Imprimir acórdão
Processo nº 229/97
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A..., proprietária, propôs, no Tribunal Cível da Comarca do Porto, uma acção de despejo, sob a forma sumária, contra M... e mulher, MV..., inquilinos, de uma fracção de um prédio urbano devidamente identificada nos autos, através da qual pretendeu denunciar, para o termo do prazo então em curso, o contrato de arrendamento da referida fracção, por dela necessitar para habitação própria. O réu marido faleceu antes de realizada a citação, tendo sido admitida a desistência do pedido relativamente a ele. Contestando, a ré, para o que agora releva, veio opor a excepção de que o regime da propriedade horizontal tinha sido instituído no prédio 'muitos anos após a celebração do contrato de arrendamento' e que, segundo o disposto no 'artigo 1º da Lei 55/79, de 15-9, vigente ao tempo da constituição da propriedade horizontal, o direito de denúncia do contrato de arrendamento, para habitação própria, não pode ser exercido pelo senhorio de fracção autónoma de imóvel constituído em regime de propriedade horizontal, quando este regime for posterior ao arrendamento'. A autora respondeu alegando a revogação desta Lei nº
55/79 pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (RAU) e sustentando que o novo regime, constante do artigo
107º do RAU, eliminou essa limitação ao direito de denúncia, sendo aplicável ao contrato em causa. O despacho saneador desatendeu a excepção. A ré interpôs recurso, que foi admitido como agravo com subida diferida. Pela sentença de fls. 83, a acção foi julgada procedente. A ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto. Nas alegações que apresentou no recurso de agravo, MV... veio invocar que
'considerar que o regime aprovado pelo Dec-Lei 321-B/90 de 15/10 é aplicável às situações (...) já protegidas à luz da lei anterior (Lei 55/79) acarretará a inconstitucionalidade orgânica da norma da alínea e) do nº 1 do artigo 3º do Dec.-Lei nº 321-B/90, que revogou aquela Lei 55/79', o que a agravada contestou. O Tribunal da Relação do Porto, julgando o agravo, decidiu não ocorrer a apontada inconstitucionalidade orgânica, fazendo apelo ao acórdão nº 313/93 deste Tribunal (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol. pág.
207 e segs.). Inconformada, MV... interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do artigo 1º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, 'porque nas alegações suscitou a inconstitucionalidade orgânica da norma da alínea c) [e), seguramente], 'do nº 1 do artigo 3º do Dec.Lei
321-B/90 de 15/10 (que revogou a Lei 55/79 de 15/9)'. Nas alegações de recurso, concluiu do seguinte modo:
'1ª- O Governo, ao revogar a Lei 55/79 de 15 de Setembro, através da alínea e) do nº 1 do artº 3º do Dec.Lei 321-B/90, decreto preambular, de 15 de Outubro, violou a respectiva lei de autorização legislativa (Lei 42/90, de 10 de Agosto), em particular, as alíneas a), b) e c) do seu artº 2º;
2ª- A sentença proferida, ao conferir à citada norma do artº 3º, nº 1, alínea e) do Dec.Lei 321-B/90 eficácia retroactiva e aplicável a relações constituídas ao abrigo da lei revogada, reforça a desconformidade constitucional dessa norma'. Contra-alegou a recorrida, opondo-se à pretensa inconstitucionalidade. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2. Em primeiro lugar, há que proceder à rigorosa delimitação do objecto do presente recurso, uma vez que só o podem integrar normas que tenham sido efectivamente aplicadas na decisão recorrida. A recorrente pretende que o Tribunal Constitucional julgue inconstitucional a alínea e) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei 321-B/90. Todavia, este preceito revoga toda a Lei nº 55/79, de 15 de Setembro. Não está, pois, em causa a referida alínea e) em toda a sua extensão mas, tão somente, na parte em que revoga o artigo 1º da Lei nº 55/79, cuja conteúdo é o seguinte:
'O direito de denúncia do contrato de arrendamento facultado pela alínea a) do nº 1 do artigo 1096º do Código Civil não pode ser exercido pelo senhorio de fracção autónoma de imóvel constituído em propriedade horizontal quando este regime for posterior ao arrendamento, salvo se tiver adquirido a fracção por sucessão'. Tem, naturalmente, de se considerar a referência ao artigo 1096º do Código Civil substituída pela do preceito que, na lei actual, consagra o direito de denúncia do arrendamento pelo senhorio por necessitar da casa para habitação própria (a alínea a) do nº 1 do artigo 69º do RAU).
3. Analisando rapidamente a alteração introduzida no regime do contrato de arrendamento urbano pela norma impugnada, cabe lembrar que, mantendo o regime anterior, o Código Civil de 1966 (artigo 1095º), protegendo o inquilino nos contratos de arrendamento de prédios urbanos, retirava ao senhorio o direito de os denunciar para o termo do prazo, afastando, assim, a regra geral do arrendamento constante do nº 1 do seu artigo 1054º. Fazia-se desta forma prevalecer o interesse da estabilidade da habitação do inquilino sobre as conveniências do senhorio, pondo decisivamente de lado o princípio da liberdade contratual. O artigo 1096º do Código Civil, porém, previa duas excepções à exclusão deste direito de denúncia; entre elas, figurava a de o senhorio precisar do prédio arrendado para sua habitação (nº 1, a), desse artigo 1096º). No confronto entre a necessidade de habitação de um e de outro, prevalecia o do senhorio, já que era o proprietário do local. O exercício do direito de denúncia estava sujeito a uma série de regras, umas constantes, então, do Código de Processo Civil (cfr., por exemplo, o nº 1 do artigo 964º então em vigor, que exigia que a citação do réu fosse feita com a antecedência legalmente exigida relativamente ao termo pretendido para o contrato), outras do Código Civil (cfr. o artigo 1097º, que impunha que a denúncia fosse exercida por via de acção judicial). Julgada procedente a acção, o inquilino só era obrigado a entregar a casa três meses volvidos sobre o trânsito em julgado da sentença (art. 1097º citado) e tinha o direito a ser indemnizado de acordo com o disposto no artigo 1099º, também do Código Civil. Em 1979, pela Lei nº 55/79, de 15 de Setembro, foram, porém, introduzidas novas limitações ao exercício deste direito de denúncia (que, aliás, esteve intermitentemente suspenso desde o Decreto-Lei nº 155/75, de 25 de Março, até à entrada em vigor da Lei nº 55/79). Para o que agora nos interessa, o senhorio não podia denunciar o arrendamento da fracção autónoma de um prédio se o regime da propriedade horizontal tivesse sido constituído depois de celebrado o contrato, salvo se tivesse ' adquirido a fracção por sucessão' (artigo 1º da Lei nº 55/79). Com a entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, manteve-se o direito de o senhorio denunciar o contrato de arrendamento urbano com fundamento na necessidade da casa para sua habitação, desaparecendo a limitação referida. O RAU não a prevê e o Decreto-Lei nº 321-B/90, no nº 1, e) do seu artigo 3º, revoga expressamente a Lei nº 55/79. Sendo certo que o regime geral do arrendamento urbano se encontra na área da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo
165º, nº 1, h) da Constituição – correspondente à al. h) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, na versão aplicável), há efectivamente que averiguar se tal alteração se deve considerar organicamente inconstitucional, por falta de autorização legislativa, por não se poder considerar abrangida pela Lei nº
42/90, de 10 de Agosto. Desde logo, não pode haver dúvidas de que está em causa uma alteração do 'regime geral do arrendamento urbano' (ver, a este propósito, no que toca à relevância da regulamentação da denúncia do contrato dentro do regime do arrendamento urbano, os acórdãos nºs 311/93, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., pág. 207 e segs. e 127/98, publicado no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1998). Dúvidas também se não levantam quanto à verificação de que a alteração está abrangida pelo objecto da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, cujo artigo 1º estabelece que 'É concedida ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano'. O que, porém, não foi respeitado, na alteração que nos ocupa, foi o sentido com que a autorização deveria ter sido utilizada, como facilmente se depreende da leitura das diversas alíneas no artigo 2º da mesma Lei. Em particular, pode mesmo dizer-se que a alteração contraria abertamente a directriz traçada pela sua alínea c), que determina que as alterações hão-de preservar as 'regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'. Como se julgou no acórdão nº 426/98, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Dezembro de 1998, 'um dos vectores fundamentais em que se traduz a tutela da posição do arrendatário na legislação portuguesa em vigor há mais de setenta anos reside precisamente no estabelecimento de limites ao exercício da liberdade de o senhorio pôr termo ao contrato de arrendamento. As regras de que resulta a limitação da autonomia privada do senhorio no domínio da cessação do contrato são seguramente as mais importantes regras de tutela da posição do arrendatário. A lei de autorização legislativa não contém qualquer elemento que permita a diminuição da tutela da posição do arrendatário ou que indicie a intenção de lhe sobrepor um outro interesse – o interesse do senhorio ou dos seus descendentes. Pelo contrário, a lei refere-se expressamente à ‘preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário’. A desconsideração do interesse do arrendatário na regulamentação da cessação do contrato só poderia legitimamente acontecer perante uma determinação nesse sentido do órgão com competência legislativa reservada na matéria'. As considerações feitas valem, naturalmente, para a revogação do artigo 1º da Lei nº 55/79, de 15 de Setembro, decorrente da alínea e) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
Assim, decide-se: a) Julgar organicamente inconstitucional a norma constante da alínea e) do nº 1 do artigo 3º do pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, na parte em que revoga o artigo 1º da Lei nº 55/79, de 15 de Setembro, por violação do disposto na al. h) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, na versão de 1989; b) Conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada de acordo com o juízo de inconstitucionalidade formulado. Lisboa, 23 de Junho de 1999- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmº Conselheiro Messias Bento) Messias Bento (vencido pelas razões da declaração de voto que junto) DECLARAÇÃO DE VOTO: Entendi que o artigo 3º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, ao revogar o artigo 1º da Lei nº 55/79, de 15 de Outubro – e, assim, ao permitir que o senhorio denuncie o contrato de arrendamento quando necessite da casa arrendada para sua habitação, mesmo que a dita casa seja uma fracção autónoma de imóvel constituído em regime de propriedade horizontal posteriormente ao arrendamento -, não é inconstitucional.
De facto, contrariamente à posição que fez vencimento, entendo que tal norma
'não contraria abertamente a directriz traçada na alínea c)' do artigo 1º da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, que determina que as alterações a introduzir no regime do arrendamento urbano hão-de 'preservar as regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'.
É que, com essa directiva, o legislador parlamentar não pretendeu que o Governo, na 'codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano', mantivesse todas e cada uma das regras do regime legal do arrendamento que fossem favoráveis ao arrendatário. Pretendeu sim, e tão-só, que mantivesse as regras desse regime que, sendo favoráveis ao arrendatário, fossem também socialmente úteis. E, por isso – como se sublinhou no acórdão nº 311/93 (Diário da República, II série, de 22 de Julho de 1993) -, 'o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material'.
Ora, é razoável que, atenta a função social que a propriedade privada é chamada a desempenhar, o legislador subtraia o contrato de arrendamento à regra da liberdade contratual e o submeta à regra da renovação automática e obrigatória:
é que, embora, desse modo, o legislador sacrifique o direito do senhorio a denunciar livremente o contrato, fá-lo em favor do direito do locatário a dispor de uma casa para sua habitação. E, assim, esta é uma regra que, além de ser favorável ao arrendatário, é socialmente útil. Já, porém, se não compreende que, quando o senhorio necessita da casa arrendada para aí instalar a sua própria habitação, e essa casa seja uma fracção autónoma de imóvel em regime de propriedade horizontal, não possa denunciar o contrato, só porque esse imóvel foi posto nesse regime em data posterior à do contrato de arrendamento. Com efeito, a circunstância de o arrendamento ser anterior à colocação do imóvel no regime de propriedade horizontal não neutraliza as necessidades de habitação do senhorio que formule a pretensão de satisfazer o seu direito à habitação, invocando um direito real próprio - e, assim 'melhor direito' do que o do inquilino, que invoca o contrato de arrendamento incidente sobre o mesmo imóvel.
Não vejo, por isso, razão para que o legislador, num tal caso, resolva o conflito de direitos, que se lhe apresenta, sacrificando o direito à habitação do senhorio ao direito à habitação do inquilino. O contrário é que, do meu ponto de vista, é razoável.
Dizer isto é afirmar que, em minha opinião, a regra introduzida no ordenamento jurídico pelo artigo 1º da citada Lei nº 55/79, de 15 de Outubro, sendo embora favorável ao locatário, não era socialmente útil, pois que, sem que se descubra fundamento material para o efeito, desfavorecia o senhorio no confronto com o locatário. Não sendo uma regra socialmente útil, o legislador podia revogá-la, pois que – recorda-se – ele só ficou obrigado a manter as regras que, sendo favoráveis ao locatário, fossem também socialmente úteis. Luís Nunes de Almeida