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Proc. nº 407/97
2ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
(Cons.ª Maria dos Prazeres Beleza)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. C..., L..., LS..., CC..., M..., F..., O...,SA e OP..., SA recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que não admitiu o recurso por eles interposto da decisão instrutória de pronúncia proferida pelo 5º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, recte, «do despacho de pronúncia proferido bem como da decisão que dele consta em relação a questões que haviam suscitado nos seus requerimentos de instrução».
Suscitada já neste Tribunal, pelo então relator do processo, na exposição de fls. 230, a questão de não conhecimento do recurso, decidiu-se, através do Acórdão nº 125/99, ordenar o prosseguimento dos autos.
Notificados para o efeito, vieram os recorrentes apresentar as respectivas alegações. Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou.
2. De acordo com o requerimento de interposição do recurso, vem o mesmo identificado como tendo por objecto a norma do artigo 310º do CPP – em conjunção com os artigos 308º, nºs 1 e 3, 399º e 400º, nº 1, alínea e), do mesmo Código, quando interpretada «no sentido de estender a irrecorribilidade da decisão instrutória à decisão nela constante sobre questões prévias que hajam sido suscitadas no requerimento de instrução, por violação dos artigos 20º, nº
1, 32º, nº 1 e 205º, nº 1 da Constituição».
É o seguinte o teor da disposição em causa: Artigo 310º Recurso da decisão instrutória
1. A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2. É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior.
Por seu turno, o artigo 308º do mesmo Código, referente ao despacho de pronúncia ou não pronúncia, determina no seu nº 3:
3. No despacho referido no nº 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.
Da leitura da decisão recorrida resulta que o Tribunal da Relação de Lisboa fundamentou a não admissão do recurso na incindibilidade do despacho de pronúncia e no facto de este ser irrecorrível por expressa disposição legal.
É, pois, apenas a questão de constitucionalidade da norma do artigo
310º, nº 1, do CPP, com referência ao artigo 308º, nº 3, do mesmo diploma – isto
é, da regra da irrecorribilidade enquanto aplicável à parte do despacho de pronúncia que decide questões prévias ou incidentais – que cumpre resolver.
3. A questão em apreço já foi objecto de análise no Acórdão nº
216/99 (ainda inédito).
Afirmou-se, então, o seguinte:
Não existe, ao nível dos tribunais comuns, uma jurisprudência firme quanto à interpretação das normas em causa e quanto à admissibilidade ou não de recurso da parte do despacho instrutório que decida questões incidentais (cfr., aliás, a este respeito, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 147/97, Diário da República, II, nº 88, de 15 de Abril de 1997, p. 4482 ss, e 585/98, ainda inédito).
Importa averiguar se constitucionalmente se impõe uma interpretação dessas normas de que resulte a admissibilidade de recurso da parte do despacho instrutório (que não alargue o objecto do processo para além dos factos constantes da acusação do Ministério Público) que decida questões incidentais, em atenção a valores tais como o acesso à justiça, na vertente do direito a um duplo grau de jurisdição, e a plenitude das garantias de defesa em processo penal.
A procedência da pretensão do recorrente – e do presente recurso – depende da resposta a dar a esta interrogação.
[...]
O problema da conformidade constitucional do artigo 310º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, em face dos princípios do duplo grau de jurisdição e da plenitude das garantias de defesa, foi já por diversas vezes abordado pelo Tribunal Constitucional, no que respeita à recorribilidade do despacho instrutório na parte em que pronuncia o arguido, tendo o Tribunal concluído no sentido da não inconstitucionalidade.
Entende-se que as razões então aduzidas são transponíveis para a questão agora em discussão.
E, começando por confrontar o artigo 310º, nº 1, do CPP com o artigo
20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e com o direito ao recurso e a um duplo grau de jurisdição, remeteu-se para a doutrina do Acórdão nº 265/94
(Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1994), onde se referira:
A Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies.
É certo que a Constituição garante a todos o «acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» (artigo 20º, nº 1) e, em matéria penal, afirma que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa» (artigo 32º, nº 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal.
A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
Sendo embora a faculdade de recorrer em processo penal uma tradução da expressão do direito de defesa (veja-se, nesse sentido, o Acórdão nº 8/87 do Tribunal Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., p.
235), a verdade é que como se escreveu no Acórdão nº 31/87 do mesmo tribunal,
«se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido».
A propósito da questionada regra da irrecorribilidade, quando confrontada com o «princípio da plenitude das garantias de defesa», recordou-se o afirmado no Acórdão nº 610/96 (Diário da República, II Série, de 6 de Julho de
1996), em que se escrevera:
[...] o que se questiona no presente recurso é se o desígnio de celeridade, que é consagrado constitucionalmente, legitima a irrecorribilidade de certas decisões instrutórias: justamente os despachos de pronúncia que não alteram os factos constantes da acusação do Ministério Público. E a resposta a esta questão indica que a celeridade não só é compatível com as garantias de defesa, podendo coincidir com os fins de presunção de inocência, como é instrumental dos valores últimos do processo penal – a descoberta da verdade e a justa decisão da causa –, próprios de um Estado democrático de direito.
[...]
Apenas é irrecorrível, portanto, a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.
Ora, este regime especial não é arbitrário, encontrando fundamento na existência de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo Ministério Público, dominus do inquérito, e pelo juiz de instrução. E o Ministério Público é configurado constitucionalmente como uma magistratura autónoma (artigo 221º, nº 2, da Constituição), sendo concebido, no processo penal, como um sujeito isento e objectivo que pode, nomeadamente, determinar o arquivamento do inquérito em caso de dispensa da pena, propugnar, findo o julgamento, a absolvição do arguido e interpor recurso da decisão condenatória em exclusivo benefício do arguido [...].
Acrescentou-se, ainda, no referido Acórdão nº 216/99:
A lei assegura, como lhe compete para dar cumprimento aos objectivos constitucionais, que o arguido tenha possibilidade de recorrer de uma decisão condenatória. Multiplicar as possibilidades de recurso ao longo do processo seria comprometer outro imperativo constitucional: o da celeridade na resolução dos processos-crime (artigo 32º, nº 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa). Ou seja, entre assegurar sempre o duplo grau de jurisdição, arrastando interminavelmente o processo, e permitir apenas o recurso das decisões condenatórias, permitindo uma melhor fluência do processo, o legislador optou decididamente pela segunda via. Esta opção foi aliás confirmada pela revisão constitucional de 1997, que aditou ao nº 1 do artigo 32º o segmento 'incluindo o recurso'. Como se escreveu no acórdão nº 101/98 (inédito) deste Tribunal, a intenção do legislador constituinte não foi 'significar que haveria de ser consagrada, sob pena de inconstitucionalidade, a recorribilidade de todas as decisões jurisdicionais proferidas em processo criminal, mas sim que do elenco das garantias de defesa que tal processo há-de assegurar se contará a possibilidade de impugnação das decisões judiciais de conteúdo condenatório, na esteira do que já era entendido pela jurisprudência deste órgão de fiscalização' (veja-se também, no mesmo sentido, o acórdão nº 299/98, inédito). O arguido pode sempre, pois, recorrer da decisão condenatória que lhe seja dirigida, e aí contestar todos os vícios que derivem de uma má apreciação de qualquer questão interlocutória.
E, assim, concluíu-se que «a irrecorribilidade da parte do despacho de pronúncia que decide questões prévias ou incidentais não é portanto contrária
à Constituição da República Portuguesa».
Não se vê motivo para questionar esta jurisprudência, que se sufraga e, portanto, aqui se confirma.
4. Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 310º, nº
1, com referência ao artigo 308º, nº 3, do CPP, quando interpretada no sentido de estender a irrecorribilidade do despacho de pronúncia à decisão dele constante sobre questões prévias ou incidentais;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 23 de Junho de 1999 Luís Nunes de Almeida Messias Bento Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração junta) Voto de vencida
1. Não cabe naturalmente ao Tribunal Constitucional decidir puras questões de interpretação do direito ordinário. Assim, encontra-se fora do âmbito de competência deste Tribunal a questão de saber se é ou não incindível o despacho de pronúncia, para o efeito de determinar se o respectivo regime de recorribilidade se aplica às 'questões prévias ou incidentais', referidas no nº
3 do artigo 308º do Código de Processo Penal. A decisão recorrida considerou incindível o despacho de pronúncia e não admitiu o recurso relativo às questões prévias, ou incidentais, com base na irrecorribilidade daquele despacho, por expressa disposição legal: o nº 1 do artigo 310º do citado Código. Importa, pois, apreciar a constitucionalidade do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, que estabelece a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, quando interpretado no sentido de tal irrecorribilidade abranger a decisão das questões prévias ou incidentais a que se refere o nº 3 do artigo 308º do mesmo Código.
2. O direito ao recurso em matéria penal é, sem dúvida, uma das mais importantes garantias de defesa do arguido decorrentes do nº 1 do artigo 32º, o que explica que, na última Revisão Constitucional, tenha sido expressamente consagrado. Ora, começando por delimitar o âmbito de protecção da norma constitucional em causa, deve entender-se que o nº 1 do artigo 32º garante o direito ao recurso de todas as decisões que, em matéria penal, tenham efeitos relevantes para a situação do arguido. Entre estas decisões, encontram-se não apenas as decisões finais condenatórias e as decisões de aplicação de medidas de coacção, mas também, num processo estruturado nos termos actualmente vigentes, as decisões judiciais de pronúncia do arguido, independentemente de os factos que fundamentam a pronúncia constarem ou não da acusação do Ministério Público. Escreveu-se no acórdão nº 31/87 deste Tribunal ser admissível que 'essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido'. Mas, como se reconhece no acórdão nº 610/96, a formulação de um juízo de não inconstitucionalidade depende da demonstração de que a irrecorribilidade é aqui justificada por outros valores constitucionais e de que não é afectado o conteúdo essencial do direito ao recurso.
3. Na verdade, a pronúncia determina a continuação do processo, mediante a sujeição do arguido a julgamento. Da continuação do processo resulta necessariamente a imposição – ou manutenção da imposição – ao arguido do termo de identidade e residência, previsto no artigo 196º do Código de Processo Penal. A submissão do arguido a julgamento acarreta, inegavelmente, a compressão da sua liberdade pessoal, tendo em conta o tempo necessário à organização da sua defesa e à comparência na audiência, compressão tanto mais significativa quanto mais complexa for a matéria dos autos, e que pode, em certos casos, colocar em causa a continuação da sua actividade profissional. A aceitação pelo Tribunal de Instrução de que existem indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança implica entender que existe uma 'possibilidade razoável' de tal pena ou medida de segurança vir a ser aplicada (nº 2 do artigo
283º e nºs 1e 2 do artigo 308º) em julgamento. O que leva, de facto, apesar da força jurídica do princípio da presunção de inocência, à submissão do arguido a uma forte censura social, que uma eventual decisão final absolutória não consegue, as mais das vezes, apagar. Acresce que, após a recente revisão do Código de Processo Penal (cfr. nº 1 do artigo 86º, na redacção introduzida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto), o processo penal é público a partir da decisão instrutória, quando seja proferida, cessando nesse momento o segredo de justiça. Recorde-se ainda que o nº 1 do art. 6º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Adminstração Central, Regional e Local (aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro), não julgado inconstitucional pelo acórdão 439/87
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 10º, págs. 523 e segs.), estabelece como consequência do trânsito em julgado do despacho de pronúncia em processo de querela – independentemente de saber se tal norma se aplica aos processos regidos pelo Código de Processo Penal de 1987 – a suspensão de funções e do vencimento até à decisão final.
4. O Tribunal Constitucional tem julgado não inconstitucional a norma em causa – que determina, recorde-se, a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público – com base em argumentos que não se afiguram, no seu conjunto, procedentes (cfr., designadamente, os acórdãos nº 265/94 – Diário da República, II Série, nº 165, de 19.7.94 –, 610/96, 468/97, 45/98, 101/98, 156/98, 238/98, 266/98, 299/98 e
300/98).
Na minha perspectiva, que se afasta do sentido dessas decisões, o artigo 310º do Código de Processo Penal, enquanto estabelece a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, é materialmente inconstitucional, por violação do direito ao recurso em matéria penal, consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição. O juízo de inconstitucionalidade assenta na inexistência de valores ou interesses que justifiquem ou fundamentem, nos termos do nº 2 do artigo 18º, uma restrição do direito ao recurso de decisões que afectam significativamente a situação jurídica e fáctica do arguido. É o que se tentará demonstrar.
5. Ora, não é procedente antes de mais a ideia de que a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público se justificaria pela comprovação de indícios suficientes por duas entidades: o Ministério Público – constitucionalmente configurado como uma magistratura autónoma – e o juiz de instrução.
Na verdade, e antes de mais, a autonomia do Ministério Público não se identifica com a independência dos juízes, e não é incompatível com a circunstância de o Ministério Público ser destinatário do princípio da igualdade de armas, aceite na jurisprudência do Tribunal Constitucional, e que naturalmente pressupõe a existência de posições processualmente opostas do arguido e da acusação.
Lembre-se aqui o que escreveram os Conselheiros Luis Nunes de Almeida, José de Sousa e Brito, Armindo Ribeiro Mendes, Monteiro Diniz e António Vitorino, a propósito do princípio de igualdade de armas (declaração de voto junta ao acórdão nº 150/ 93):
'Não se diga que o princípio da igualdade de armas não tem aplicação no processo penal português, por este não estar estruturado como um processo de partes. A posição do Ministério Público sendo dependente da sua configuração constitucional idiossincrática, consoante os países, caracterizando-se em Portugal pela autonomia, pelo que seria no processo penal um órgão de justiça, vinculado a critérios de legalidade e de objectividade, e não uma parte. Ora, sem pretender dilucidar aqui o instituto jurídico-constitucional do Ministério Público, e em especial a questão de saber como a sua 'autonomia', compatível com a sujeição dos seus magistrados às directivas, ordens e restrições previstas na respectiva lei, se distinguem da 'independência' dos juízes (cfr. o acórdão nº
254/92, Diário da República, 1ª Série-A, p. 3593), é certo que pelo simples facto de no processo penal representar o Estado como detentor do interesse punitivo, que se realiza desde logo através do exercício da acção penal, mas que se realiza também através da actuação do Ministério Público no processo penal, sem exceptuar a fase de recurso, o Ministério Público representa um dos sujeitos da relação jurídica punitiva que é objecto do processo penal e em que o réu é o outro sujeito. É neste sentido uma das partes do processo, mesmo que este processo não esteja na disponibilidade das partes como o estão, na maior parte dos casos, os processos civis. A moderada idiossincrasia do Ministério Público no direito português não é acompanhada de qualquer idiossincrasia da sua função no processo penal.
Não é possível, pois, sem grave contradição, defender por um lado um princípio de igualdade de armas do Ministério Público e do arguido, e, ao mesmo tempo, raciocinar como se, no processo penal, o Ministério Público se movesse num plano de imparcialidade, ou estivesse colocado acima das partes.
Por outro lado, se a concordância do Ministério Público, dotado de um estatuto de autonomia, e de um juiz, oferecesse garantias suficientes de uma dupla apreciação, tornar-se-ia incoerente a consagração do recurso das decisões que aplicam medidas de coacção, ou mesmo de decisões condenatórias.
6. O argumento da celeridade e eficiência processual não permite também justificar a solução em análise. Em primeiro lugar, a afirmação, na esteira do acórdão nº 610/96 (D.R., II,
6/6/96), de que 'a celeridade não só é compatível com as garantias de defesa, podendo coincidir com os fins de presunção de inocência, como é instrumental dos valores últimos do processo penal – a descoberta da verdade e a justa decisão da causa –, próprios de um Estado democrático de direito', vem, em boa verdade, inverter os termos lógicos em que estes valores se encontram constitucionalmente estruturados. Com efeito, o nº 2 do artigo 32º da Constituição, integrado nas 'garantias de processo criminal', determina que 'todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa'. Desta norma podem extrair-se as seguintes asserções. Antes de mais, a Lei Fundamental estabelece directamente o modo de relacionar a celeridade processual com as garantias de defesa: estas constituem um limite irrefragável daquela. Consequentemente, só podem encontrar justificação constitucional desígnios de celeridade que sejam compatíveis com as garantias de defesa. E as garantias de defesa em causa são naturalmente todas aquelas que devam ter-se por consagradas no nº 1 do mesmo preceito, à cabeça das quais se encontra o direito ao recurso. Donde se conclui que a celeridade não permite manifestamente justificar constitucionalmente a 'irrecorribilidade de certas decisões instrutórias'. Por outro lado, não pode invocar-se a presunção de inocência – garantia do arguido consagrada no citado nº 2 do artigo 32º da Constituição – como modo de corroborar a legitimidade de uma restrição da faculdade de recorrer, a pretexto de que a celeridade pode 'coincidir com os fins de presunção de inocência'. É que, se a celeridade levasse à restrição de garantias do arguido, não coincidiria, por definição, com os fins de presunção de inocência. O mesmo se diga relativamente à 'descoberta da verdade' e à 'justa decisão da causa': estes valores não se realizam através da celeridade a todo o custo. E ainda menos se concretizam à custa de uma limitação do direito de defesa do arguido. Resta dizer que o argumento da celeridade, ainda que pudesse ser autonomamente valorado, não é unívoco. Se o recurso da decisão de pronúncia pode atrasar o processo, nos casos em que tal recurso vier a ser julgado improcedente, a verdade é que, sempre que seja julgado procedente, permite evitar o arrastar de processos submetidos a julgamento, com isso se promovendo a economia processual e a celeridade. No mesmo sentido aponta a circunstância de o legislador ter estabelecido a recorribilidade da decisão de pronúncia que não se baseia nos factos constantes da acusação do Ministério Público, sem prejuízo para a celeridade processual.
7. Não podendo conceber-se a decisão de pronúncia como um inócuo despacho interlocutório, atentos os relevantíssimos efeitos jurídicos e práticos que lhe cabem, e não existindo fundamentos bastantes para, nos termos do nº 2 do artigo
18º, restringir ou afastar nesta sede o direito ao recurso, a norma do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, enquanto prescreve a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, deve ter-se por inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição. Tal juízo de inconstitucionalidade não pode deixar também de ser formulado relativamente ao entendimento alargado adoptado na decisão recorrida, e de acordo com o qual a irrecorribilidade do despacho de pronúncia se estende também
às questões prévias ou incidentais. Por estas razões, ter-me-ia pronunciado pela procedência do recurso. José Manuel Cardoso da Costa