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Proc. nº 590/98 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A... e M..., com os sinais dos autos, interpuseram recursos, no Supremo Tribunal Administrativo (STA) de indeferimento tácito, imputado ao Secretário de Estado da Segurança Social, de recurso hierárquico interposto de lista de classificação final dos candidatos ao concurso interno de acesso à categoria de técnico principal da carreira técnica de serviço social, no Centro Regional de Segurança Social de Lisboa (CRSSL).
Nos recursos contenciosos alegaram a ilegalidade da admissão ao concurso de MF... e outras, por entenderem que as respectivas nomeações como técnicas de serviço social de 1ª classe padeciam de vício gerador de nulidade (falta de concurso).
Na pendência do recurso, as contra-interessadas e a entidade recorrida invocaram a inutilidade superveniente da lide com fundamento na publicação do DL nº.
260/93, de 27 de Julho, que teria regularizado a situação das recorridas.
Pelo acórdão recorrido foi dado provimento aos recursos; aí, ponderada a norma contida no artigo 36º do DL nº. 260/93, recusou-se a sua aplicação com fundamento em inconstitucionalidade material, por, através de lei inovadora retroactiva, se ratificar um acto administrativo ilegal e inválido – violação dos artigos 18º nºs. 2 e 3 e 268º nº. 4 (por lapso manifesto, indica-se '269º nº. 2') da CRP, na redacção anterior à introduzida pela Lei Constitucional nº.
1/97.
É deste acórdão que vem interposto, pelo Ministério Público, o presente recurso, ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea a) da Lei nº. 28/82.
Nas suas alegações, o Magistrado recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1º - A definição das formas de recrutamento e selecção do pessoal e de provimento de vagas na função pública, a realizar, aliás, em regra, através de concurso público por força do nº. 2 do artigo 47º da Constituição – matéria regulada nos artigos 21º do Decreto-Lei nº. 44/84, ambos de 3 de Fevereiro, editados na sequência de autorização legislativa conferida ao Governo para prover sobre tal tema – respeita às 'bases do regime e âmbito da função pública' nos termos da alínea v) do nº. 1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa, pelo que terá de constar necessariamente de diploma proveniente da Assembleia da República ou editado pelo Governo na sequência de autorização legislativa.
2º - A norma constante do artigo 36º do Decreto-Lei nº. 260/93, de 23 de Junho,
- diploma editado no exercício da competência legislativa própria do Governo – ao dispensar o concurso público, com efeitos retroactivos, tendo em vista a regularização ou convalidação de actos de nomeação em comissão de serviço, praticados durante o período de instalação do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, é organicamente inconstitucional, por violação daquele preceito da Lei Fundamental.
3 º - Termos em que deverá confirmar-se, embora com fundamento diverso, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
Contra-alegou, apenas, MF..., sustentando a confirmação do julgado quanto à inconstitucionalidade material da referida norma e acompanhando o recorrente no que concerne à invocada inconstitucionalidade orgânica.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Dispõe o artigo 36º do DL 260/93:
'As nomeações em comissão de serviço, efectuadas no Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, durante o período de instalação, antes da aprovação dos mapas de pessoal por despacho dos Secretários de Estado da Administração Pública, do Orçamento e da Segurança Social, publicado no Diário da República, 2ª série, de
30 de Outubro de 1985, consideram-se regularizadas, desde que, à data da nomeação, se encontrassem preenchidos os requisitos habilitacionais e de tempo de serviço.'
A razão e o sentido desta norma só pode compreender-se tendo em conta os termos em que vinha sendo apreciada, no Supremo Tribunal Administrativo, a legalidade das nomeações (sempre consideradas verdadeiras promoções) em comissão de serviço, nos serviços públicos em regime de instalação.
E é o que passa a fazer-se.
3 - Data de 18/1/90 o primeiro acórdão do STA sobre a nomeação de pessoal para os serviços públicos, em regime de instalação, (no caso, precisamente o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa), sem precedência de concurso. Essa decisão, publicada in 'Apêndices ao Diário da República', do ano respectivo, a pp. 302 e segs., foi proferida em recurso contencioso onde era impugnado um acto administrativo que nomeava 14 técnicos principais para aquele referido Centro, sem precedência de concurso e vinha interposto por interessado que se arrogava o direito de ser provido na referida categoria. O STA decidiu, então, que tratando-se de uma situação de acesso a categoria superior, vigorava a regra do concurso nos termos do artigo 21º do DL nº. 41/84 e 5º do DL nº. 44/84, ambos os diplomas de 3/2; não tendo sido precedido o acesso de concurso, as nomeações mostravam-se inquinadas de vício gerador de nulidade, por aplicação do disposto no artigo 88º do DL nº. 100/84, como expressão de princípio geral aplicável aos actos dos órgãos da administração central e institucional. Em 7/5/92 são proferidos pelo mesmo Tribunal dois outros arestos, publicados in
'Apêndices ao Diário da República' do ano respectivo a pp. 2815 e segs. e 2896 e segs., sobre a mesma matéria (nomeações, sem precedência de concurso, em serviços públicos – nos casos, administrações regionais de saúde – em regime de instalação) e com idêntica decisão: nulidade das nomeações sem precedência de concurso. O primeiro destes acórdãos veio a ser confirmado pelo Acórdão do Pleno da Secção de 25/11/93, in 'Apêndices ao Diário da República' do ano respectivo, a pp. 586 e segs. Já em 28/3/95 veio a ser proferido novo acórdão do STA, confirmado por acórdão do Pleno da Secção de 9/10/96, sempre com a mesma doutrina, aplicável, também aqui, a nomeações para o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, durante o período de instalação. O acórdão recorrido, proferido em recurso interposto em 29/1/92, insere-se, assim, numa linha jurisprudencial firme do STA, de que não são conhecidas discrepâncias.
É na pendência deste recurso contencioso que se publica o DL nº. 260/93 de 23 de Julho, de 23 de Julho, de onde, como se disse, os recorridos particulares retiram um fundamento para requerer a 'inviabilidade do recurso' por
'inutilidade superveniente'; este fundamento radicava, mais precisamente, na norma do artigo 36º do DL nº. 260/93. Rejeitado, primeiramente, por despacho de fls. 175 e segs., o efeito pretendido pelos recorrentes – a invocação daquela norma foi entendida não como causa de inutilização do recurso mas como novo fundamento da regularidade das nomeações das requerentes para a categoria com base na qual se haviam candidatado e sido admitidas ao concurso em causa – o acórdão impugnado veio, a final – disse-se já
– a recusar a aplicação da referida norma por violação dos artigos 18º nºs. 2 e
3 e 268º nº. 4 da CRP (versão anterior à revisão de 97). Ali se entendeu que o preceito legal 'interpretado no sentido de, com eficácia retroactiva pretender alterar o regime legal aplicável aos actos de nomeação inquinados de vício gerador de declaração de nulidade, eliminando tal vício, então o dito preceito não deixaria de ser inconstitucional por ofensa do disposto nos artigos 18º nºs. 2 e 4 e 269º nº. 2 da CRP, na versão anterior à introduzida pela Lei Constitucional nº. 1/97 de 20/9/97'. E, mais adiante, diz-se:
'O citado artigo 36º do D. Lei 260/93, a ser interpretado nos moldes já explicitados, não deixaria de se configurar como norma restritiva do conteúdo do direito ao recurso contencioso.' Como se deixou descrito, à data em que foi publicado o DL nº. 260/93 a jurisprudência do STA havia já definido uma posição clara sobre a validade dos actos de nomeação de pessoal, todos eles entendidos – repete-se - como de acesso a categoria superior, sem precedência de concurso, em serviços públicos, sob o regime de instalação, no sentido da sua nulidade. Os actos administrativos estavam, assim, feridos de um dos tipos mais graves de ilegalidade, insanável pelo decurso do tempo ou por qualquer outra intervenção administrativa, designadamente por actos que os pretendessem ratificar ou reformar. Por outro lado, a legitimidade que, implícita ou explicitamente, o STA reconheceu aos recorrentes daqueles actos ou de outros em que se repercutia o vício dos primeiros, pressupunha o entendimento de que, do mesmo passo que esses actos eram favoráveis para os seus directos destinatários, lesavam direitos ou interesses de terceiros (a recorrentes). A norma do artigo 36º do DL nº. 260/93 surge num diploma que consagra um novo regime jurídico dos centros regionais de segurança social destinado à reestruturação destes institutos públicos e a estabelecer novas regras para a sua gestão. Está ela inserida no Capítulo epigrafado de 'Disposições finais e transitórias' e sobre a razão do seu conteúdo dispositivo nada se adianta no preâmbulo do diploma, que nem uma referência – por breve que seja – lhe dedica. Conhecida, porém, a citada jurisprudência do STA que, bania da ordem jurídica actos de nomeação só aparentemente há muito consolidados, jurisprudência essa que previsivelmente se manteria sempre que surgissem novos casos de impugnação
(não sujeita a prazo com a invocação da nulidade dos actos recorridos), torna-se claro o sentido daquela norma. Na verdade, qualquer que fosse a interpretação defendida pela Administração dos preceitos reguladores das nomeações sem precedência de concurso, ou que se entenda como mais correcta, impunha-se como 'direito vivo' aquele que o STA vinha reiteradamente 'criando'; e, nesta medida, a norma pretende, exclusivamente com efeitos reportados ao passado, sanar a ilegalidade
(insanável) dos actos de nomeação nas referidas condições, interferindo mesmo – como é, aliás, o caso dos autos – com a decisão de recursos então pendentes e onde, portanto, se exercera já o direito ao recurso contencioso por parte de terceiros lesados. A 'regularização' das nomeações, estabelecida no artigo 36º do DL nº. 260/93, se não tem apenas o sentido de 'sanar' as nomeações sem precedência de concurso
('regularizar' tem a amplitude suficiente para compreender todas as situações de ilegalidade, tornando legais actos que se supõem ilegais), abrange necessariamente estes casos; e foi, pelo menos, com tal interpretação que o acórdão recorrido recusou a aplicação da norma por inconstitucionalidade material. Ora, com essa interpretação, a norma é, como se passa a demonstrar, materialmente inconstitucional, perfilando-se como parâmetro de constitucionalidade a garantia de recurso contencioso dos actos administrativos com fundamento em ilegalidade, estabelecida, então, no artigo 268º nº. 4 da CRP.
4 - Patente a retroactividade da norma, cabe começar por dizer que a retroactividade da lei não é em si mesma vedada pela Constituição, com ressalva do que se dispõe nos artigos 29º e 18º nºs. 2 e 3 da CRP – esta uma jurisprudência reiterada e pacífica do Tribunal Constitucional nos inúmeros acórdãos que versaram a matéria. Não se questiona, também, na jurisprudência e, em geral, na doutrina, que o direito ao recurso contencioso, previsto logo na versão original da Constituição e mantido em todas as suas revisões – é um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, a ele se aplicando o regime estabelecido no artigo 18º da CRP (artigo 17º da CRP). Mas, deste modo, a retroactividade da norma do artigo 36º do DL nº. 260/93 não obedecerá aos citados comandos constitucionais se consubstanciar uma restrição do direito ao recurso contencioso, sendo certo que este vem consagrado no artigo
268º nº. 4 da CRP (versão de 89) sem qualquer expressa restrição, que igualmente se não consente à lei. Durante os anos de 1983 e 1984, vários foram os acórdãos do Tribunal Constitucional que versaram matéria muito semelhante à dos presentes autos (cfr. Acs. 11/83, 20/83, 23/83, 28/83, 5/84, 9/84, 10/84, 13/84, 17/84, 18/84, 19/84,
28/84, 32/84, 33/84, 34/84, 35/84, 51/84, 73/84). A diferença residia fundamentalmente em dois aspectos. Por um lado, os actos então 'convalidados' eram lesivos dos próprios destinatários, enquanto os direitos ou interesses lesados no caso que nos ocupa são de terceiros, operando a 'regularização' em benefício dos destinatários; por outro lado, enquanto, então, o vício que inquinava os actos gerava mera anulabilidade, agora e de acordo com a citada jurisprudência do STA, a ilegalidade fulminava com 'nulidade' os actos em causa. Nenhuma destas diferenças, porém, justifica um diverso tratamento jurídico-constitucional da questão, face à garantia de recurso contencioso, ao menos numa das vias que o Tribunal Constitucional, em alguns dos acórdãos citados, trilhou na solução dos recursos. Na verdade, a vantagem que resulta da 'regularização' das nomeações para os nomeados, operada pelo artigo 36º do DL nº. 260/93, traduz-se em prejuízo para terceiros a quem, como interessados directos, a lei (e a jurisprudência) confere legitimidade para a impugnação dos actos de nomeação ou de outros em que se repercutem os vícios dos primeiros. O recurso contencioso não é, obviamente, um direito apenas dos destinatários dos actos impugnados mas de todos os interessados no afastamento desses actos da ordem jurídica como actos lesivos da sua esfera jurídica. No que concerne à segunda diferença apontada, ela só pode funcionar em termos de reforçar os fundamentos de inconstitucionalidade da norma daquele artigo 36º do DL nº. 260/93, no ponto em que para todos os lesados pelos actos de nomeação e considerando a concreta ilegalidade que a inquinava, nunca se poderia ter por consolidadas as situações reguladas por esses actos, pelo que o direito ao recurso contencioso era afectado (ou eliminado) não só relativamente àqueles que já o haviam exercido (e é o caso dos autos), como em relação aos que, não o tendo ainda feito, se encontrariam sempre em tempo para o fazer. Ora, tem-se por seguro que, na interpretação dada à norma citada, tendo como efeito, também, a 'sanação' das nomeações efectuadas sem precedência de concurso, aquela não elimina apenas um dos fundamentos do recurso, antes
'recoloca' na ordem jurídica actos que segundo o 'direito vivo' – independentemente da posição que se assuma relativamente ao quadro normativo que regulava aquelas nomeações – definido pela jurisprudência, eram 'ab initio' insusceptíveis de produzir qualquer efeito jurídico. Escreveu-se a propósito da garantia do recurso contencioso, no Acórdão nº.
35/84:
'Sem tomar posição sobre a questão de saber se o legislador tem competência jurídica para validar actos administrativos ilegais, seguramente lhe é interdito, na geometria do artigo 269º nº. 2 da Constituição, texto de 1976
(agora artigo 268º nº. 3) assim proceder sempre que tal importe uma fuga ao controle jurisdicional desses actos, designadamente quando haja nascido para os interessados lesados o direito de os impugnar contenciosamente.' O trecho transcrito ajusta-se, com precisão, ao caso dos autos. Na verdade, na pendência de recurso contencioso em que o fundamento da impugnação era, concretamente, o da falta de concurso que, de acordo com a jurisprudência do STA, gerava a nulidade dos actos de nomeação das recorridas particulares, o Governo aprova uma norma que, ao 'regularizar' as situações, elimina essa fonte de invalidade dos actos, esgotando-se os efeitos da norma apenas na sua aplicação retroactiva. Mas não é apenas um dos fundamentos possíveis de impugnação do acto lesivo que a norma do artigo 36º do DL nº. 260/93 elimina pois, tornando legal um acto atingido pelo grau máximo de ilegalidade – decorrente, para mais, do único vício invocado pela recorrente – é o próprio direito ao recurso contencioso, que resulta restringido, senão mesmo eliminado. Por outro lado, mesmo para quem admita que a norma retroactiva que 'sane' actos anteriormente ilegais não ofende, só pelo facto da retroactividade, a garantia do recurso contencioso, ela não se exime ao juízo de inconstitucionalidade quando – como é o caso – tem como único objectivo impedir o recurso aos tribunais relativamente àqueles actos, sem também regular a matéria em causa para o futuro (cfr. Ac. nº. 28/84 e voto de vencido do Cons. Luís Nunes de Almeida no Acórdão nº. 20/83). Que conteúdo afinal teria aquele direito se os lesados por um acto ilegal (nulo) que haviam impugnado, pudessem ser surpreendidos, na pendência do recurso, por uma providência formalmente legislativa com o único sentido de convalidar aquele acto?
É certo que, no caso, se pode adivinhar uma razão de interesse público na intervenção legislativa: proteger o regular funcionamento de um serviço que resultaria afectado pela instabilidade permanente (o recurso com fundamento em nulidade não está sujeito a prazo) das nomeações efectuadas sem precedência de concurso. Simplesmente, o que se repudia é que a tutela desse bem, porventura com garantia constitucional, se possa concretizar, face ao disposto no artigo 18º nºs. 2 e 3 da CRP, com uma lei retroactiva (cuja generalidade e abstracção é, aliás, questionável) que atinge o conteúdo essencial do direito ao recurso contencioso.
Bem se decidiu, pois, no acórdão recorrido, ao recusar a aplicação da norma do artigo 36º do DL nº. 260/93 por violação do direito ao recurso contencioso
(artigos 268º nº. 4, em conjugação com o artigo 18º nºs. 2 e 3, ambos da CRP – revisão de 89), ficando prejudicado o conhecimento da alegada inconstitucionalidade orgânica da mesma norma.
5 - Decisão Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 29 de Junho de 1999 Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida (votei a decisão,porquanto a norma questionada se destina exclusivamente a impedir o recurso administrativo vinha considerando como ilegais, o que, a meu ver, conforme decorre da declaração de voto que juntei ao Acórdão nº 20/83, configure uma violação do princípio da confiança)