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Proc. nº 449/98
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório J... instaurou, junto do Tribunal do Trabalho de Portalegre, acção emergente de contrato individual de trabalho contra Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de C..., pedindo a condenação da ré no pagamento de diferenças salariais e de um complemento de reforma.
O Tribunal do Trabalho de Portalegre, por decisão de 25 de Outubro de 1994, absolveu a ré do pedido no que respeita às diferenças salariais, condenando-a no pagamento do complemento de reforma, nos termos das cláusulas
113º e 114º da Convenção Colectiva de Trabalho para as Caixas de Crédito Agrícola (Boletim do Trabalho e Emprego, nº 55/87, de 8 de Dezembro de 1987).
A ré interpôs recurso da parte condenatória da sentença de 25 de Outubro de 1994. Por seu turno, o autor interpôs recurso subordinado da decisão absolutória. Nas contra-alegações apresentadas no âmbito do recurso interposto pela ré, o autor, remetendo para jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, invocou a violação do princípio da igualdade para sustentar a sua posição em relação à questão em apreciação (pagamento do complemento de reforma).
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 30 de Janeiro de
1996, concedeu provimento à apelação e negou provimento ao recurso subordinado, revogando a sentença condenatória e absolvendo, consequentemente, a ré dos pedidos deduzidos. Para tanto (no que respeita à apelação), fez aplicação expressa do artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, na redacção originária (o trabalhador havia passado à reforma em Abril de 1992 - doc. De fls 8, de cujo o conteúdo a ré só teve conhecimento em Setembro de 1992 - , não lhe sendo portanto aplicável o Decreto-Lei nº 209/92, de 2 de Outubro), considerando, consequentemente, as referidas cláusulas do instrumento de regulamentação colectiva do trabalho nulas, por violação de lei expressa. J... interpôs recurso do acórdão de 30 de Janeiro de 1996 para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 26 de Março de 1998, negou provimento ao recurso, confirmando consequentemente a decisão recorrida.
Nesse aresto, o Supremo Tribunal de Justiça, afrontou expressamente a questão relacionada com a conformidade à Constituição da norma contida no artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, afirmando que o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 966/96, de 11 de Julho de
1996, que julgou materialmente inconstitucional a referida norma, não poderia influenciar a decisão dos autos, dado não Ter força obrigatória geral e não tomar em conta a redacção do Decreto-Lei nº 209/92, de 2 de Outubro. J... interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigos
280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro.
A relatora proferiu despacho, ao abrigo do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, convidando o recorrente a indicar a peça processual onde suscitou a questão de constitucionalidade normativa.
O recorrente respondeu, afirmando que a questão de constitucionalidade normativa foi suscitada perante o Tribunal da Relação de Coimbra e perante o Supremo Tribunal de Justiça.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente alegou, concluindo o seguinte:
1ª - O artigo 6º nº 1 alínea e) do D. L. nº 519 C 1 / 79, de 29 de Dezembro, deve ser considerado materialmente inconstitucional uma vez que, a sua aplicação leva à restrição de direitos fundamentais constitucionalmente tutelados, de uma forma denecessária, desproporcional, desequilibrada e inadequada, nomeadamente, viola os artigos 56º nºs 3 e 4, 17º e l8º nº 2 da Constituição;
2ª - O artigo 6º nº 1 alínea e) do mesmo diploma legal deve ser considerado inconstitucionalmente orgânico, na medida em que na sua versão originária viola o artigo 167º alínea c), 58º nºs. 3 e 4 e 17º, também na sua versão originária, visto que está inserido dentro de um decreto-lei aprovado pelo Governo, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da C.R.P. no exercício de competência legislativa alegadamente própria, quando é da competência exclusiva da Assembleia da República;
3ª - Não obstante não Ter o recorrente invocado os artigos de que agora vem alegar terem sido violados, o preceito em crise é sempre o mesmo - o artigo 6º nº 1 alínea e) do D.L. nº 519 C1/79, de 29 de Dezembro - podendo e devendo o douto Tribunal Constitucional julgar inconstitucional a norma com fundamento na violação de outros princípios constitucionais diversos cuja violação foi invocada por força do disposto no artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (aditado pela Lei nº 85/89, de 07 de Setembro
4ª - A aplicação do mesmo preceito legal também viola os artigos 13º e 59 nº 1 alínea a) da C.R.P. uma vez que, trata de situações iguais de modo diverso, ou seja, pela sua aplicação, um determinado trabalhador pode vir a receber muito menos do que a outro cujo preceito não se tenha aplicado, não se respeitando inclusivamente em todas as situações análogas o principio do favor laboritis;
5ª - Considerando o preceito em causa material e organicamente inconstitucional, fazendo-se aplicar ao recorrente as cláusulas 113ª e 114ª do ªC.T. publicado no B.T.E. nº 45/87, de 08 de Dezembro, extensível a ele por via da P.E. publicada no B.T.E. nº 11/88, de 22 de Março e, em consequência Ter o recorrente direito a receber complemento de reforma livre e voluntariamente contratado pela representante da sua entidade patronal, estarão, Vexas Snhores Juízes do Tribunal Constitucional a fazer BOA JUSTIÇA!!!
A recorrida contra-alegou, suscitando a questão prévia relacionada com a não suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo.
O recorrente respondeu, reafirmando o que havia alegado na resposta ao despacho de fls. 284. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação A Questão prévia O pressuposto processual do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo, tem por finalidade permitir ao tribunal recorrido apreciar e decidir a questão de constitucionalidade normativa suscitada, cabendo ao Tribunal Constitucional, em sede de recurso, a última decisão sobre a matéria.
Nos presentes autos, o recorrente aflorou de modo pouco explícito a questão de constitucionalidade normativa que pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional (cf. fls. 179 e ss.). Contudo, apesar da falta de clareza, a questão foi formulada de modo apreensível, o que é confirmado pelo facto de o Supremo Tribunal de Justiça Ter apreciado e decidido tal questão de constitucionalidade normativa. Com efeito, o acórdão recorrido apreciou expressamente a questão de constitucionalidade relativa à norma contida no artigo 6º, nº1, alínea e), do Decreto- Lei nº 519- C1/79, de 29 de Dezembro.
Por estas razões, conclui-se Ter-se verificado o referido pressuposto processual, tomando-se em consequência conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade. O recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional a conformidade à Constituição da norma contida no artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº
519-C1/79, de 29 de Dezembro, na redacção originária. Tal norma foi aplicada na decisão recorrida [artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional]. É verdade que o acórdão de 26 de Março de 1998 menciona o Decreto-Lei nº 209/92, de 2 de Outubro. Contudo, tal referência não pode deixar de consubstanciar um mero obiter dictum, pois tendo em conta a data da passagem
à reforma do recorrente (20 de Abril de 1992 - doc. De fls 8, do qual a recorrida só teve conhecimento em Setembro de 1992) e a data do referido diploma legal (2 de Outubro de 1992), Ter-se-á que concluir que já estava adquirido o direito ao complemento de reforma quando a nova lei entrou em vigor. Nessa medida, a nova lei só poderia aplicar-se, no presente processo, retroactivamente, ou seja, a um direito já adquirido e a um efeito já produzido
(após a passagem do trabalhador à reforma). Ora, essa aplicação retroactiva pressuporia a eficácia retroactiva do diploma de 1992 (artigo 12º, nº 1, do Código Civil). Mas essa eficácia não lhe foi conferida pelo próprio legislador, e muito menos o tribunal recorrido a invocou ou assumiu (o que sempre presumiria ressalvados os efeitos já produzidos, nos termos do artigo 12º, nº 1, do Código Civil). Por outro lado, e decisivamente, o objecto do presente recurso de constitucionalidade é delimitado pelo respectivo requerimento de interposição, não cumprindo ao Tribunal Constitucional proceder à sua alteração em função de uma eventual averiguação do direito infraconstitucional efectivamente aplicável nos autos.
Assim, verificando-se uma congruência entre a norma cuja inconstituciona-lidade é suscitada e a que foi ratio decidendi da decisão recorrida, o Tribunal Constitucional apreciará a conformidade à Constituição de tal norma. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional procederá à apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro.
B A norma contida no artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro O recorrente sustenta, nas alegações do recurso de constitucionalidade, que a norma em apreciação é materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 56º, nºs 3 e 4, 17º, 18º, 13º e 59º, nº 1, da Constituição. Afirma também que tal norma é ainda organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 167º, alínea c), da Constituição.
É a seguinte a redacção da referida norma: Artigo 6º
1 - Os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho não podem:
(...) a. Estabelecer e regular benefícios complementares dos assegurados pelas instituições de previdência;
(...)
O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 517/98, tirado em Plenário
(D.R., II Série, de 10 de Novembro de 1998), procedeu à apreciação da conformidade à Constituição da norma impugnada, tendo decidido julgá-la organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 167º, alínea c), conjugado com os artigos 56º, nºs 3 e 4 e 17º, todas da Constituição (com declaração de voto da ora relatora relativamente à decisão de não julgar materialmente inconstitucional a norma em questão).
O Tribunal Constitucional aplica no presente Acórdão a orientação do seu anterior Acórdão na parte em que julgou organicamente inconstitucional a norma contida no artigo 6º, nº 1, alínea b), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, por violação do artigo 167º, nº 1, alínea c), da Constituição. O recorrente sustenta ainda a inconstitucionalidade material da norma em apreciação, por violação do princípio da igualdade. Invoca, para fundamentar tal entendimento, o exemplo de dois trabalhadores de uma mesma empresa discriminados pela entidade patronal, na medida em que apenas a um é concedido o complemento de reforma.
Não obstante o juízo de inconstitucionalidade anteriormente realizado afectar a utilidade da apreciação desta questão, sempre se dirá que a argumentação desenvolvida pelo recorrente não tem directamente a ver com a inconstitucionalidade da norma em apreciação, mas sim com uma eventual e concreta diferença de tratamento dada pela entidade patronal aos trabalhadores de uma mesma empresa. Tal argumentação, porque incidente sobre uma questão de facto e não sobre o conteúdo normativo do preceito impugnado, não fundamenta a inconstitucionalidade material da norma em questão.
III Decisão Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar organicamente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 167º, alínea c), 58º, nº 3, e 17º da Constituição, a norma contida no artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro; b. Conceder provimento ao recurso, revogando, consequentemente, a decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 30 de Junho de 1999 Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida