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Proc. 241/97
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. J... interpôs junto da 1ª Subsecção do Supremo Tribunal Administrativo, em 29 de Novembro de 1989, recurso de anulação do despacho do Ministro dos Negócios Estrangeiros que homologou a lista de graduação para promoção a Conselheiro de Embaixada, na parte em que homologa a graduação em posição superior à sua de vários outros Secretários de Embaixada. Entre outros vícios – vício de forma por falta de fundamentação suficiente, violação de lei por não observância do princípio da proporcionalidade (na vertente da adequação) na fixação dos critérios aferidores dos seus 'conhecimentos e experiência profissional' e da 'aptidão para desempenho das funções próprias da categoria superior' –, o recorrente imputou ao despacho ministerial o vício de violação de lei por aplicação de diploma inconstitucional, a saber, o Decreto-Lei nº
34-A/89, de 31 de Janeiro, o qual disciplina inovatoriamente o regime de promoções da carreira diplomática. A inconstitucionalidade residiria, na perspectiva do recorrente, no facto de o Decreto-Lei nº 34-A/89 ter sido emitido ao abrigo de uma autorização legislativa
– Lei nº 105/88, de 31 de Agosto –, que não respeitou as exigências do nº 2 do artigo 168º (versão de 1982), nomeadamente, não tendo definido o sentido da autorização.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros defendeu-se da alegação de inconstitucionalidade, afirmando, em primeiro lugar, que a Lei nº 105/88 tem 'um sentido mínimo de autorização', pelo que não ofende o artigo 168º, nº 2, da Constituição. Em segundo lugar, dizendo que 'a Administração não pode deixar de aplicar uma lei com fundamento em que ela é inconstitucional se se tratar de mera inconstitucionalidade orgânica ou formal'. Conclui no sentido de que a Administração 'não poderá deixar de aplicar o diploma em causa, enquanto aquela inconstitucionalidade orgânica não for declarada pelo Tribunal Constitucional com força obrigatória geral.'
2. Notificado para produzir alegações, o recorrente reiterou a qualificação de inconstitucional do Decreto-Lei nº 34-A/89, por se basear numa autorização 'em branco'. Seria, aliás, uma deficiência já apontada pelo Tribunal de Contas (em diversas Resoluções, de 14 de Novembro de 1989). A inconstitucionalidade da lei de autorização geraria a inconstitucionalidade consequente do Decreto-Lei autorizado e este, por sua vez, inquinaria de nulidade todos os actos administrativos praticados ao seu abrigo. A exigência de submissão dos poderes públicos à Constituição leva a que qualquer desvio aos seus parâmetros implique a nulidade do acto produzido, afirma o recorrente, citando Marcelo Rebelo de Sousa (O valor jurídico do acto inconstitucional, Lisboa, 1988, p. 233). Finalmente, quanto ao argumento do Ministro dos Negócios Estrangeiros, de que a Administração não poderia furtar-se a aplicar uma norma, com fundamento na sua presumível inconstitucionalidade orgânica, o recorrente contorna-o, afirmando que o que verdadeiramente está em causa já não é discutir a vinculação da Administração a normas inconstitucionais, mas antes a obrigação dos tribunais – neste caso, do Supremo Tribunal Administrativo – de, no âmbito da fiscalização difusa da constitucionalidade, recusarem a aplicação de normas que violem a Constituição e de, com fundamento em inconstitucionalidade consequente, decretarem a nulidade dos actos administrativos que nelas encontrem o seu suporte.
Contra-alegando, o Ministro dos Negócios Estrangeiros negou uma vez mais a existência da inconstitucionalidade da lei de autorização e da reflexa inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 34-A/89. Pelo contrário, o Ministério Público, pronunciou-se em favor da tese sustentada pelo recorrente, nomeadamente, no tocante à questão da inconstitucionalidade formal da lei de autorização legislativa.
3. Por acórdão de 4 de Novembro de 1993, o Supremo Tribunal Administrativo, reconhecendo a precedência da questão de inconstitucionalidade formal da autorização legislativa e da consequente inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 34-A/89, que inquinaria de violação de lei o despacho impugnado, pronunciou-se sobre ela em primeiro lugar. Da análise dos dois artigos da Lei nº
105/88, o Supremo Tribunal Administrativo extraiu que:
' [...] a única coisa que resulta da mencionada Lei é que se pretendeu estabelecer uma disciplina própria adequada à natureza específica da carreira diplomática, não coincidente com a constante dos Decretos-Leis nºs 44/84 e
248/85. Mas nada se disse quanto ao sentido dessa disciplina, ou seja, não se estabeleceu qualquer orientação relativamente ao regime e estrutura a fixar para a carreira diplomática, o que significa que o Governo ficou com a possibilidade de adoptar, sem qualquer restrição, o regime e estrutura que lhe parecessem mais adequados, contrariando assim, sem dúvida, os princípios constantes dos textos constitucionais atrás citados.
[...] A lei nº 105/88 é, portanto, inconstitucional, por infringir o disposto no nº 2 do artigo 168º da Constituição. E a inconstitucionalidade dessa lei, acarretando a inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 34-A/89 [...], faz com que o acto contenciosamente impugnado no presente recurso – proferido [...] num procedimento administrativo que decorreu ao abrigo daquele Decreto-Lei nº 34-A/89 – fique sem suporte legal, estando, portanto, viciado por erro no pressuposto de direito, que integra violação de lei, causal de mera anulabilidade [...]. E com a procedência deste vício fica prejudicada a apreciação dos restantes vícios invocados pelo recorrente'.
Em face desta análise, o Supremo Tribunal Administrativo concedeu provimento ao recurso.
4. Inconformado, o Ministro dos Negócios Estrangeiros interpôs recurso para o Pleno da 1ª Secção, que veio a dar provimento ao recurso, considerando que
'[...] embora em termos sucintos, esse sentido é apontado como consistindo, no que à carreira diplomática respeita, no estabelecimento de «... uma disciplina própria adequada à sua natureza específica, excepcionando-a do disposto nos Decretos-Leis nºs 44/84, de 3 de Fevereiro, e 248/85, de 15 de Julho». O objectivo da autorização é facultar à carreira diplomática uma disciplina própria em matéria de recrutamento e selecção de pessoal e de estruturas das carreiras, consentânea com a natureza própria de que a carreira diplomática se reveste, decorrente da sua inserção nas relações internacionais e do desempenho fora do país. Tem-se por inadequado o regime dos DL 44/84 e 248/85. Por isso se pretende a criação de um regime próprio das suas características. A tanto visa a Lei 105/88 que, com a referência ao fim apontado, define o conteúdo da autorização. Não contém as especificidades do novo regime a criar, mas essas hão-de constar, não das leis de autorização, mas do decreto-lei emitido no uso desta. A Lei 105/88 não ofende pois o nº 2 do artigo 168º da Constituição e por isso não enferma de qualquer inconstitucionalidade. Do mesmo modo, não é inconstitucional o DL 34-A/89, de 31 de Janeiro'.
5. O recorrente J..., não concordando com a decisão do tribunal a quo, interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da inconstitucionalidade da Lei nº 105/88, de 31 de Agosto, bem como da inconstitucionalidade derivada do Decreto-Lei nº 34-A/89, de 31 de Janeiro. O recurso foi admitido por despacho de fls. 279.
Nas alegações produzidas perante o Tribunal Constitucional, o recorrente, com o intuito de comprovar a inconstitucionalidade (directa) da Lei nº 105/88, e a consequente inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 34-A/89, que nela encontra a sua base habilitante – por força do disposto no nº 1, alínea u), e nº 2 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa, na versão de 1982
(actual nº 1, alínea t), e nº 2 do artigo 165º) –, divide a sua argumentação em três partes: na primeira e na segunda, procura em antecedentes jurisprudenciais apoios para a tese de que a Lei nº 105/88 não contém o sentido da autorização que concede; na terceira, analisa o acórdão do Pleno ora recorrido, tentando demonstrar que nele se entendeu como definidora do sentido da autorização legislativa uma expressão claramente insuficiente.
É à jurisprudência do Tribunal Constitucional que o recorrente apela em primeiro lugar. Escolhendo três acórdãos que considerou representativos nesta matéria – os acórdãos nºs 473/89, 70/92 e 358/92 –, da sua análise extrai quatro conclusões essenciais para a definição do sentido da autorização legislativa:
– quanto à sua autonomia, caracteriza-o como um dos elementos essenciais de uma autorização, a par do objecto e da extensão: 'O sentido não pode deixar de consistir numa directiva, ou elenco de directivas, sobre as opções a tomar entre as políticas legislativas básicas alternativamente concebíveis quanto ao objecto da delegação';
– quanto à sua finalidade, indica a de permitir uma repartição de competência legislativa entre Assembleia e Governo, sem deixar de reconhecer à primeira o primado do Poder Legislativo e, sobretudo, sem a despojar de um instrumento de controlo da acção do Governo: 'Na verdade, em face das matérias incluídas na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, o poder normador do Governo não ombreia com o do Parlamento, ainda que sob ressalva da prévia autorização. Relativamente a tais matérias, o Parlamento conserva uma competência exclusiva e, portanto, indelegável, que consiste na tomada das principais opções entre as alternativas de política legislativa concebíveis em face da matéria a disciplinar';
– quanto à densificação do sentido da autorização legislativa, ele há-de conter:
'a) No plano teleológico, as finalidades – traduzidas nos interesses a tutelar – prosseguidas, mediatamente, pela concessão de autorização legislativa e, imediatamente, pelo decreto-lei autorizado; b) No plano axiológico, os princípios capazes de conferir coerência intrínseca ao decreto-lei; c) No plano da regulação, a perspectiva genérica das inovações a introduzir no ordenamento jurídico';
– finalmente, quanto ao modo de definição do sentido da autorização, ele pode fazer-se 'através de proposições definitórias expressas mas com recurso à técnica remissiva'. Além disso, 'a definição do conteúdo e extensão da autorização poderá não estar formulada expressamente na lei sem prejuízo da validade desta quando, através da sua interpretação, se puder alcançar um nível satisfatório de determinação de tais elementos [...].' De seguida, o recorrente invoca mais dois arestos, um do Tribunal de Contas, outro do Supremo Tribunal Administrativo, que decidiram no sentido da inconstitucionalidade da Lei nº 105/88 e da consequente inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 34-A/89. Na terceira parte da sua argumentação, o recorrente vem refutar as razões que o Pleno adoptou no acórdão recorrido para conferir plenitude à definição do sentido da autorização contida na Lei nº 105/88:
1. Em primeiro lugar, onde o Pleno considerou haver a vontade, por parte da Assembleia da República, de que o Decreto-Lei autorizado contivesse 'uma disciplina própria', faltou indicar, em termos minimamente reconhecíveis, onde residiria, com propriedade, essa disciplina;
2. Em segundo lugar, o que o Pleno afirmou ser uma concretização da expressão
'disciplina própria', ou seja, a identificação de critérios rectores que individualizem a carreira diplomática em face das demais, com base na sua especificidade, não se extrai do texto da Lei nº 105/88;
3. Em terceiro lugar, o que o Pleno entendeu ser da competência do Governo – o estabelecimento das especificidades do novo regime –, resulta de uma confusão entre princípios definidores de uma alteração legislativa (que devem estar contidos na lei de autorização) e de normação concreta, de tradução dessas directivas (a verter no texto do decreto-lei autorizado, como é óbvio).
Como remata o recorrente,
'[...] essa perspectiva genérica falece por completo na Lei 105/88, sendo certo que não basta apelar para a adequação da disciplina à natureza especifica da carreira diplomática para que haja um mínimo de previsibilidade quanto ao tipo de soluções que se irão configurar no tocante, por exemplo, aos sistemas de promoção. Tal apelo não constitui um modo aceitável de remissão para uma realidade jurídico-normativa que pudesse preencher esta faceta do sentido da autorização: a especificidade da carreira diplomática não é em si mesma um instituto jurídico de cujos contornos firmes se possa partir com alguma certeza para um perfil genérico das transformações a introduzir. O Governo ficou com inteira liberdade para tomar aí todas as opções.'
O Ministro dos Negócios Estrangeiros apresentou, por sua vez, as suas alegações, pugnando pela tese de que a Lei nº 105/88 definiu em termos suficientes e adequados o sentido da autorização concedida. Nesta linha de raciocínio, concluiu que pela não inconstitucionalidade consequente do Decreto-Lei nº 34-A/89.
II
6. O presente recurso tem por objecto, directamente, a apreciação da conformidade à Constituição da Lei nº 105/88, de 31 de Agosto – lei de
'autorização ao Governo para rever o regime e estatuto da carreira diplomática'
– e, indirectamente, do Decreto-Lei nº 34-A/89, de 31 de Janeiro. As normas que constituem objecto do recurso e que se pretende que este Tribunal aprecie foram, ao menos de modo implícito, aplicadas na decisão recorrida, na medida em que esta julgou improcedentes as questões de constitucionalidade suscitadas por J..., quer quanto à lei de autorização legislativa, quer quanto ao decreto-lei autorizado (cfr., neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 257/97, Diário da Republica, II, nº 228, de 2 de Outubro de
1998, p. 14028 ss). O fundamento do recurso é o carácter vago e incompleto do conteúdo definitório do sentido da autorização legislativa incorporada na Lei nº 105/88, perante a exigência do artigo 168º, nº 2 (hoje artigo 165º, nº 2) da Constituição da República Portuguesa. Comecemos então por transcrever o articulado da lei em apreciação:
'Artigo 1º. Fica o Governo autorizado a legislar em matéria de regime e estrutura da carreira diplomática, nomeadamente no que concerne à selecção e recrutamento, classificação de serviço, sistemas de promoção e graduação na categoria de embaixador, no sentido de estabelecer uma disciplina própria adequada à sua natureza específica, excepcionando-a do disposto nos Decretos-Leis nºs 44/84, de 3 de Fevereiro, e 248/85, de 15 de Julho. Artigo 2º. A autorização conferida pela presente lei tem a duração de 180 dias a contar da data da sua entrada em vigor.'
7. O artigo 168º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa (versão de 1982), por seu turno, prescrevia que 'as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização'. A Lei nº 105/88 define o objecto da autorização: ele consiste na reestruturação da carreira diplomática, carreira essa que envolve especificidades relativamente ao regime geral das carreiras da função pública. Indica também a extensão dessa autorização, ou seja, as áreas de intervenção legislativa abrangidas, dentro do objecto pré-definido: '[...] no que concerne à selecção e recrutamento, classificação de serviço, sistemas de promoção e graduação na categoria de embaixador [...]'. E da mesma forma estabelece um prazo – a duração – dentro do qual o Governo poderá dela fazer uso: 180 dias a contar da data da sua entrada em vigor.
8. O problema coloca-se quanto à definição do sentido da autorização, ou, se se preferir, quanto à suficiência dessa definição. Por outras palavras, a questão reside em saber se, quando a Lei nº 105/88 estabelece que o Governo fica autorizado a legislar '[...] no sentido de estabelecer uma disciplina própria adequada à sua [da carreira diplomática] natureza específica, excepcionando-a do disposto nos Decretos-Leis nºs 44/84, de 3 de Fevereiro, e 248/85, de 15 de Julho', define com suficiência o sentido da autorização concedida. Ora, como se escreveu no acórdão nº 473/89 (Diário da República, II Série, de 26 de Setembro de 1989, p. 9711 ss),
'Se o objecto [da autorização] constitui o elemento enunciador da matéria sobre que versa a autorização, e a extensão especifica qual a amplitude das leis autorizadas, através do sentido são fixados os princípios base, as directivas gerais, os critérios rectores da actividade legislativa delegada. Este último elemento de condicionamento substancial constitui já não um limite externo, definidor dos contornos da autorização, mas um verdadeiro limite interno à própria autorização, porque é essencial para a determinação das linhas gerais das alterações a introduzir numa dada matéria legislativa. A lei de autorização, em obediência àquele preceito constitucional há-de definir os princípios fundamentais que concedem unidade lógico-política à disciplina a editar pelo Governo, e há-de estabelecer também as directivas correspondentes e reconduzíveis à determinação das finalidades a que aquela disciplina tem de se adequar.' Ou, na formulação do acórdão nº 70/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., p. 225 ss), apoiando-se na obra de António Vitorino, As autorizações legislativas na Constituição portuguesa, polic., Lisboa, 1985, p. 240,
'O sentido da autorização, sendo um dos elementos do «conteúdo mínimo exigível» da lei de autorização, em relação à qual opera como condição da sua própria validade, só se encontra efectivamente contemplado quando as indicações a esse título constantes da lei autorizadora permitam um juízo seguro de conformidade material do conteúdo do acto delegado em relação ao da lei delegante. Donde resulta que, se o sentido não tem de exprimir-se em abundantes princípios ou critérios directivos (que levados às últimas consequências até poderiam condicionar totalmente em termos de conteúdo o exercício de poderes delegados), deverá, pelo menos, ser suficientemente inteligível para que o seu conteúdo possa operar com clareza como parâmetro de aferição dos actos delegados e consequentemente da observância por parte do legislador delegado do essencial dos ditames do legislador delegante.'
Este entendimento tem sido frequentemente repetido pelo Tribunal Constitucional (vejam-se, entre muitos outros, os seguintes acórdãos: nº 358/92, Diário da República, I Série - A, nº 21, de 26 de Janeiro de 1993, p. 297 ss; nº
163/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., p. 415 ss; nº 311/93, Diário da República, II Série, nº 170, de 22 de Julho de 1993, p. 7801 ss; nº
302/95, Diário da República, II Série, nº 174, de 29 de Julho de 1995, p. 8812 ss; nº 114/96, Diário da República, II Série, nº 104, de 4 de Maio de 1996, p.
5965 ss; nº 414/96, Diário da República, II Série, nº 163, de 16 de Julho de
1996, p. 9671 ss). Sintetizando, como faz o recorrente,
'Se o objecto significa a matéria campo da regulação, e a extensão os aspectos que delimitam o âmbito do objecto, o sentido tem de ser algo que já não respeita ao quê, ou seja, àquilo que será regulado, mas ao como, isto é, ao modo da regulação'.
9. Quando, no artigo 1º, a Lei nº 105/88 pretende definir o sentido da autorização que concede como o '[...] de estabelecer uma disciplina própria adequada à sua [da carreira diplomática] natureza específica, excepcionando-a do disposto nos Decretos-Leis nºs 44/84, de 3 de Fevereiro, e 248/85, de 15 de Julho', não densifica minimamente – pois o que se pretende é que trace um
'conteúdo mínimo exigível' ao reconhecimento de uma vontade legislativa orientada por um órgão delegante, a Assembleia da República – os princípios a que o Governo deverá ater-se na sua intervenção legislativa. Com efeito, e subscrevendo a doutrina expendida nas Resoluções do Tribunal de Contas, de 14 de Novembro de 1989 (referidas e parcialmente transcritas nas alegações do recorrente), através das quais foi recusado o visto a decretos de nomeação de embaixador, de promoção a ministro plenipotenciário de 1ª classe e de promoção a ministro plenipotenciário de 2ª classe:
'i) – No caso vertente, quais os objectivos funcionais básicos do «serviço diplomático» que caracterizam a sua «natureza específica» de modo a que o Governo lhe adeque a «disciplina própria» em matéria de regime e estrutura da carreira diplomática? Quais os princípios do regime geral dos concursos estabelecidos no Decreto-Lei 44/84, designadamente no seu artigo 4º (igualdade de condições dos candidatos, liberdade de candidatura, divulgação dos métodos de selecção e sistemas de classificação, critérios objectivos de avaliação, neutralidade de composição do júri, direito de recurso), que hão-de ser excepcionados na «disciplina própria» dos «sistemas de promoção e graduação» da carreira diplomática? Quais os princípios básicos a que deve obedecer o processo de nomeação nas categorias de acesso? Quais as categorias cujo acesso pode ser oficiosamente determinado, independentemente da iniciativa dos interessados? Qual o critério a que há-de obedecer as nomeações para essas categorias? j) – A Lei 105/88 não emitiu qualquer directiva sobre estas e outras áreas do
«regime e estrutura da carreira diplomática», não imprimiu qualquer «sentido» que constitua «parâmetro de aferição» para a legislação a editar pelo Governo ao seu abrigo, pelo que constitui um «cheque em branco» violador do nº 2 do artigo
168º da Constituição da República.'
Do texto do artigo 1º da Lei nº 105/88, com efeito, nada se depreende quanto às linhas mestras do diploma a elaborar. Perante o seu carácter vago, ficam por responder algumas questões, nomeadamente: qual a disciplina própria que vai instituir-se – sendo certo que ela há-de revestir-se de especificidades, atenta a natureza da carreira diplomática; quais os critérios que nortearão a actividade legiferante do Governo quando se debruçar sobre a '[...] selecção e recrutamento, classificação de serviço, sistemas de promoção e graduação na categoria de embaixador [...]'
Não parece, com efeito, que a Assembleia da República tenha procedido a uma 'predefinição parlamentar da orientação política da medida legislativa a adoptar' (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, p. 678). A fórmula demasiado elíptica do texto da Lei nº 105/88 leva a que a autorização que contém se traduza num verdadeiro 'cheque em branco' ao Governo, contrariando o espírito da lei fundamental, que consagra o instituto das autorizações legislativas a fim de permitir um controlo da actividade legiferante do Governo pela Assembleia, em matérias inseridas na área da reserva relativa da competência da última.
Em conclusão, dizer que na definição da disciplina própria da carreira diplomática deve o Governo ter em conta a sua [da carreira diplomática]
'situação específica' nada esclarece sobre o regime a adoptar. Assim decidiu o Tribunal Constitucional, face a uma norma de teor semelhante, no acórdão nº
233/97 (Diário da República, II Série, de 12 de Maio de 1997, p. 5469 ss). Ora, como lembra o recorrente, invocando a doutrina alemã, 'a imposição da definição de um conteúdo, finalidade e extensão (Inhalt, Zweck und Ausmass) na lei de delegação serve não apenas a certeza própria do estado de Direito, mas também a garantia da ordenação das funções no quadro do sistema de separação de poderes [...]'.
10. A falta de definição suficiente do conteúdo de uma lei de autorização legislativa configura uma inconstitucionalidade formal. A Lei nº 105/88, em virtude da ausência de densificação do conteúdo da autorização que incorpora, é, por isso, formalmente inconstitucional e inquina de inconstitucionalidade todos os actos normativos que nela encontrem o seu suporte. Em consequência, o Decreto-Lei nº 34-A/89, de 31 de Janeiro, emitido à sombra da Lei nº 105/88, de 31 de Agosto, padece de inconstitucionalidade derivada ou reflexa.
III
11. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar inconstitucional a Lei nº 105/88, de 31 de Agosto, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea u), e nº 2, da Constituição da República Portuguesa, e, em consequência, julgar igualmente inconstitucional o Decreto-Lei nº 34-A/89, de 31 de Janeiro; b) Conceder provimento ao recurso, ordenando-se a reforma do acórdão recorrido em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 22 de Junho de 1999 Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida (vencido quanto à questão prévia do conhecimento do recurso, conforme da declaração que junto) DECLARAÇÃO DE VOTO Entendi que o Tribunal não deveria ter tomado conhecimento do presente recurso, e, nessa parte, fui vencido, sem prejuízo de concordar em que a Lei n.º 105/88 se encontra ferida de inconstitucionalidade pelo facto de embora se possa encontrar nela algum sentido fundante do diploma autorizado, todavia esse sentido é manifestamente insuficiente para que se possa efectuar um controlo das soluções adoptadas no diploma autorizado, o que é bastante para fazer claudicar a constitucionalidade da lei autorizadora. As razões da minha discordância quanto à questão prévia que suscito decorrem dos próprios termos da decisão, que extrai da inconstitucionalidade da Lei n.º
105/88, diploma antecedente e condicionante, sem mais, a inconstitucionalidade do subsequente Decreto-Lei n.º 34-A/89, de 31 de Janeiro.
É um facto que a inconstitucionalidade consequente pode determinar o juízo de inconstitucionalidade de normas contidas em decreto-lei emitido ao abrigo de autorização legislativa. Provado que seja que esta última é insolvente no que respeita à sua conformidade com a Constituição, a norma que nela se fundar não a poderá invocar como fundamento de validade e, se a conjuntura processual o permitir, o Tribunal Constitucional poderá julgar inconstitucional a norma autorizada que é objecto do recurso sem ter de, pontualmente, proceder ao confronto directo do seu conteúdo com as normas constitucionais. Mas também é verdade que pode a norma contida em decreto-lei autorizado, pela matéria de que trata e pelo seu conteúdo preceptivo, caber sem dificuldade nos poderes de conformação legislativa do Governo, Pode este órgão incluí-la em decreto-lei autorizado para fins, por hipótese, de edição de uma disciplina completa e actualizada em um único diploma de um determinado instituto jurídico. Tal como pode suceder, muito em particular em matéria de legislação do trabalho respeitante à função pública, que o legislador, pelo menos quanto a algumas normas, se tenha limitado a reproduzir normas constantes de diplomas anteriores
(para estas hipóteses, poderão consultar-se os Acórdãos nºs 218/89, e 430/93, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., 237 e segs., e 25º vol., 269 e segs., respectivamente). Nesta ordem de ideias, um juízo de inconstitucionalidade consequente só cobra legitimidade se puder estabelecer-se uma relação de consequencialidade, que terá de ser uma relação de inequívoca e total dependência entre antecedente e consequente. Ou seja, se perante duas ou mais normas em confronto, colocadas em actos legislativos diferentes, se puder dizer que aquela que rege a relação jurídica sub judicio – a norma consequente – é condicionada, na sua validade, por uma outra – a norma antecedente, em termos tais que determinada norma será inconstitucional, não por vício dela própria mas por força de vício da norma que
é o seu fundamento de validade. Ponto é que a consequencialidade se mostre ser plena, ponto é que esteja excluída a subsistência de possíveis fundamentos autónomos de validade da norma que é objecto directo do recurso. Para que assim seja, não pode deixar de se saber previamente que norma é essa. E, para esse efeito, cabe ao recorrente e apenas a ele, não ao Tribunal, definir, de forma precisa, de que norma se trata. Assim o impõe o princípio do pedido, assim resulta também da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Nestes casos, não é puro formalismo a exigência legal de indicação da norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que seja apreciada (artigo
75º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional). A fiscalização da constitucionalidade é de normas, não é de diplomas. Pretendeu o recorrente que o Tribunal apreciasse 'a inconstitucionalidade da Lei n.º 105/88, de 31 de Agosto', bem como a 'inconstitucionalidade derivada do Decreto-Lei autorizado', tout court, conforme refere no requerimento de interposição, no mesmo plano se mantendo nas conclusões das alegações. É manifestamente insuficiente e insatisfatório, pois não se tendo questionado a constitucionalidade de uma única norma do diploma legal autorizado, não se pode efectuar o controlo da sua constitucionalidade através da falta de sentido da lei de autorização, pelas razões expostas (Neste sentido se orientou o Acórdão n.º 148/99, de 9 de Março de 1999, ainda inédito).
É pelas linhas acabadas de explicitar que se vem orientando a jurisprudência do Tribunal Constitucional. Pacífica e uniformemente vem sendo entendido que a Constituição elegeu como conceito identificador do objecto do recurso de constitucionalidade o conceito de norma jurídica. E em jurisprudência recente, entendeu o Tribunal que a referência globalizante ao conjunto de todas as normas de um diploma não se assume como meio idóneo de identificação precisa e perceptível do objecto do recurso (Acórdão n.º 122/98, publicado no 'Diário da República', II Série, de 24 de Abril de 1998, e outros arestos nele também citados).
Assim, de acordo com esta posição, não tomaria conhecimento do presente recurso de constitucionalidade Paulo Mota Pinto (vencido nos termos da declaração de voto que junto). Declaração de voto Votei vencido, antes do mais, por entender que não se devia ter tomado conhecimento do recurso na parte respeitante ao Decreto-Lei nº 34-A/89, de 31 de Janeiro. Tratando-se de um recurso contra decisão que aplicou norma cuja inconstitucionalidade há-de ter sido suscitada durante o processo (alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional), fundamentado em inconstitucionalidade formal resultante de insuficiência da autorização legislativa, acontece que, durante o processo e perante este Tribunal, o recorrente impugnou globalmente todo o Decreto-Lei autorizado, sem individualizar as normas deste diploma que reputa inconstitucionais e cuja conformidade constitucional pretende ver apreciada. E, desde que – como a meu ver acontece – exista lei de autorização legislativa e ela não seja totalmente carente de sentido (e que, portanto, algumas das normas do diploma autorizado possam albergar-se nesse sentido), não pode considerar-se bastante a suscitação da inconstitucionalidade ou a impugnação de um diploma in totum, nem para provocar uma decisão do tribunal a quo sobre as normas eventualmente feridas de inconstitucionalidade, nem para adequada delimitação do objecto do recurso. Como já resulta do que disse, também não teria considerado a Lei n.º 105/88, de
31 de Agosto, inconstitucional. De tal diploma resulta que se pretende o estabelecimento de uma disciplina específica para a carreira diplomática, adequada à sua natureza, e que o regime constante dos Decretos-Leis n.ºs 44/84, de 3 de Fevereiro e 248/85, de 15 de Julho, não é considerado adequado, devendo ser excepcionado no estabelecimento desse regime – a previsão das excepções adequadas à natureza específica da carreira diplomática é deixada ao diploma autorizado. Ficam-me dúvidas de que tal lei de autorização legislativa, embora sucinta, seja destituída de um mínimo de sentido, e não a teria, portanto, julgado inconstitucional. Luís Nunes de Almeida