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Proc. nº 627/98
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
11. Condenado por acórdão do 3º Tribunal Militar na pena de quatro meses de prisão militar, pela autoria material de um crime de furto, previsto e punível nos termos da alínea e) do nº 1 do artigo 201º do Código de Justiça Militar, o arguido J... interpôs recurso para o Supremo Tribunal Militar. Nas respectivas alegações, o recorrente propugnou a revogação do acórdão condenatório, sustentando - na parte que interessa ao presente recurso de constitucionalidade
- que as normas constantes do artigo 4º, de todo o capítulo III do título I
(maxime, os artigos 24º a 52º) e do artigo 201º [e, em especial, a alínea e) do seu nº 1] do Código de Justiça Militar seriam materialmente inconstitucionais.
No entender do recorrente, o artigo 4º do Código de Justiça Militar seria inconstitucional por não permitir a aplicação ao direito penal militar do instituto da suspensão da pena (artigos 50º a 57º do Código Penal), contrariando, por essa razão, os princípios da igualdade e da necessidade e da proporcionalidade da pena, consagrados, respectivamente, nos artigos 13º e 18º, nº 2, da Constituição. Por seu turno, também o sistema de penas previsto no capítulo III do título I do Código de Justiça Militar seria inconstitucional por violar, no seu conjunto, os mesmos princípios da igualdade e da necessidade e da proporcionalidade da pena. Já o artigo 201º do do Código de Justiça Militar seria inconstitucional, na interpretação dada pelo acórdão impugnado, por violar o disposto no artigo 213º da Constituição, em conjugação com o artigo 197º da Lei Constitucional nº 1/97, uma vez que os factos previstos naquela norma não constituiriam crimes estrita ou essencialmente militares. Por fim, a alínea e) do nº 1 do artigo 201º do Código de Justiça Militar seria especificamente inconstitucional por violar os princípios da igualdade e da proporcionalidade, visto que não comina, em alternativa à pena de prisão, a pena de multa, tal como sucede no Código Penal para o crime de furto (artigo 203º, nº
1).
11. Por acórdão de 28 de Maio de 1998, o Supremo Tribunal Militar negou provimento ao recurso e confirmou a decisão da primeira instância. Assim, em primeiro lugar, louvando-se em dois arestos precedentes, o Supremo Tribunal Militar entendeu que o artigo 201º do Código de Justiça Militar não é inconstitucional, não violando o artigo 213º da Constituição. Fundamentou esse entendimento em que a subtracção ilícita de coisa pertencente às Forças Armadas ou a militares, praticada por pessoa integrada ou ao serviço das mesmas Forças Armadas, integra um crime de furto essencialmente militar 'por tal conduta violar os deveres militares de fidelidade, lealdade e camaradagem, assim se pondo em causa os valores da coesão, da segurança e da disciplina, absolutamente indispensáveis à próprias subsistência das Forças Armadas' e ainda na subsistência da antiga redacção do artigo 215º da Constituição, por não Ter entrado em vigor o artigo 211º, nº 3, da Constituição.
Em segundo lugar, no que se refere à invocada inconstitucionalidade do artigo 201º, nº 1, alínea e), do Código de Justiça Militar, o acórdão confirmou que não haverá qualquer violação dos artigos 13º, 18º, nº 2 e 266º da Constituição, porque 'a pena prevista no Código Penal para o correspondente crime comum é a de prisão de 1 mês a 3 anos ou multa, pelo que aquela não é sequer mais grave do que esta'.
E, finalmente, quanto à invocada violação dos artigos 13º e 18º, nº
2, da Constituição pelo artigo 4º do Código de Justiça Militar, na medida em que não permitiria a aplicação ao direito penal militar do instituto da suspensão da pena (artigos 50º e 57º do Código Penal), o Supremo Tribunal Militar apenas considerou que 'não é legalmente possível a pretendida suspensão de execução de penas militares e isto, não porque exista uma impossibilidade jure condendo, mas tão só porque o Código de Justiça Militar a não previu, não a autoriza e não há lacuna que deva ser suprida mediante o recurso ao direito subsidiário que é o Código Penal'. Por esta última razão o Supremo Tribunal Militar entendeu que o referido artigo 4º do Código de Justiça Militar não padece de qualquer inconstitucionalidade, ao não permitir a aplicação subsidiária do Código Penal quanto ao regime da suspensão da pena.
O Supremo Tribunal Militar reconheceu ainda, no acórdão recorrido, que, no caso dos autos, as circunstâncias que rodearam a prática do crime não permitiriam concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizassem de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, não aceitando que a suspensão de execução da pena devesse Ter sido decretada, no caso de esta ser legalmente possível.
11. Desse acórdão foi interposto o recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 70º e do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, no qual foi requerida a apreciação da constitucionalidade do artigo 4º do Código de Justiça Militar, por violação dos artigos 13º e 18º, nº
2, da Constituição; de todo o sistema de penas previsto no Capítulo III do Título I do Código de Justiça Militar (nomeadamente dos artigos 24º, 25º, 26º,
27º, 28º e ss. E 52º), por tal sistema de penas violar os artigos 18º, nºs 1 e 2 e 13º, nº 1, da Constituição; do artigo 201º do Código de Justiça Militar, por violação do artigo 213º da Constituição quando conjugado com o artigo 197º da Lei Constitucional nº 1/97; do artigo 201º, nº 1, alínea e), do Código de Justiça Militar, por violação dos artigos 13º e 18º, nº 2, da Constituição.
11. Admitido o recurso, foram proferidas alegações pelo recorrente e pelo Ministério Público. Nas alegações por si proferidas, o recorrente concluiu o seguinte:
1. Sempre que é interposto recurso de constitucionalidade das normas que. Em direito penal militar, alegadamente impedem a aplicação do instituto da suspensão da pena ao direito penal militar, o Supremo Tribunal Militar declara que naquele caso concreto não se encontram verificados os pressupostos para a suspensão da pena.
2. Tal declaração, tem tido o efeito de impedir o Tribunal Constitucional de se pronunciar sobre constitucionalidade das normas em questão.
1. O Tribunal Constitucional deve conhecer dos recursos de inconstitucionalidade de normas, ainda que o tribunal 'a quo', alegue que, no caso concreto, tais normas não serão aplicadas, e desde que se demonstre que tal alegação pelo tribunal, é feita de forma sistemática, e com a finalidade de impedir que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a constitucionalidade das referidas normas.
As normas sobre a suspensão da execução da pena do Código Penal são
plicáveis ao direito penal militar.
1. O condenado em direito penal militar que preencha os pressupostos de facto para a suspensão da pena, que não venha a ser decretada em virtude da interpretação dada ao artigo 4º do CJM, encontra-se numa situação de desigualdade quando em comparação com outro condenado por prática de crime de direito penal comum, pois tanto aquele. Assim como a sua família são abrigados a sofrer os ónus resultantes da prisão efectiva quando em comparação com este.
1. É inconstitucional, por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da CRP a interpretação dada ao artigo 4º do RDM, com o sentido de que não são aplicáveis ao direito penal militar as normas previstas no artigo 48º e ss. Do Código Penal relativas à suspensão da execução da pena.
1. Os condenados por cometimento de crime essencialmente militar, caso se aceite que, preenchidos os pressupostos de facto para a suspensão da pena, esta não pode ser decretada 'ex lege' em virtude de o direito penal militar a não admitir, e por motivo de tal interpretação, estão su'eitos a restrições para além do necessário, para salvaguardar outros direitos ou interesse legítimos da instituição militar, nomeadamente a disciplina.
1. Em conformidade a interpretação dada acima ao artigo 4º do CJM também infringe o disposto no artigo 18º nº 2 da Constituição da República.
1. O furto de uma quantia em dinheiro pertencente a militar praticado por militar, não afecta inequivocamente interesses de carácter militar.
1. Tal conduta não tem com a instituição castrense qualquer conexão relevante, não existindo nexo causal entre a conduta punível e algum dever militar, ou interesses militares de defesa nacional.
1. Um militar que furta uma quantia em dinheiro pertencente a um camarada seu, deve estar sujeito às mesmas regras que qualquer cidadão que furte objectos ou dinheiro a outro cidadão.
1. A prática de tais factos não constitui crime essencialmente militar.
1. O artigo 201º do CJM em conjugação com o artigo 1º do mesmo código, é inconstitucional, por ofensa do artigo 215º da CRP (na revisão de 1989), enquanto aí, se qualifica como crime essencialmente militar, o furto, efectuado por militar a outro militar, de quantia em dinheiro.
1. Na sequência da revisão constitucional de 1997, foi alterada e renumerada a Constituição, passando os tribunais militares a Ter competência para o julgamento dos crimes estritamente militares.
1. A qualidade de militar, não e adequada para caracterizar a existência de crime estritamente militar, tendo em atenção que com a aprovação da constituição de 1976, foi a natureza do crime que passou a caracterizar o crime essencialmente militar ou estritamente militar.
1. O artigo 201º do CJM em conjugação com o artigo 1º do mesmo código, é inconstitucional, por ofensa do artigo 213º da CRP (na redacção da revisão de
97), enquanto aí, se qualifica como crime essencialmente militar, o furto de dinheiro pertencente a militares, efectuado por militar.
1. A pena mínima de prisão militar aplicada na sequência de cometimento de crime de furto punido pelo artigo 201º nº 1 alínea e) do CJM, sendo de dois meses, tem o dobro da duração da pena mínima de prisão prevista no artigo 296º pela prática de factos semelhantes.
1. Acresce que a pena do CJM referida, contrariamente à do CP, não pode ser substituída por multa (excepto nos casos restritos do artigo 46º do CJM), nem por prisão por dias livres, ou até, na opinião do STM, ser suspensa.
1. Assim a alínea e) do artigo 201º do CJM consagra uma desigualdade, quando em comparação com o artigo 296º conjugado com o artigo 40º e ss. Do CP, sendo inconstitucional por violação do artigo 13º da CRP.
1. Por outro lado, verifica-se também que a pena mínima constante do artigo
201º alínea e), quando conjugado com o artigo 27º, ambos do CJM é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade previsto nos artigos 18º nº 2 2ª parte e 13º da CRP quando conjugados, e quando em comparação com a pena de 1 mês de prisão prevista nos artigos 296º e 40º do Código Penal.
1. Sendo julgada inconstitucional a pena mínima de dois meses de prisão militar constante do artigo 201º nº 1 alínea e), quando conjugado com o artigo
27º, ambos do CJM, a pena mínima a aplicar pela prática dos factos referidos em tal artigo deve ser de 1 mês de prisão, resultante da aplicação das disposições combinadas dos artigos 296º e 40º do Código Penal quando conjugados. Termos em que, de acordo com os fundamentos expostos, devem os artigos referidos ser considerados inconstitucionais, como é de justiça.
Nas suas contra-alegações, o Ministério Público, por seu turno, após delimitação do objecto do recurso à alínea e) do nº 1, do artigo 201º do Código de Justiça Militar, veio concluir:
1º Pode qualificar-se como sendo essencialmente militar o crime de furto, cometido por um militar em detrimento de outro, dentro das instalações militares e em grosseira violação do especial dever de lealdade e respeito entre militares, com quebra da relação de confiança que tem necessariamente de existir entre quem está ao serviço das Forças Armadas, numa mesma unidade.
2º Nestas circunstâncias, o cometimento do crime de furto - para além de traduzir violação do direito de propriedade - implica lesão de bens jurídicos próprios da comunidade militar, abalando a coesão e disciplina das Forças Armadas, valores essenciais à realização das tarefas de defesa nacional que lhes estão cometidas.
3º A norma incriminadora do furto militar, ao sancionar tal crime sempre e necessariamente com pena privativa de liberdade (inclusivé nos casos em que o arguido já não está ao serviço efectivo das Forças Armadas) - ao passo que a norma correspondente do direito penal comum autoriza. Segundo as circunstâncias, o julgador a sancionar o furto com prisão ou multa - viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
4º Na verdade, a imposição necessária ao arguido de uma pena privativa de liberdade, em quaisquer circunstâncias, não pode justificar-se em função da tutela dos valores típicos da comunidade militar, traduzido solução legislativa arbitrária e discricionária.
5º Termos em que deverá proceder o recurso, pelos fundamentos atrás referidos.
11. Tudo visto e ponderado, cumpre decidir. II Fundamentação A Delimitação do objecto do recurso
11. O recorrente suscita a inconstitucionalidade, em termos genéricos, do sistema de penas constante do Código de Justiça Militar sem, todavia, especificar as normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida. Essa suscitação genérica é inadequada a produzir uma decisão do Tribunal Constitucional com repercussão efectiva na decisão recorrida, pois nem se pode constatar que todas essas normas foram aplicadas nem cabe ao Tribunal Constitucional, em fiscalização concreta, apreciar todo um diploma, constituído por normas diferenciadas, independentemente da repercussão de cada uma dessas normas no caso concreto.
Por outro lado, não há manifestamente interesse processual na apreciação da questão de constitucionalidade relacionada com a aplicação do artigo 4º do Código de Justiça Militar, interpretado no sentido de impedir a aplicação subsidiária, em direito penal militar, dos preceitos do Código Penal que prevêem o instituto de suspensão da pena. Com efeito, o acórdão recorrido enfrenta a questão de uma hipotética aplicabilidade (impossível legalmente na sua perspectiva) das normas do Código Penal relativas à suspensão da pena e conclui, analisando ainda que brevemente as circunstâncias do caso, que a suspensão da execução da pena nunca deveria ser decretada.
Assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade sobre o artigo 4º do Código de Justiça Militar, admitindo a aplicabilidade, no caso, do instituto da suspensão da execução da pena, não lograria alterar o sentido da decisão recorrida, já que sempre subsistiria a análise efectuada das circunstâncias que impediriam que tal medida fosse decretada. Por estas razões e invocando o artigo
3º, nº 3, do Código de Processo Civil ex vi do artigo 65º da Lei do Tribunal Constitucional, não se conhecerá a questão da alegada inconstitucionalidade daquelas normas, sendo o objecto do recurso limitado à apreciação da constitucionalidade da alínea e) do nº 1, do artigo 201º do Código de Justiça Militar.
B A questão de constitucionalidade do artigo 201º, nº 1, alínea e), do Código de Justiça Militar em face dos artigos 213º, 13º e 18º, nº 2, da Constituição
11. A primeira questão suscitada pelo recorrente é a falta de natureza essencialmente militar do crime previsto e punido pelo artigo 201º, nº 1, alínea e), do Código de Justiça Militar, violando tal preceito, consequentemente, os artigos 213º (versão de 1997) e 215º (versão de 1989) da Constituição. A esta questão acresce a de saber se a diferença da medida legal da pena entre aquele crime e o crime de furto previsto no artigo 201º, nº 1, alínea e), do Código de Justiça Militar e o furto previsto no artigo 203º, nº 1, do Código Penal violará a igualdade e a proporcionalidade constitucionalmente exigidas. Com efeito, entre as medidas legais das penas contidas nos dois preceitos invocados existe uma dupla diferença: por um lado, o limite mínimo da pena do furto tal como é prevista no artigo 203º, nº 1, do Código Penal é inferior em cerca de um mês à prevista no artigo 201º, nº 1, alínea e), do Código de Justiça Militar, mas superior em cerca de dois anos ao limite máximo (3 anos); por outro lado, o preceito do Código Penal admite a pena alternativa de multa enquanto o Código de Justiça Militar não a contempla.
Entre o direito penal geral e o direito penal cujo objecto está associado à actividade militar há, seguramente, uma relação de especialidade, no sentido de este último se referir à tutela de bens jurídicos especiais, inerentes às funções públicas ao serviço do Estado de direito democrático cometidas às Forças Armadas.
A diferenciação entre o direito penal e o direito disciplinar é uma das características irrenunciáveis da configuração do Estado de direito como sistema diverso das suas concretas instituições internas. Os fins gerais do Estado de direito não se confundem em absoluto com o bom funcionamento e a auto-reprodução dessas mesmas instituições. É essa capacidade de distinguir o funcionamento do Estado de direito como bem jurídico- penal dos bens jurídicos relativos ao bom funcionamento interno das suas concretas instituições que permite não confundir a desobediência ao superior hierárquico, por si mesma, com a violação do Estado de direito (o que, em última análise, também explica a estatuição do artigo 271º, nº 3, da Constituição reiterada pelo artigo 36º, nº
2, do Código Penal, segundo a qual 'cessa o dever de obediência quando conduza à prática de um crime').
Deste modo, uma especial configuração dos crimes relacionados com a instituição militar terá que ser justificada, para além dos aspectos conexionados com a qualidade do autor ou com a disciplina das Forças Armadas, pela protecção de bens essenciais à existência, coesão e preservação da sociedade em geral - pois só tais bens têm específica dignidade penal (sobre esta relação entre a tutela penal e a essencialidade dos bens militares para o Estado de direito, cf. Acórdãos nºs 958/96, D.R., II Série, de 19 de Dezembro de
1996; 329/97, de 17 de Abril de 1997, inédito; 201/98, D.R., II Série, de 24 de Julho de 1998).
Não será, tão- só, a mera preservação da disciplina dos militares, como ratio da pena ou de uma sua agravação relativamente ao crime comum, que justificará a natureza essencialmente militar dos tipos criminais. A categoria dos crimes essencialmente militares não poderá ser delimitada formalmente como classe de crimes relacionados com a Instituição Militar por qualquer ponto de conexão, mas apenas como classe de crimes que atentem contra bens jurídicos militares de relevância geral para o Estado de direito democrático.
11. Em face destas considerações, poder-se-á admitir que um crime de furto praticado numa concreta instituição militar, por um militar (na reserva) contra outro militar, atinge uma dignidade punitiva específica relativamente a um crime comum que ultrapasse meras razões disciplinares? Tratar-se-á, como afirma nas suas alegações o Ministério Público, da lesão de 'bens jurídicos próprios da comunidade militar, abalando a coesão e disciplina das Forças Armadas'?
Ora, com efeito, a coesão, a confiança e a lealdade entre os membros da Instituição Militar é um valor instrumental da boa realização das suas tarefas e da sua credibilidade em geral, mas já é duvidoso que tais valores possam estar associados ao mero estatuto ou à simples qualidade do agente que realiza um qualquer facto ilícito, sem que o facto, por si, tenha natureza intrinsecamente adequada a afectar as funções cometidas pelo Estado de direito
às Forças Armadas.
11. Sobre a questão geral subjacente ao que atrás foi referido, o Tribunal Constitucional tem vindo a aceitar uma noção objectiva de crime essencialmente militar, desde o Acórdão nº 347/86 - D.R., I Série, de 20 de Março de 1987. E, na sua jurisprudência mais recente, tem exigido a violação de um bem especificamente militar na qualificação de um crime como essencialmente militar.
Esta noção de objectividade no conceito de crime essencialmente militar tem correspondido, na jurisprudência deste Tribunal, a um equilíbrio entre uma noção absolutamente objectiva de bem militar e a uma noção subjectiva-objectiva, sem, no entanto, se aceitar, em caso algum, uma pura determinação da natureza essencialmente militar pelo mero estatuto dos agentes ou pela simples violação de deveres disciplinares sem qualquer repercussão intrínseca nos valores da preservação, coesão e credibilidade das Forças Armadas.
11. As circunstâncias do caso, tomando em consideração que o objecto da acção é constituído por bens da mera titularidade privada de outro militar, enfraquecem a conexão do facto com os valores especificamente militares não meramente disciplinares, remetendo o caso para uma área em que os elementos hipoteticamente qualificativos da natureza militar são largamente superados pelos elementos acentuadores de uma natureza comum.
Com efeito, este caso é muito próximo e estruturalmente análogo ao que foi decidido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 49/99, de 19 de Janeiro de 1999, embora esse seja relativo à alínea d) do nº 1 do artigo 201º do Código de Justiça Militar. Também nesta situação estamos perante um furto de um militar e tendo como vítima outro militar. Por outro lado, a sanção aplicável é, no caso sub judicio, a da alínea e) do artigo 201º, nº 1, do Código de Justiça Militar, pena inferior à da alínea d) a que se referia o Acórdão nº 49/99 por ser relativa a um furto cujo objecto é um bem de valor monetário ainda inferior ao valor previsto na alínea d).
Nada há neste caso que justifique que os elementos de conexão com a Instituição Militar verificados (qualidade do autor e da vítima e local da prática do crime) consubstanciem a violação de um bem jurídico militar, no sentido de ser afectado um interesse associado à função militar específica de defesa nacional, condição do livre desenvolvimento dos cidadãos portugueses e da preservação dos seus interesses individuais e colectivos. Não há aqui uma ligação verdadeiramente intrínseca com a Instituição Militar, que deve associar a protecção do bem jurídico concretamente afectado, a propriedade da vítima, à função específica da Instituição Militar.
A qualidade da vítima e o local da prática do crime não são suficientes, por si, para suscitarem aquela conexão, sendo elementos meramente circunstanciais e eventualmente agravantes, mas não modificativos da estrutura essencial do ilícito e do bem jurídico tutelado. Por outro lado, o interesse na tutela da disciplina das Forças Armadas, que aqui se desenhará, não consubstancia, por si, um bem militar digno de protecção penal, não transcendendo uma tutela secundária e reflexa derivada da incriminação pelo furto, por força da qualidade do seu autor. III Decisão
11. Por tudo o que foi exposto, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar inconstitucional a norma constante do artigo 201º, nº 1, alínea e), do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril, na medida em que qualifica como essencialmente militar o crime de furto de objectos pertencentes a militares, quando praticados por outros militares, por violação dos artigos 213º e 215º da Constituição (na versão de 1989); b. Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade. Lisboa, 30 de Junho de 1999 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida