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Processo nº 241/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.1. - MR, identificada nos autos, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de Janeiro de 2000, proferido na acção, com processo sumário, que correu termos no Tribunal Judicial da comarca dessa cidade, intentada por DS e mulher, MS, onde se pede a resolução do contrato de arrendamento, em que são locadores e a ora recorrente é locatária, por falta de pagamento de renda, devendo ser decretado o despejo e esta última condenada a entregar àqueles o prédio devoluto e a pagar-lhes as rendas em atraso.
A acção foi julgada procedente, por provada, na 1ª Instância, por sentença de 4 de Maio de 1999, e, em consequência, foi declarada a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento 'na falta de pagamento da renda no tempo e lugar próprios, considerando-se como não liberatórios os depósitos de rendas efectuados pela Ré, nos termos conjugados dos artºs. 64º, nº
1 a) e 22º, nº 1 do RAU, decretando-se, deste modo, o despejo do arrendado, e condenando-se ainda a Ré no pagamento das rendas vencidas desde Julho de 1998, e nas vincendas até ao momento da desocupação efectiva do arrendado, sem prejuízo das que já se encontrem depositadas que, nos termos do artº 28º, nº 1, do RAU, e em conformidade com o exposto, se autorizam a ser levantadas pelos Autores'.
Inconformada, a ré apelou da sentença e nas alegações apresentadas suscitou a temática da constitucionalidade em termos que assim condensou nas conclusões 66ª e 67ª:
'LXVI. A sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente os artºs. 64º, nº
1, al. a) e 22º, nº 1, ambos do RAU, bem como os artºs. 841º, 1041º e 1048º do Código Civil. LXVII. Tais normas, interpretadas e aplicadas como o fez a sentença recorrida, no sentido de permitir/fundamentar o despejo da Ré, são desconformes com a Constituição da República Portuguesa, por violação dos preceitos constitucionais
ínsitos nos artºs. 2º, 9º, al. d) e 65º da nossa Lei Fundamental e como tal devem ser declaradas.'
O Tribunal da Relação de Coimbra, no já citado acórdão de 11 de Janeiro de 2000, conheceu da apelação da sentença, bem como do recurso já interposto pela ré do saneador, e negou provimento a ambos os recursos, do mesmo passo que rejeitou a tese de inconstitucionalidade.
1.2. - Com o recurso para este Tribunal Constitucional pretende a recorrente a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 64º, nº 1, alínea a), e 22º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano (RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro), bem como dos artigos 841º, 1041º e
1048º do Código Civil, 'quando interpretados nos termos em que o fez' o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de Janeiro de 2000.
O requerimento de interposição de recurso mereceu, neste Tribunal, despacho do relator, nos termos e para os efeitos dos nºs. 1, 5 e 7 do artigo 75º-A da citada Lei nº 28/82.
Aí se observou, nomeadamente, competir à recorrente uma cabal identificação da norma a apreciar, no seu todo, em dado segmento ou na dimensão interpretativa impugnada, o que, de qualquer modo, sempre implicará a indicação precisa da questão de constitucionalidade.
O que se pretendeu – de resto, em harmonia com a jurisprudência assente deste Tribunal – foi obter uma indicação sintética e inequívoca da questão de constitucionalidade, em termos tais que não se suscitem dúvidas razoáveis a respeito do sentido das normas reputado de inconstitucional
(cfr., por todos, o acórdão nº 178/95, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995).
Colhe-se, da leitura da resposta apresentada, que se pretende obter a 'declaração' de inconstitucionalidade (das normas) dos artigos
64º, nº 1, alínea a), e 22º, nº 1, do RAU e dos artigos 841º, nº 1, 1041º, nº 1, e 1048º do Código Civil, reportadas a um sentido interpretativo que, oportunamente, será analisado.
2. - Entendeu o relator ordenar a notificação das partes para alegações.
Não obstante, desde logo se advertiu a recorrente para, querendo, se pronunciar sobre a eventualidade do não conhecimento do objecto do pedido, no caso de se concluir pela ausência de um controlo normativo, sabido que o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade não se destina a reapreciação da decisão recorrida, em si mesma considerada.
Alegou oportunamente a recorrente, lavrando conclusões que se expraiam do seguinte modo:
'I – O art. 64º, nº 1, al. a) do RAU, quando interpretado e aplicado com um sentido segundo o qual o não pagamento de algumas rendas em casa do senhorio, é justa causa para resolução do contrato de arrendamento, mesmo que tal pagamento tenha sido efectuado, em devido tempo, a título excepcional, por depósito em nome do senhorio na Caixa Geral dos Depósitos, é inconstitucional, por violação do art. 65º, nº 1, da CRP, pois permite que se agrida arbitrária e desnecessariamente o direito à habitação. II – Com aquela interpretação e alcance a norma do art. 64º, nº 1, al. a), do RAU é ainda inconstitucional, pois viola também o art. 18º, nº 2, (ex vido art.
17º) da CRP, porquanto sacrifica desproporcionadamente o direito à habitação sem ser em defesa de um outro direito constitucionalmente consagrado. III – O interesse dos senhorios em que a renda lhes fosse paga, em mão, em sua casa, é uma mera comodidade, não tem, obviamente, consagração constitucional e mesmo que o tivesse jamais revestiria dignidade suficiente para se sobrepor ao direito à habitação da ré/recorrente. IV – A norma do art. 22º, nº 1 do RAU, quando interpretada e aplicada com um sentido segundo qual o depósito na CGD, em nome do senhorio, a título excepcional, de algumas rendas, ainda antes do respectivo vencimento, não é liberatório do dever de pagar as rendas e determina a constituição do inquilino em mora e o respectivo despejo, é inconstitucional por violação do art. 65º, nº
1, pois permite agredir arbitrária e desnecessariamente o direito à habitação da recorrente. V – Com aquela interpretação a norma do art. 22º, nº 1, viola ainda o art. 18º, nº 2 (ex vi do art. 17º) da CRP já que restringe desnecessária e desproporcionadamente um direito fundamental da ré, em benefício apenas de uma mera comodidade dos autores/senhorios. VI – Interpretadas e aplicadas com os sentidos e alcances supra assinalados, as normas dos arts. 64º, nº 1, al. a) e 22º, nº 1, ambas do RAU, são também inconstitucionais na medida em que ofendem o sub-princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático ínsito no art. 2º da CRP, já que o pagamento das rendas fora feito por depósito e este veio a ser considerado válido, a final, pela própria sentença. VII – Nunca será Democrático, muito menos de Direito, um Estado com leis ordinários que possibilitem (mesmo que através das interpretações mais subversivamente legalistas e positivistas) o despejo de inquilinos por motivos tão fúteis e insignificantes. VIII – Os depósitos das rendas efectuados pela recorrente deveriam ter sido considerados liberatórios, pelo menos até ser estabelecida a culpa pelo seu não pagamento em casa dos senhorios. IX – Só depois de a culpa ter sido atribuída em exclusivo à ré, é que esta deveria ser obrigada a pagar a indemnização, até porque o montante relativo às rendas já se encontrava depositado. X – Ninguém, à face dos princípios estabelecidos no artigo 2º da CRP, pode ser obrigado a pagar uma indemnização antes de ficar demonstrada a respectiva culpa. XI – Interpretadas e aplicadas com os sentidos e alcances supra assi8nalados, as normas dos arts. 64º, nº 1, al. a) e 22º, nº 1, ambas do RAU, são também inconstitucionais por violação das normas do art. 9º, als. b) e d) da CRP, na medida em que impedem o Estado de garantir o direito fundamental da ré à habitação e ao respeito pelos princípios do Estado de direito democrático, mormente o princípio da confiança dos cidadãos em que a aplicação da lei ordinária se faça em conformidade com os ditames constitucionais. XII – Além disso, tais interpretações e aplicações daquelas normas conduzem a que o Estado se veja impedido de promover o bem estar e a qualidade de vida da generalidade dos cidadãos uma vez que coloca uma parte deles (os inquilinos) numa posição extremamente desfavorável e enfraquecida diante dos caprichos dos senhorios. XIII – Nessa medida, agredir-se-ia também o princípio da igualdade real entre os portugueses, porquanto uma parte deles (os inquilinos) teria um regime mais gravoso em matéria de indemnizações por eventual falta de pagamento das rendas ou pelo seu pagamento irregular, pois seriam obrigados a pagar as respectivas indemnizações antes de se apurar a quem pertencia a responsabilidade por esse pagamento alegadamente defeituoso. XIV – O princípio do Estado de Direito Democrático estabelecido no art.2º da CRP não consente a existência de leis ordinárias que possibilitam que um inquilino
(que sempre cumpriu religiosamente as suas obrigações) seja privado da casa onde habita há cerca de 28 anos, só porque não efectuou o depósito condicional de uma indemnização inferior a 15.000$00 (quinze mil escudos), até ao termo do prazo de contestação da acção de despejo que lhe fora movida pelos senhorios – indemnização essa que acreditava não ser devida e que ainda nem sequer ninguém podia garantir que era realmente devida à data em que expirou o prazo legal para o seu depósito condicional. XV – Ao interpretar a norma do art. 802º, nº 2, no sentido de que a quantia de
14.170$00 não tem escassa importância para os senhorios, o tribunal a quo fez uma aplicação dessa norma que ofende o princípio da confiança estabelecido no art. 2º da CRP. XVI – O princípio do Estado de Direito Democrático estabelecido no art. 2º da CRP não consente a existência de leis ordinárias que possibilitam que, em Portugal, no ano 2000, se possa considerar que a não realização do depósito condicional de uma quantia de 14.170$00 constitua causa de despejo de uma mulher com mais de 60 anos, divorciada, reformada e do seu filho estudante do ensino superior, sendo certo que ao longo de mais de 27 anos sempre cumprira atempadamente os seus deveres de locatária. XVII – O princípio do Estado de Direito Democrático estabelecido no art. 2º da CRP é incompatível com a existência de leis ordinárias que possibilitam que, em Portugal, no ano 2000, se possa considerar que a quantia de 14.170$00 tenha uma importância superior ao direito à habitação da ré, ora recorrente. XVIII – A norma do art. 841º, nº 1 do Código Civil ofende o princípio da confiança e a própria ideia de Estado de Direito ínsitos no art. 2º da CRP, quando interpretada e aplicada com um sentido segundo o qual (no contrato de arrendamento em que a renda não fora paga em mão em casa do senhorio, mas depositada em seu nome) «a coisa devida» inclui a renda e a indemnização de 50%, mesmo antes de se apurar a quem pertence a culpa por a renda não ter sido paga em mão. XIX – Num Estado de Direito Democrático «a coisa devida» pelos inquilinos, nos contratos de arrendamento, é, para o que ora importa, tão só a renda e qualquer indemnização só pode ser exigida ao inquilino depois de demonstrada a sua culpa. XX – Num Estado de Direito Democrático qualquer indemnização só é devida, e portanto só poderá ser exigida, depois de demonstrada a culpa do causador do dano e não antes. XXI – A norma do art. 841º, nº 1 do Código Civil ofende o princípio da confiança
ínsito no art. 2º da CRP, quando interpretada e aplicada com um sentido e alcance segundo os quais, nas acções de despejo, são os réus que têm de provar que não têm culpa pelo não pagamento da renda em casa dos senhorios. XXII – Assim interpretada, aquela norma é inconstitucional por violação do art.
2º da CRP, pois presume a culpa dos réus nas acções de despejo e faz recair unicamente sobre eles o ónus da prova de um facto negativo, quando é certo que num Estado de Direito são os lesados que devem provar a culpa dos lesantes. XXIII – A norma do art. 1041º, nº 1 do CC, interpretada e aplicada como o foi in casu, ou seja, com um sentido segundo o qual a ré se constituiu em mora apesar de ter depositado as rendas em nome do senhorio antes do respectivo vencimento,
é inconstitucional por ofensa ao princípio da confiança estabelecido no art. 2º da CRP. XXIV – O depósito efectuado, poderia quando muito ser considerado uma forma irregular de pagamento, mas nunca poderia ser equiparado à total falta de pagamento, porquanto a prestação saiu definitivamente da esfera patrimonial da ré para entrar inexoravelmente na esfera patrimonial dos autores/senhorios. XXV – Fosse qual fosse o resultado final do litígio, jamais a ré poderia reaver as rendas depositadas porque estas pertenciam aos senhorios. XXVI – Por outro lado ainda teria de se apurar a quem pertencia a culpa por esse cumprimento defeituoso e só depois de a culpa ter sido integralmente atribuída à ré, é que esta deveria ser condenada na indemnização prevista no art. 1041º, nº
1 do CC e não antes. XXVII – O art. 1048º do CC deve ser declarado inconstitucional por ofensa ao art. 2º da CRP, quando interpretado e aplicado como fez o tribunal a quo, ou seja, com um sentido e alcance segundo os quais o depósito, a título excepcional, de algumas rendas em nome do senhorio, ainda antes do respectivo vencimento, é equiparado à total falta de pagamento das rendas. XXVIII – A inconstitucionalidade de tal norma adquiriu, no caso sub judice, uma dimensão insustentável, na medida em que não houve falta de pagamento das rendas por parte da ré/recorrente, mas quando muito apenas um pagamento irregular ou defeituoso que só poderia, quando muito, originar o dever de indemnizar após o apuramento da culpa por tal irregularidade, mas inidóneo, num Estado de Direito, a constituir fundamento sério para a resolução do contrato de arrendamento. XXIX – Ao não entender assim, ao considerar que não houve pagamento da renda apesar de as mesmas estarem depositadas em nome do senhorio e que a ré era obrigada a depositar a indemnização ainda antes de apurada a sua eventual culpa, o tribunal a quo interpretou e aplicou o art. 1048º do CC com um sentido e alcance que a tornam inconstitucionais por violação do princípio da confiança e o princípio do Estado de Direito ínsitos no art. 2º da CRP. XXX – As normas dos arts. 64º, nº 1, al. a), 22º, nº 1 do RAU e 802º, nº 2,
841º, nº 1, 1041º, nº 1 e 1048º, do Código Civil, quando interpretadas e aplicadas com os sentidos supra referidos são ainda inconstitucionais por violação do art. 1º da CRP, pois conduzem a um resultado prático que atenta gravemente contra a dignidade da ré/recorrente. XXXI – Uma mulher com mais de sessenta anos de idade, divorciada, reformada, vivendo numa casa em Coimbra juntamente com um filho estudante do ensino superior, que se vê constrangida a abandonar essa casa devido à procedência de uma acção de despejo por (anunciada) falta de pagamento das rendas e obrigada a arrendar uma nova habitação, naturalmente fora da cidade, verá a sua dignidade gravemente sacrificada, sobretudo porque esse sacrifício não é feito em nome de qualquer interesse sério dos autores/senhorios. XXXII – Ao colocar na balança da ponderação o direito fundamental da ré/recorrente à habitação e o direito/comodidade dos autores/senhorios a que as rendas lhes fossem sempre pagas em mão, em sua casa, o tribunal a quo optou claramente pela comodidade dos senhorios, a quem apelidou de «vítimas». XXXIII – Fê-lo não por razões de direito mas por motivos ideológicos, não hesitando para tanto em subverter o sentido das normas da lei ordinária em que se fundamentou, de modo que, assim interpretadas e aplicadas, tais normas se tornaram chocantemente desconformas com a Constituição da República Portuguesa. Termos em que e ainda por um incontornável imperativo de justiça constitucional, deve ser declarada a inconstitucionalidade das normas indicadas com a consequente projecção dos respectivos efeitos a nível do tribunal da Relação de Coimbra, de modo a que não seja declarada a resolução do contrato de arrendamento nem ordenado o despejo do prédio habitado pela recorrente. Se assim se fizer, será feita Justiça.'
Por sua vez os recorridos limitam-se a insistir na improcedência do recurso, que, a seu ver, mais não é do que um expediente meramente dilatório, destinado a obstacularizar o cumprimento da decisão judicial, mediante um processo de indesmentível e dificilmente ultrapassável demagogia.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1. - Por alguma razão se comunicou às partes, quando notificadas para alegarem, a possibilidade de não se vir a conhecer do objecto do recurso, considerando faltarem os respectivos pressupostos para a sua admissibilidade, a entender-se não se estar perante um (necessário) controlo normativo.
Anteriormente, já o relator ordenara a notificação da recorrente para, mais clara e inequivocamente – e mais sinteticamente –, enunciar as interpretações normativas cuja adequação constitucional duvida.
É que, como se sabe, se, por um lado, não basta que uma questão de constitucionalidade seja excogitável para que dela o Tribunal Constitucional se ocupe, sendo necessário que a mesma se coloque adequadamente, por quem tem legitimidade para o fazer e em termos de poder reflectir-se utilmente no processo em que o recurso de constitucionalidade teve origem, por outro lado, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade do tipo em apreço destina-se ao controlo normativo de constitucionalidade, não estando vocacionado para a impugnação da decisão judicial recorrida, como tal considerada, como sucede quando o desenvolvimento argumentativo se dirige a esta
última, dela se discordando com o objectivo da sua reapreciação bem como da reponderação da subsunção fáctica ao enquadramento jurídico, oportunamente feita.
Como se escreveu no acórdão nº 18/96 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996 (e tantos outros se poderiam citar), '[o] sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade é, tal como vem sublinhando este Tribunal, um sistema de controlo normativo, uma vez que só podem ser objecto de recurso de constitucionalidade as normas jurídicas e não também as decisões judiciais, consideradas em si mesmas (cf., inter alia, o Acórdão deste Tribunal nº 318/93, publicado no Diário da República, II série, de 2 de Outubro de 1993, e os Acórdãos nºs. 638/93 e 412/94, estes dois inéditos).
Na verdade, o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de recursos interpostos de decisões dos outros tribunais que recusem a aplicação de normas jurídicas com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que as apliquem, não obstante a sua inconstitucionalidade haver sido suscitada durante o processo pelo recorrente. Ainda de harmonia com a jurisprudência uniforme deste Tribunal, nada obsta a que, na fiscalização concreta, se discuta a constitucionalidade de uma norma, tal como ela foi interpretada e aplicada ao caso concreto (cf., por todos, o Acórdão deste Tribunal nº 114/89, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Abril de 1989).
A questão de inconstitucionalidade pode respeitar a uma norma, a uma sua dimensão parcelar ou, mais restritamente, à interpretação ou sentido com que ela foi tomada no caso e aplicada na decisão recorrida (cf., por todos, o Acórdão nº 238/94, publicado no Diário da República, II série, de 28 de Junho de
1995).'
Reconhece-se, não obstante, nem sempre ser fácil e isenta de dúvidas a demarcação entre norma e decisão, uma vez que só a primeira está sujeita a controlo por via do recurso de constitucionalidade, inexistindo entre nós um sistema assente na 'queixa constitucional' ou no 'amparo', ou figura equivalente.
2. - A recorrente pretende, como se deixou dito, a apreciação da constitucionalidade de um elenco normativo – integrado pelas normas dos artigos 64º, nº 1, alínea a), e 22º, nº 1, do RAU (Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro) e, bem assim, dos artigos 841º, 1041º e 1048º do Código Civil – em seu entender interpretado e aplicado pelo acórdão recorrido com um sentido que conduziu a que fosse decretado despejo por falta de pagamento de rendas, com ofensa do disposto nos artigos 2º, 9º, 13º, 65º, 202º, nº 1, 203º e 204º da Lei Fundamental.
Sucede, no entanto, que nem, por um lado, as normas em sindicância foram interpretadas no sentido que o recorrente defende ter sido o adoptado, nem, por outro, foi equacionada uma questão de constitucionalidade em termos de controlo normativo, antes se exprimindo discordância quanto aos fundamentos da decisão recorrida, como tal considerada.
2.1. - A norma da alínea a) do nº 1 do artigo 64º do RAU.
O senhorio, de acordo com este preceito, [só] pode resolver o contrato se o arrendatário 'não pagar a renda no tempo e lugar próprios nem fizer depósito liberatório'.
Entende a recorrente, em síntese, que o aresto recorrido interpretou esta norma 'com um sentido segundo o qual não constitui pagamento da renda o depósito efectuado pelo arrendatário na CGD em nome do senhorio, antes do respectivo vencimento'. Nessa leitura, o depósito não pode ser considerado liberatório e não constitui, sequer, pagamento parcial ou defeituoso da renda.
Ora, em sua tese, a interpretação constitucionalmente conforme consideraria liberatório um tal depósito – em singelo, na CGD, em nome do senhorio, antes do respectivo vencimento – 'desde que alegadas causas justificativas do não pagamento no lugar convencionado', só se tornando exigível ao inquilino a indemnização legalmente estabelecida após o apuramento da verificação ou não das alegadas causas justificativas.
Seria igualmente conforme um sentido que concedesse ao depósito feito nessas circunstâncias efeitos de cumprimento parcial ou defeituoso, 'insusceptível de ser equiparado a falta do cumprimento total e sem força suficiente para determinar automaticamente as consequências do não cumprimento tout court'.
Como se observou no acórdão recorrido, a tese central da recorrente é a de que 'tendo depositado em singelo na CGD, antes de esgotado o prazo para o respectivo pagamento voluntário, os montantes das rendas dos meses de Julho e seguintes de 1998, tal facto, por si só, obsta à resolução do contrato com fundamento no artº 64º, nº 1, al. a), do RAU. Ou seja: apesar de não terem sido notificados ao senhorio, de não abrangerem a indemnização de 50% a que se refere o artº 1042º, nº 1, do Código Civil, e de não serem condicionais, mas definitivos, tais depósitos, segundo a ré, são liberatórios; e são-no independentemente da questão de saber se há ou não há mora, quer do devedor, quer do credor'.
O Tribunal não aceitou o entendimento da ré, ao verificar que esta 'não recorreu em tempo oportuno aos mecanismos que a lei coloca à disposição do inquilino para fazer cessar o direito do senhorio à reclamação com base no artigo 64º, nº 1, alínea a), do RAU [...]. Se ao menos tivesse depositado, ainda que condicionalmente, as rendas e a indemnização legal, o contrato não deixaria de subsistir e o despejo não seria ordenado, mesmo que tivesse havido, como houve, sucumbência quanto à prova dos fundamentos da consignação em depósito'.
2.2. - A norma do nº 1 do artigo 22º do RAU.
O arrendatário pode depositar a renda, diz-nos este nº
1, quando ocorrerem os pressupostos da consignação em depósito e ainda quando lhe seja permitido fazer cessar a mora ou fazer caducar o direito à resolução do contrato, por falta de pagamento de renda, nos termos, respectivamente, dos artigos 1041º, nº 2, e 1048º do Código Civil.
Para a recorrente, o Tribunal interpretou essa norma com um sentido segundo o qual o arrendatário 'não poderá efectuar o depósito da renda, mesmo antes do seu vencimento, quando houver litígio sobre a ocorrência dos pressupostos da consignação em depósito, ou seja, só poderá efectuar o depósito da renda se o mesmo for acompanhado da indemnização legalmente estabelecida para o não pagamento tempestivo da renda, mesmo antes de se apurar a existência ou não dos pressupostos fixados no artº 841º nº 1 do Código Civil
(CC).
Uma aplicação do artº 22º, nº 1 do RAU estaria em conformidade com a CRP quando o mesmo fosse interpretado no sentido de que só após a verificação judicial da não ocorrência dos pressupostos da consignação em depósito seria exigível a indemnização legalmente fixada'.
Ora, o aresto recorrido confrontou a norma em questão para dela retirar que a consignação em depósito das rendas é apenas admitida nas hipóteses previstas no artigo 841º, nº 1, do Código Civil, 'isto é, quando o inquilino, sem culpa sua, não puder efectuar a prestação, ou não puder fazê-lo com segurança por qualquer motivo relativo à pessoa do credor (al. a), ou quando o credor estiver em mora (al. b); e pode ainda ter lugar quando seja permitido ao inquilino fazer cessar a mora ou fazer caducar o direito à resolução do contrato, por falta de pagamento de renda, nos termos, respectivamente, dos artºs. 1041º, nº 2, e 1048º do Código Civil'.
No caso, só depois de findos os articulados é que a ré pretendeu fazer caducar o direito à resolução do contrato, nos termos do mecanismo previsto no artigo 1048º citado.
Assim, escreveu-se no acórdão, 'quer porque a pretensão em causa teria que ser formulada até ao final do prazo para contestar a acção, quer porque o depósito (ainda que condicional), teria que abranger a indemnização legal (cfr. os já citados artºs. 1042º, nº 1, e 1048º), a decisão da 1ª instância no sentido de não declarar imediatamente caduco o direito dos autores foi perfeitamente correcta; e foi acertada, de igual modo, a decisão de organizar a base instrutória, nela inserindo os factos controvertidos que em sede de sentença haveriam de proporcionar um juízo seguro a respeito da legitimidade da consignação em depósito das rendas, no quadro do artº 841º'.
2.3. - A norma do artigo 841º do Código Civil.
A norma em causa diz-nos quando tem lugar a consignação em depósito.
Na tese do recorrente, a interpretação dada ao preceito pelo acórdão recorrido retira-lhe qualquer alcance ou utilidade, 'porquanto só admite os efeitos da consignação se o arrendatário se assumir antecipadamente como totalmente inadimplente, com culpa, ou seja, como não tendo pago a renda devida ao senhorio e, como tal, depositar, juntamente com essa renda, a indemnização correspondente ao não cumprimento da prestação em dívida'.
Em sua opinião, uma interpretação conforme aos ditames constitucionais exigia que a norma fosse interpretada 'no sentido de que só após a verificação da culpa pelo cumprimento defeituoso de uma obrigação poderia ser aplicável a sanção correspondente, a qual, in casu, seria a exigência de uma indemnização correspondente a 50% das rendas que não foram pagas no local estipulado'.
O certo é que, a este respeito, a decisão recorrida ponderou o seguinte:
'A ré limitou-se a alegar factos tendentes a demonstrar que teve razão para consignar em depósito as rendas, face ao disposto no artº 841º, nº 1, a), do CC; não alegou em termos suficientemente inequívocos e precisos, a nosso ver, que o senhoria estivesse em mora (al. b) do mesmo artigo). Segundo a referida alínea a), o devedor pode livrar-se da obrigação depositando a renda devida quando, sem culpa sua, não puder efectuar a prestação ou não puder fazê-lo com segurança, por qualquer motivo relativo à pessoa do credor. Ora, é manifesto que, conforme resulta dos factos coligidos, a recorrente não provou, como lhe competia, os pressupostos legais da consignação em depósito
(tenha-se em atenção, fundamentalmente, as respostas negativas aos quesitos 1º e
2º, 6º e 7º e os factos 11 a 15, inclusive); e também não provou, de qualquer modo, a mora creditoris. Por consequência, o depósito que efectuou não é liberatório; foi um depósito indevido, por isso que as rendas deveriam ter sido pagas ao senhorio no tempo e lugar contratualmente estipulados, e não o foram.'
2.4. - A norma do nº 1 do artigo 1041º do Código Civil.
Cuidando-se aqui da mora do locatário, entende a recorrente que o acórdão interpretou a norma do nº 1 do preceito com um sentido segundo o qual 'o arrendatário se constitui em mora quando não paga a renda em casa do senhorio, mesmo que, convencido de que cumpre a prestação, deposita a renda na CGD, antes do seu vencimento, em nome do senhorio e antes de ser judicialmente determinada se procedem as justificações que alegou para proceder a esse depósito, ou seja, para não ter pago a renda em caso do senhorio'.
Ora, segundo crê a recorrente, 'uma aplicação daquele normativo em conformidade com a CRP exige que o mesmo seja interpretado no sentido de que a mora do arrendatário só se verifica quando o mesmo não paga a renda, ciente dessa realidade, nem manifesta por qualquer meio a intenção de o fazer dentro dos respectivos prazos legais'.
No entanto, o acórdão recorrido, tendo presente o bloco normativo aplicável, também a este propósito se limitou a uma leitura singela das normas, face às quais se concluiu que, não tendo a interessada provado, como lhe competia, os pressupostos legais da consignação em depósito, não é este, indevidamente efectuado, liberatório.
2.5. - A norma do artigo 1048º do Código Civil.
Diz-nos, por fim, o artigo 1048º que o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário, até à contestação destinada a fazer valer esse direito, pague ou deposite as somas devidas e a indemnização referida no nº 1 do artigo 1041º.
O acórdão recorrido retirou as ilações que, naturalmente, decorrem do anteriormente exposto.
Contudo, para a recorrente esse entendimento, ao equiparar à total falta de pagamento das rendas o depósito, feito a título excepcional, de algumas rendas em nome do senhorio, ainda que antes do respectivo vencimento, assume uma dimensão interpretativa insustentável em Estado de direito e ofensiva, como tal, do artigo 2º da CR.
3. - O tribunal recorrido, em suma, considerou não ter a recorrente logrado demonstrar os factos que, nos termos do artigo 841º do Código Civil, fundamentam a consignação em depósito e que, face ao disposto no nº 1 do artigo 22º do RAU, permitiriam o depósito da renda, não tendo feito cessar a mora mediante o depósito da renda, de acordo com os artigos 1041º, nº 2, e 1048º do Código Civil.
Na verdade, o aresto não acolheu o entendimento, defendido pela recorrente, segundo o qual as rendas foram pagas em devido tempo, a título excepcional, por depósito na CGD: não se teve por verificado uma causa justificativa do depósito em referência, por inverificação dos pressupostos legais e, como tal, foi o mesmo julgado como não liberatório.
Acresce que a decisão recorrida mais considerou não ter o recorrente lançado mão, em tempo oportuno, dos mecanismos colocados pela lei à disposição do inquilino para fazer cessar o direito à resolução do contrato com base no artigo 64º, nº 1, alínea a), do RAU, tendo pretendido fazê-lo tardiamente, 'servindo-se (escreveu-se), ilegalmente, da «intermediação» do Juiz da causa'.
Por outras palavras, a situação subjacente intenta a reapreciação do decidido numa sede que escapa à natureza do recurso da constitucionalidade (e à competência deste Tribunal), sendo certo que o controlo de constitucionalidade é normativo, objectivamente aferido.
Além do mais as mencionadas normas foram aplicadas com o sentido obviamente decorrente da sua literalidade inequívoca.
Não se compreende, de resto, a insistência da recorrente na alegada interpretação constitucionalmente desconforme das normas aplicadas: não só a decisão recorrida não se estruturou a partir de juízos de inconstitucionalidade, como a técnica da interpretação conforme subentende um texto plurissignificativo, de dúbio teor verbal, a implicar opção pelo sentido compatível no ponto de vista jurídico-constitucional, o que não é, manifestamente, o caso.
III
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8 unidades de conta.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2001 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida