas a juízos de valor de ordem moral.
Em inúmeros acórdãos o Supremo Tribunal Administrativo (v. g., entre outros, acórdão de 24.02.1983; acórdão de 28.10.1986; acórdão de 14.03.1989 e acórdão de
25.05.1995) firmou jurisprudência no sentido da natureza puramente administrativa dos ilícitos previstos no Decreto-Lei nº. 42 641.
Aliás, no Acórdão de 25.5.1995 refere-se:
'Não fez (o DL nº. 298/92, de 31.12) referência a qualquer descriminalização ou seja não considera as infracções a que os autos se reportam como transgressões ou contravenções, antes as situa no âmbito dos ilícitos administrativos e daí que determine a sua aplicação mesmo aos factos praticados antes da sua entrada em vigor desde que previstos no actual regime e já puníveis nos termos da legislação revogada desde que não tivesse sido ainda instaurado o respectivo processo (cfr. arts. 3º, 4º e 5º , do Dec.-Lei nº. 298/92, de 31 de Dezembro). Se as infracções em causa antes e depois da vigência do falado Decreto-Lei nº.
298/92, não tivessem a mesma natureza, não se justificaria a sua aplicação sem prévia descriminalização.
(...) Por último dir-se-á que de acordo com um critério qualitativo, que, atenta
à natureza dos bens jurídicos e a sua diferente projecção ética, as normas em causa, tem claramente a ver com o regular funcionamento das instituições financeiras, ... visam ... a manutenção de uma certa ordem social de indiferente ou diminuto valor ético e por isso, não assumindo dignidade penal, devem ser consideradas não penais, constituindo sua violação meros ilícitos administrativos'.
Feito este breve excurso, é agora o momento de afrontar a suscitada questão de constitucionalidade reportada à norma do artigo 3º, nº. 4 do Decreto-Lei nº.
298/92, de 31.12, na interpretação dada na decisão recorrida, de que tal norma ao permitir, por um lado, a aplicação de um regime transgressional, por ele revogado, a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor e, por outro, a aplicação aos mesmos factos, do regime contra-ordencional por ele previsto é materialmente inconstitucional por violar o artigo 29º, nºs. 1, 3 e 4 da Constituição.
Escreveu-se no acórdão deste Tribunal nº. 56/84, in Diário da República, I Série, de 9.08.1984, a propósito de um diploma despenalizador de infracções nos domínios monetário, financeiro e cambial:
'A revisão constitucional, como já se viu, não ficou alheia às transformações operadas, a nível da legislação ordinária, no direito sancionatório público.
(...) Neste quadro histórico, o acolhimento no novo texto da lei fundamental, em especial nos artigos 168º, alínea d), 229º, alínea m), e 282º, nº. 3, do ilícito contra-ordenacional (este e o ilícito criminal, stricto sensu, são agora os
únicos ilícitos sociais constitucionalmente referidos) importou o sancionamento pela Constituição dessa política descriminalizadora há muito anunciada e posta em prática, em certo grau, anos atrás e, em consequência, o reconhecimento de que as contravenções, verdadeiros ilícitos administrativos, erradamente integrados no direito criminal, constituem uma categoria de ilícito em vias de desaparecimento (naturalmente pela sua integração, pelo menos dos tipos contravencionais não puníveis com pena restritiva de liberdade, na classe dos ilícitos de mera ordenação social, resvalando os restantes, em pequeno número, para o domínio criminal em sentido próprio), daí que se lhes não faça referência expressa' (sublinhado nosso), afirmando-se mais adiante:
'(...) o profundo parentesco existente entre contra-ordenações e contravenções'
.
Por tudo quanto se vem expondo, não pode deixar de se considerar que as
'transgressões' previstas no Decreto-Lei nº. 42 641, de 12.11.1959, não constituíam verdadeiros ilícitos penais, antes e independentemente do nomem iuris, assumiam a natureza de ilícitos administrativos, pelo que o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, ao considerar as condutas que já anteriormente eram sancionadas nos termos daquele diploma como ilícitos de mera ordenação social, não operou qualquer descriminalização, entendida esta
última como o eliminar do número das infracções penais existentes de certas categorias ou tipos de ilícito previstos em diplomas penais e que por força dessa descriminalização passam a ser tutelados por outros ramos de direito ou, pura e simplesmente, deixam de ter qualquer tipo de tutela jurídica, ficando fora da ordem jurídica, vindo apenas contribuir para uma qualificação mais adequada do tipo de ilícito em presença.
Resta, agora, averiguar se é ou não conforme à Constituição a parte da norma do artigo 3º, nº. 4 do Decreto-Lei nº. 298/92, de 31.12, que prevê a aplicação da lei mais favorável.
Como se assinalou no acórdão deste Tribunal nº. 227/92, in Diário da República, II Série, de 17.06, o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável encontra-se formulado expressamente apenas para o domínio penal.
Porém, no mesmo acórdão escreveu-se:
'De facto, a nova lei (no caso, as normas do citado Regime Jurídico respeitantes a contra-ordenações) – na medida em que deixou de qualificar como transgressões condutas que assim rotulava – é, em certo sentido, uma lei penal de conteúdo mais favorável, pois que 'expulsou' do domínio penal factos que, antes, aí situava. Claro que isto é assim quando se veja nas infracções fiscais ilícitos de natureza criminal, puníveis, embora, com sanções (criminais) especiais (cfr., nesse sentido, Eduardo Correia, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano
100º, pp. 289 e segs., esp. P. 371). Pode, no entanto, argumentar-se que a nova lei não deve ser qualificada como lei penal, uma vez que, as infracções fiscais não integravam o domínio penal (cfr., nesse sentido, J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, Coimbra, 1970, pp. 100 e segs.); e, depois, em direitas contas, o que ela talvez faz é, nuns casos (nos casos, dos artigos 28º a 40º do citado Regime Jurídico), tipificar como contra-ordenações condutas que, antes, eram tipificadas como transgressões e, noutros (nos casos previstos no artigo 3º, nº. 1, do Decreto-Lei nº.
20-A/90), equiparar a contra-ordenações outras transgressões, que não converteu em crimes, nem tipificou como ilícitos de mera ordenação social. Se as coisas houverem de ser entendidas como por último se apontou, nem por isso haverá de ter-se o legislador por dispensado de observar o princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei de conteúdo mais favorável, consagrado expressamente, no artigo 29º, nº. 4, da Constituição, apenas para as leis penais. Tal princípio – o princípio da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável -, na sua ideia essencial, há-de, com efeito, valer também no domínio do ilícito de mera ordenação social'.
Este tem sido o entendimento claramente maioritário deste Tribunal no tocante à aplicação retroactiva da lei nova de conteúdo mais favorável a outros domínios, que não o do direito penal stricto sensu.
Na doutrina, por seu turno, a questão tem sido pacífica no sentido da aceitação da aplicação de tal princípio a outros domínios sancionatórios.
A este propósito, pode ver-se Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1º. Vol., 2º ed., pp. 208:
'É problemático o domínio da aplicação dos princípios consagrados neste artigo. A epígrafe 'aplicação da lei criminal' e o teor textual do preceito parecem restringir a sua aplicação directa apenas ao direito criminal propriamente dito
(crimes e respectivas sanções). Há-de porém entender-se que esses princípios devem, no essencial, valer por analogia para todos os domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social (...)'
No mesmo sentido, ainda, Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, pp. 330.
Nos presentes autos, ao tempo da prática dos factos, as condutas eram consideradas já como ilícitos com natureza idêntica aos de mera ordenação social
– pese embora o diferente nomen iuris – pelo Decreto-Lei nº. 42 641, de
12.11.1959, lei vigente no momento da prática do facto, continuando a ser puníveis, enquanto tais, pelo Decreto-Lei que veio aprovar o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.
Por outro lado, e verificada essa '1ª condição', a sua punição podia fazer-se por aplicação do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, desde que tal punição se configurasse como regime mais favorável, atendendo ao princípio da aplicação retroactiva da lei nova mais favorável, de harmonia com a norma ora em análise.
Ora, tal regime em nada contende com a norma da Constituição cuja violação é invocada na decisão recorrida, na medida em que o que a Constituição veda é a condenação criminal em virtude de lei posterior à prática dos factos, a aplicação de sanção não prevista em lei anterior ao momento da prática dos factos, a punição do agente com sanção mais grave do que a prevista à data do ilícito, impondo-se, ainda, a aplicação retroactiva das leis (penais) de conteúdo mais favorável ao agente.
Na verdade, sendo as condutas praticadas pelos recorridos puníveis, ao tempo, nos termos do Decreto-Lei nº. 42 641, de 12.11.1959 em conjugação com o Decreto-Lei nº. 229-C/88, de 4.07 e a Portaria nº. 422-B/88 da mesma data, elas continuaram a ser puníveis enquanto ilícitos de idêntica natureza, com a entrada em vigor do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras que apenas alterou os quantitativos de coima a aplicar e, em obediência ao princípio constitucional da aplicação retroactiva da lei nova de conteúdo mais favorável, prevê a punição de tais ilícitos de acordo e na estrita observância desse princípio constitucional.
Em nada resulta, pois, violado, o normativo constitucional em apreço (artigo
29º, nºs. 1, 3 e 4 da Lei Fundamental); e isto independentemente da questão de saber se idêntico regime também não seria, ainda, constitucionalmente legítimo, face aos comandos enunciados, ainda que o ilícito se situasse, anteriormente, no
âmbito do direito penal, questão que se deixa em aberto.
3. Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida que deve ser reformulada em consonância quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 22 de Junho de 1999- Artur Maurício Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Vítor Nunes de Almeida Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida