Imprimir acórdão
Processo n.º 513/00
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, foi proferida em 27 de Setembro de 2000, ao abrigo dos disposto no artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, decisão pela se recusou a tomada de conhecimento do recurso de constitucionalidade, com os fundamentos que se reproduzem:
'I. Relatório
1. AP requereu em 5 de Janeiro de 2000 junto do Tribunal Central Administrativo a suspensão de eficácia do despacho do Director-Geral de Viação que denunciou o contrato de avença celebrado em 1994 pela requerente com a Direcção Geral de Viação, vindo, em 21 de Janeiro do mesmo, requerer 'ao abrigo do n.º 3 do art.
80º da LPTA (...) a declaração de ineficácia dos actos de execução indevidamente praticados e que consequentemente enquanto não transitar em julgado decisão sobre o pedido de suspensão de eficácia que à requerente seja permitido continuar a exercer a sua actividade na delegação de viação do distrito de Faro e que a sua remuneração continue a ser devidamente processada, sem prejuízo da responsabilidade que couber à autoridade recorrida.' Na sequência da declaração de incompetência do Tribunal Central Administrativo em razão da hierarquia (por Acórdão de 17 de Fevereiro de 2000), para conhecer do referido pedido de suspensão veio o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, por sentença de 29 de Março de 2000, a decidir negar provimento ao pedido de suspensão de eficácia, salientando que: 'O acto que denuncia o contrato, nos termos da referida cláusula negocial é mera declaração negocial que extingue o contrato (...),e não um acto administrativo (acto autoritário e unilateral da Administração), sendo, portanto, irrecorrível por não constituir objecto idóneo de recurso contencioso de anulação. A apreciação de regularidade do acto de denúncia deve ser feita no âmbito da acção sobre contrato administrativo e não em recurso contencioso (cfr. neste sentido Acs. do STA de 15.10.96, Rec. 38.665; de 29-01-98, Rec. 42.633; de
17-11-98, Rec. 40.291 e de 19-01-2000, Rec. 40.372). Nestes termos, o acto cuja suspensão se requer não é um acto administrativo, sendo irrecorrível por não constituir objecto idóneo de recurso contencioso, e, consequentemente, não sendo admissível a respectiva suspensão de eficácia. Pelo exposto, resultando do processo fortes indícios da ilegalidade da interposição do recurso (al. c) do n.º 1 do artigo 76º da LPTA), e sendo os requisitos apontados neste normativo de verificação cumulativa, a pretensão da requerente não pode ser acolhida, tornando-se desnecessária, desde logo a apreciação dos restantes requisitos.'
2. Inconformada, AP interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Central Administrativo, invocando:
'A - Omissão de pronúncia, contradição insanável entre os fundamentos e a decisão. B – Violação do disposto no artigo 9º n.º 3 do ETAF, artigo 268º n.º 4 da CRP e artigo 120º do CPA. C – Violação por errada interpretação e aplicação da alínea c) do n.º 1 do artigo 76º da LPTA. D – Violação do disposto no n.º 3 do artigo 71º da LPTA.' A recorrente concluiu o recurso nos seguintes termos:
'A – É flagrante a omissão de pronúncia quanto ao incidente deduzido pela requerente nos termos do artigo 80º n.º 3 da LPTA e quanto à qualificação do contrato celebrado entre a requerente e a D.G.V absolutamente indispensável à qualificação do acto recorrido, o que em qualquer dos casos conduz à nulidade da douta decisão recorrida nos termos do artigo 668º n.º 1 alínea d) do CPC. B – São contraditórios os fundamentos de facto e de direito na medida em que ao qualificar o contrato como de prestação de serviços em regime de avença o tribunal teria que se declarar incompetente em razão da matéria, o que conduz à nulidade da decisão por violação do disposto na alínea c) do artigo 668º do CPC. C – Se atendermos ao disposto nos artigos 9º n.º 3 do ETAF, 268º n.º 4 da CRP e
120º do CPA é forçoso concluir que estamos perante um acto administrativo passível de recurso contencioso, o que aliás não é excluído, sendo ao invés permitido em matéria de contratos administrativos. D – Só perante a existência de elementos passíveis de conduzir, com elevado grau de possibilidade, a uma situação de ilegalidade da interposição de recurso é que deverá considerar-se como não preenchido o requisito vertido na alínea c) do n.º
1 do artigo 76º da LPTA (...). Ora inexiste in casu essa elevada probabilidade de uma situação de ilegalidade o que conduz à revogação da decisão recorrida por violação do artigo 76º n.º 1 al. c) da LPTA E – As circunstâncias em que o acto de denúncia foi praticado, o silêncio do requerido quanto à sua qualificação como acto administrativo comprovam suficientemente a possibilidade de o mesmo ser objecto de recurso contencioso, o que não afasta a possibilidade que assiste à requerente de mais tarde intentar acção nos termos do artigo 71º n.º1 da LPTA. Esta possibilidade é cumulativa e não subsidiária e/ou alternativa. Mostra-se pois violado o disposto no artigo
71º n.º 3 da LPTA o que conduz à revogação da decisão recorrida.' O Tribunal Central Administrativo, por Acórdão de 1 de Junho de 2000, considerando que 'o acto cuja suspensão de eficácia é requerida não é verticalmente definitivo e, por isso, não é recorrível', negou provimento ao recurso e manteve, embora com fundamento diferente, a decisão recorrida. Em 14 de Junho do corrente, a recorrente pediu o 'esclarecimento e reforma' deste aresto bem como a sua reforma, afirmando, no que ora interessa, que:
'- o Acórdão não esclarece quais as consequências desta nulidade, o que viola flagrantemente o artigo 80º, n.º 1, 2 e 3 da LPTA, o princípio da legalidade consagrado no artigo 3º da Constituição da República Portuguesa (...) e ainda, o artigo 53º, 58º, n.º 1 e 268º, n.º 4 da CRP;
- Na verdade, quer a decisão recorrida, quer o Acórdão de fls. não esclarecem, nem se pronunciam sobre o alcance do artigo 80º neste recurso contencioso e pedido de suspensão de eficácia;
- O que viola de forma patente a lei, que expressamente obriga a autoridade recorrida (vide artigo 80º da L.P.T.A.) a suspender com urgência quaisquer actos de execução e constitui grave violação do direito da requerente ao acesso ao direito e aos tribunais nos termos do art. 20º da CRP;' E concluindo que:
'A – O artigo 80º, n.º 1, 2 e 3 da LPTA, determina que a autoridade recorrida, recebido o duplicado do requerimento de suspensão, não pode iniciar, ou/e prosseguir a execução do acto, ao invés deve suspender imediatamente, até ao trânsito em julgado da decisão do pedido, todos e quaisquer actos de execução. Passados meses, cumpridos todos os requisitos do artigo 80º n.ºs 1, 2 e 3 da LPTA, a autoridade recorrida persiste em manter a execução do acto, pelo que se requer esclarecimentos, acerca de quais as consequências deste procedimento e ainda quem decidirá este incidente, enquanto se mantiver sem trânsito em julgado a decisão do pedido, o que pode vir a acontecer, nomeadamente, com um eventual recurso para o Tribunal Constitucional. B – Entendeu o Acórdão que o acto de que se requer a suspensão não é verticalmente definitivo, na medida em que se insere na competência do Director-Geral – artigo 11º do Decreto-Lei 323/89 e mapa II anexo. Dada a existência de várias possibilidades e formas de atribuição dessa competência, nomeadamente através de delegação de competências e/ou leis orgânicas dos respectivos serviços, requer-se o esclarecimento de quais os factos e/ou alegações de direito que permitiram chegar a essa conclusão; C – A questão de legitimidade do Director-Geral de Viação foi decidida na decisão proferida no TACL. A decisão dessa questão transitou em julgado, pelo que ao admitir-se que o acto recorrido não é definitivo, está a violar-se a força obrigatória dessa decisão dentro do processo nos termos do artigo 671º do Cód. Proc. Civil, pois a proceder o entendimento perfilhado no Acórdão a autoridade ora recorrida deixaria de ter legitimidade no presente processo; D –Existe manifesto lapso na determinação da norma ou normas aplicáveis, pois na qualificação jurídica dos factos o Acórdão não atendeu ao disposto na Lei 44/99, concretamente ao seu artigo 26º, e no Decreto-Lei 484/99, de 10 de Novembro de
1999, nomeadamente ao seu artigo 1º, n.º 3; E –Do constante nas conclusões C e D decorre que o Acórdão ao não ter determinado correctamente a qualificação jurídica dos factos, fez uma errada interpretação da alínea c) do n.º 1 do artigo 76º, pois os elementos e documentos constantes do processo, conjugados com as referidas normas, não permitem concluir pela violação da alínea c) do n.º 1 do artigo 76º da LPTA; F – Por último, e estando em causa uma relação jurídica de emprego público, a não procederem as conclusões constantes de A a E, é impreciso concluir pela violação do princípio da legalidade, consagrado no artigo 3º, 53º e 18º, n.º 1 e
2 da Constituição da República Portuguesa, porquanto está irremediavelmente afectado o direito ao trabalho e sua estabilidade, assim como os artigos 20º e
268º, n.º 3 e 4 da CRP, pois à recorrente não estão a ser garantidas as medidas cautelares adequadas e o acesso ao direito e aos tribunais, a que acresce a falta de fundamentação dos actos e decisões que a vêm a afectar.' Por Acórdão de 24 de Julho do corrente ano, o Tribunal Central Administrativo decidiu indeferir na totalidade o requerido.
3. A requerente, 'não se conformando com o douto acórdão vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do art. 280º, n.º 1, al. b) da CRP e art. 70º, n.º 1, al. b) da LTC', com os seguintes fundamentos:
'I – No âmbito do processo em epígrafe a Recorrente tendo interposto pedido de suspensão de eficácia nos termos do artigo 76º e segs. do Dec. Lei 267/85
(LPTA), requereu nos termos do artigo 80º do mesmo diploma a suspensão provisória do acto recorrido.
- O pedido foi deduzido no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que na decisão proferida a fls. omitiu em absoluto qualquer pronúncia;
- Em sede de Recurso interposto para o Tribunal Central Administrativo foi tal questão objecto de recurso, porém o Acórdão de fls. reconhecendo a nulidade da decisão recorrida não conheceu do pedido, nem determinou que o processo baixasse ao TACL para que este conhecesse do pedido;
- Foi pedido o esclarecimento do Acórdão e a sua reforma, invocando-se a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação dada ao artigo 80º, n.º 1, 2 e 3 da LPTA;
- a interpretação e aplicação dada ao artigo 80º da LPTA no Acórdão viola o princípio da legalidade consagrado no artigo 3º da CRP e o princípio do acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20º da CRP, pois a admitir-se a posição perfilhada nas decisões recorridas e a transitarem julgado tais decisões, o pedido da ora Recorrente formulado nos termos do artigo 80º da LPTA e a responsabilidade da autoridade recorrida ficará sem decisão em violação expressa e flagrante das referidas disposições legais da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, que na interpretação e aplicação efectuada pelo TCA violam os artigos 3º e 20º da CRP; II – Inserindo-se a questão controvertida no âmbito de uma relação jurídica de emprego público mostra-se ainda a interpretação e aplicação efectuada do artigo
76º, n.º 1, alínea c) da LPTA ferida de inconstitucionalidade por violação dos artigos 18º, n.º 1 e 2, 268º, n.ºs 3 e 4, e ainda o princípio da estabilidade e segurança no trabalho consagrado nos artigos 53º e 58º da CRP
(...)' II. Fundamentos
4. O presente recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, foi admitido pelo relator no tribunal a quo. Todavia, porque tal despacho de admissão do recurso não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76º, n.º 3, da citada lei), e porque se entende que dele se não pode tomar conhecimento, decide lavrar-se a presente decisão sumária, ao abrigo do disposto n.º artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
5. Na verdade, são requisitos específicos deste tipo de recurso de constitucionalidade, além da aplicação pelo tribunal recorrido da(s) norma(s) cuja constitucionalidade se impugna e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, a suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo. Este último requisito, como se decidiu no Acórdão n.º 352/94 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), deve, porém, ser entendido, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão', 'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita'. É este o único sentido de tal requisito que se justifica pela natureza da intervenção do Tribunal Constitucional que tem lugar em via de recurso, isto é, para reexame ou reapreciação de uma decisão de um tribunal sobre uma questão de constitucionalidade de norma(s) que foi suscitada perante ele. Esta orientação, como também se salientou no Acórdão n.º 352/94, 'sofre restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final.'
6. No presente caso, a recorrente apenas no pedido de 'esclarecimento e reforma' da decisão do Tribunal Central Administrativo de 1 de Junho de 2000 veio a suscitar uma questão de constitucionalidade normativa. Na verdade, antes desse momento, a recorrente não fez qualquer referência a uma eventual inconstitucionalidade das normas em causa – nem no requerimento de suspensão de eficácia dirigido a 5 de Janeiro de 2000 ao Tribunal Central Administrativo, nem no recurso interposto para o referido Tribunal da sentença de 29 de Março de 2000 do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que negou provimento ao pedido de suspensão de eficácia. Designadamente, e como resulta da transcrição efectuada, a referência, neste último recurso, à violação do disposto no artigo 268º, n.º 4, da Lei Fundamental, não se reporta a quaisquer normas. Ora, como este Tribunal tem repetidas vezes salientado, o pedido de esclarecimento e reforma de uma decisão, enquanto incidente pós-decisório, não é já momento adequado para, atempadamente, suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, em termos de ela poder vir a ser decidida pelo tribunal a quo, e de provocar a intervenção do Tribunal Constitucional para reapreciação, em recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Como se salientou no citado Acórdão n.º 352/94, 'porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura e ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade' (v. também já, por exemplo, o Acórdão n.º
62/85, publicado no Diário da República, II série, de 31 de Maio de 1985). Aliás, no presente caso a recorrente dispôs, anteriormente à prolação da decisão de 1 de Junho de 2000, de oportunidade para suscitar devidamente as questões de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciadas, não o tendo feito. Não estamos, pois, perante uma daquelas situações excepcionais ou anómalas, em que o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final. Por a recorrente não ter suscitado atempadamente a inconstitucionalidade normativa que pretende agora ver apreciada por este Tribunal, não pode, pois, tomar-se conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.'
2. Inconformada, a recorrente traz reclamação para a conferência, invocando, essencialmente: que com a alteração do artigo 669º do Código de Processo Civil, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 325/A/95 de 12 de Dezembro, o poder jurisdicional deixa de se esgotar com a prolação da sentença – o que exigiria uma reponderação da jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto à exigência da suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo; que 'a questão da inconstitucionalidade foi levantada logo em sede de recurso para o TCA, e não se reporta a normas porque o que está em causa é a aplicação de princípios e de normas, nomeadamente do conceito de acto administrativo para efeitos de recurso contencioso'; e, ainda, que 'estamos perante uma daquelas situações anómalas e excepcionais em que não se dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão da inconstitucionalidade.' E conclui assim:
'A – Inconstitucionalidade normativa e material foi oportunamente suscitada no processo em sede de recurso interposto para o TCA e ainda em sede de pedido de esclarecimento e reforma oportunamente formulado nos termos da redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro, que introduzindo uma realidade normativa mais ampla ao pedido de reforma afasta a aplicação da jurisprudência perfilhada pelo Acórdão n.º 325/94 do TC. B – Estamos perante uma situação anómala e excepcional que permite a admissão de recurso para o Tribunal Constitucional porquanto a questão da inconstitucionalidade é reportada aos fundamentos, interpretação e aplicação de normas realizada no Acórdão do TCA Acórdão que perfilhando um entendimento distinto de perfilhado pelo TACL, só em sede de pedido de esclarecimento e reforma permitiu processualmente à recorrente suscitar a questão da inconstitucionalidade.' II. Fundamentos
3. Consultando os autos, verifica-se que, ao contrário do que agora afirma a recorrente, não é verdade que uma 'inconstitucionalidade normativa' tenha sido
'oportunamente suscitada em sede de recurso interposto para o TCA'. O que nesse recurso se escreveu a tal respeito foi, unicamente, o seguinte:
'Nos termos do artº 268º n.º 4 CRP é pois imperioso concluir pela admissibilidade do recurso contencioso interposto pela recorrente, sendo patente a violação desta disposição constitucional pela douta decisão ora recorrida'(itálico aditado). Ora, como é sabido, o Tribunal Constitucional não pode, segundo o nosso sistema de fiscalização concentrada da constitucionalidade, conhecer da eventual inconstitucionalidade de decisões judiciais em si mesmo consideradas (cfr. v.g. Acórdãos n.º 90/85, 461/91, 166/92, e 318/93, publicados, respectivamente, no Diário da República [DR], II Série, de 11 de Julho de 1985, de 24 de Abril de
1992, 18 de Agosto de 1992 e 2 de Outubro de 1993; e, na doutrina, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra,
1993, p. 983, anotação I ao artigo 277º), e nenhuma norma foi indicada, na altura devida, como incompatível com a Constituição. Nem – e embora isso fosse irrelevante face às competências do Tribunal Constitucional – foi apontada outra qualquer 'inconstitucionalidade material' (depreende-se que por oposição à
'inconstitucionalidade normativa') que não a referida.
4. A procedência da alegada suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo só poderia depender, pois, não da alegada razão de facto, atinente à suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, mas da razão de direito: a possibilidade 'embora em termos necessariamente circunscritos e com garantias de contraditório' de o juiz decisor reparar a sua decisão de mérito 'por lapso manifesto de determinação da norma aplicável' implicaria segundo a recorrente, que
'O poder jurisdicional não se esgota (...) com a prolacção da sentença, podendo aí ser suscitada a questão da inconstitucionalidade reportada naturalmente aos lapsos imputados à sentença ou à qualificação jurídica realizada, o que é o caso.' Ora, qualquer que seja o juízo sobre as implicações para a verificação dos requisitos do recurso de constitucionalidade da circunscrita possibilidade conferida agora pelo artigo 669º ao juiz de reparar a sua decisão de mérito, o certo é que o alegado erro manifesto na determinação da norma aplicável – invocação do disposto no Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 de Setembro, em vez do disposto na Lei n.º 49/99, de 22 de Junho – não deu origem à utilização de tal prerrogativa, por o tribunal recorrido ter entendido que
«a redacção do art. 12º do DL 323/89 que versava sobre 'competências específicas' é idêntica à redacção da disposição que a recorrente entende que deveria ter sido aplicada – o art. 26º da Lei n.º 49/99 que versa igualmente sobre 'competências específicas'.» Havendo, portanto, continuidade do conteúdo normativo apesar da alteração do diploma invocado, conclui-se que 'o lapso manifesto na determinação da norma aplicável' é destituído de consequências e, portanto, insusceptível de configurar um daqueles casos em que, por a sentença ter sido 'proferida com violação de lei expressa', como se escreve no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º
329-A/95, de 12 de Dezembro, se poderia eventualmente não ter ainda por esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo. Note-se, ainda, que já antes de Decreto-Lei n.º 329-A/95 existiam situações em que o poder jurisdicional se não esgotava com a prolacção da sentença/acórdão : onde estivesse em causa a nulidade da decisão judicial (artigos 668º e 716º do Código de Processo Civil). Naturalmente, não era pelo facto de haver situações em que o poder jurisdicional se não esgotava após proferida a decisão sobre o litígio que em outras situações se poderia entender do mesmo modo: ou se verificavam as circunstâncias tipificadas no artigo 668º n.º 1, ou se caía no domínio de aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 666º (e, também, 716º) do Código de Processo Civil:
'Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juíz quanto à matéria da causa.' (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.º 62/85, 44/86,
46/88 e 153/92, publicados no DR, II Série, de 31 de Maio de 1985, de 16 de Maio de 1986, de 9 de Maio de 1988 e os Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 21º
(1992), pp. 667-675). Do mesmo modo, no presente caso: o poder jurisdicional não se teria esgotado, permitindo que o tribunal a quo ainda pudesse ter conhecido da questão da constitucionalidade posteriormente ao requerimento de reforma da decisão, se o
'lapso manifesto' na determinação da norma aplicável tivesse dado origem a
'violação da lei expressa'. Como se julgou não ter sido o caso, o poder jurisdicional estava, por essa altura, esgotado e a questão de constitucionalidade normativa já não foi suscitada, como teria de o ter sido, 'durante o processo' (cfr. os últimos Acórdãos citados). Conclui-se, pois, que nenhuma das circunstâncias invocadas pela recorrente no ponto A das conclusões da sua reclamação – aliás, parcialmente contraditórias nas suas consequências – merece atendimento:
· não foi suscitada nenhuma inconstitucionalidade normativa em sede de recurso para o Tribunal Central Administrativo. (De resto, se o tivesse sido, as alegações subsequentes seriam dispensáveis);
· a inconstitucionalidade 'material' aí suscitada não pode ser apreciada pelo Tribunal Constitucional;
· a possibilidade de o tribunal a quo não esgotar o seu poder jurisdicional com a prolacção da sentença, por ter 'ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável', introduzida pela reforma processual civil de 1995, não tem aplicação no caso.
5. Resta, portanto, apurar se estaremos perante uma situação 'excepcional, e certamente anómala, em que o interessado não disponha da oportunidade processual para levantar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão' – para retomar uma fórmula do Acórdão n.º 90/85 (já citado) que encontrou primeiro expressão concreta no Acórdão 136/85 (DR, II Série, de 28 de Janeiro de 1986). Nas conclusões da reclamação da decisão sumária proferida nos presentes autos, a reclamante considera preenchido tal requisito mas não indica em relação a que normas: 'a questão da inconstitucionalidade é reportada aos fundamentos, interpretação e aplicação de normas realizada no Acórdão do TCA.' Pelo contrário, como se referiu, considera que a questão da constitucionalidade
'não se reporta a normas porque o que está em causa é a aplicação de princípios e de normas, nomeadamente do conceito de acto administrativo para efeitos de recurso contencioso.' Sendo assim, como é, ainda que se viesse a considerar a decisão do Tribunal Central Administrativo como uma decisão-surpresa (cfr. vg. Acórdãos n.º 61/92,
569/95 e 595/96, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de 18 de Agosto de 1992, de 13 de Março de 1996 e de 22 de Julho de 1996) para efeitos de considerar tempestiva a suscitação da questão de constitucionalidade, haveria de se indeferir o requerimento de recurso por falta de impugnação da constitucionalidade de uma norma. De certa forma, atendendo a que essa é a justificação da presente reclamação, poderia o Tribunal bastar-se com a ausência, nesta altura, da delimitação de uma questão de constitucionalidade normativa. Porém, porque a reclamação para a conferência visa também a reapreciação da anterior decisão sumária, o Tribunal atenderá também às questões de constitucionalidade normativa que anteriormente tenham sido suscitadas – e que, aparentemente, foram agora abandonadas com a exclusiva referência à decisão.
6. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade dirigido a este Tribunal, a ora reclamante suscitou a inconstitucionalidade de três normas: a do artigo 80º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (por violação do 'princípio da legalidade consagrado no art. 3º da CRP e [do] Princípio do acesso ao direito e aos tribunais consagrado no art. 20º da CRP'); a da norma do artigo 76º, n.º 1, alínea c), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
('por violação dos art. 18º n.º 1 e 2, 268º n.º 3 e 4, e ainda o princípio da estabilidade e segurança no trabalho consagrado nos art. 53º e 58º da CRP'); e a do art. 671º do Código de Processo Civil (por violação dos 'princípios do Estado de Direito democrático e princípio do acesso ao direito e aos tribunais'). Porém, como se deixou referido na decisão sumária, nenhuma destas normas foi impugnada perante o tribunal a quo, de forma a permitir que este se pronunciasse sobre tais questões de constitucionalidade e a permitir que a intervenção do Tribunal Constitucional se fizesse em via de recurso, reapreciando uma decisão anterior. De facto, tais questões de constitucionalidade normativa nunca foram suscitadas ao tribunal recorrido, nem sequer quando se pediu a reforma da decisão (ou seja, quando o seu poder jurisdicional já estava esgotado). O que nesta altura se escreveu quanto às questões de constitucionalidade foi, tão só, o que seguidamente se transcreve:
'Por último, e estando em causa uma relação jurídica de emprego público a não procederem as conclusões constantes de A a E é imperioso [no original está
'impreciso'] concluir pela violação do princípio da legalidade, consagrado no artigo 3º. 53º e 18º n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, porquanto está irremediavelmente afectado o direito ao trabalho e sua estabilidade, assim como os artigos 20º e 268º n.º 3 e 4 da CRP, pois às recorrente não estão a ser garantidas as medidas cautelares adequadas e o acesso ao direito e aos tribunais, a que acresce a falta de fundamentação dos actos e decisão que a vêm a afectar.' Ora, mesmo que se admitisse – como a reclamante ora diz que admite – que nessa altura ainda se não esgotara o poder jurisdicional do tribunal a quo, em resultado do 'lapso manifesto' na invocação de um diploma, ao não suscitar nessa altura, como não suscitou, as questões de constitucionalidade normativa que, posteriormente, terá querido ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional, a ora reclamante estaria a deixar de cumprir o seu ónus de adopção de uma 'estratégia processual adequada' (cfr. Acórdão n.º 479/89, publicado no DR, II Série, de 24 de Abril de 1992). De resto, é pacificamente entendido que mesmo nos casos em que a suscitação da questão de inconstitucionalidade após a decisão recorrida ainda satisfaz aos pressupostos do art. 70º, n.º 1, al. b), a impugnação da norma deve ser feita no momento mais próximo daquele momento em que emergiu a questão de constitucionalidade (v. o Acórdão n.º 2/96, publicado no DR, II Série, de 17 de Abril de 1996). Daí que perca todo o sentido a discussão sobre se a decisão do Tribunal Central Administrativo implicou uma interpretação normativa de todo imprevista e inesperada das três normas que o requerimento do recurso de constitucionalidade pretendeu apresentar como objecto do recurso: ainda que assim tivesse sido – e tendo-se presentes as normas em causa, epigrafadas 'suspensão provisória',
'Requisitos' (da suspensão provisória dos actos) e 'Valor da sentença transitada em julgado', dificilmente isso se poderia admitir –, ainda que assim tivesse sido, repete-se, ao não suscitar de pronto tais questões de constitucionalidade
– fosse interpondo imediatamente recurso de constitucionalidade, fosse incluindo tais questões no requerimento de esclarecimento e reforma que dirigiu ao Tribunal Central Administrativo –, a ora reclamante pôs de parte qualquer possibilidade de o Tribunal Constitucional poder vir a apreciar a conformidade constitucional da interpretação (aliás também não concretizada claramente) de tais normas, adoptada na decisão de 1 de Junho de 2000 do Tribunal Central Administrativo, ao menos ao abrigo do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, que exige, como se escreveu na decisão sumária supra reclamada, 'a suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo.'
7. Improcede, pois, também o que a recorrente alega no ponto B das conclusões da sua reclamação, mesmo que se estivesse perante a situação anómala e excepcional que a natureza e teor das normas identificadas no requerimento de interposição de recurso não deixam supor: mesmo se fosse verdade que 'só em sede de pedido de esclarecimento e reforma [se] permitiu à Recorrente suscitar a questão de constitucionalidade', como conclui, ao não tê-lo feito, como se demonstrou que não fez, a própria Recorrente inviabilizou a possibilidade de tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária reclamada de não tomada de conhecimento do recurso, condenando-se a reclamante em custas e fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Fevereiro de 2001 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa