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Proc. n.º 796/99
1ª Secção Cons.º Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I – RELATÓRIO
1. – P... veio intentar recurso contencioso de anulação, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra (TACC), da deliberação da Câmara Municipal de Alcobaça, de 15 de Setembro de 1997, que indeferiu o pedido de concessão de alvará sanitário para as instalações de suinicultura sitas no lugar de Casal de Guerra, Benedita.
O TACC, por sentença de 3 de Novembro de 1998, decidiu rejeitar o recurso por extemporaneidade, uma vez que foi ultrapassado o prazo de dois meses contado nos termos do artigo 279º do Código Civil.
Não se conformando com o assim decidido, P.... interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), alegando a inconstitucionalidade da interpretação dada aos artigos 28º e 29º da LPTA, que considera restritiva dos direitos garantidos nos artigos 2º e 268º/4 da CRP.
2. – O STA, por acórdão de 20 de Outubro de 1999, decidiu negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
Quanto à questão de constitucionalidade, escreveu-se no acórdão recorrido:
'Finalmente, o recorrente suscita ainda a inconstitucionalidade dos artigos 28º e 29º da LPTA, na interpretação que lhes foi dada na sentença recorrida. Não tem qualquer razão. O artº 268º, n.º4 da Constituição não impõe o acesso indiscriminado ao recurso contencioso, constituindo o artº 29ºda LPTA uma regulamentação legítima desse direito. Não há, pois, qualquer violação aquele dispositivo constitucional.'
Ainda inconformado com o assim decidido, P... interpôs recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a conformidade à Lei Fundamental dos artigos 28º e 29º, n.º1 da LPTA conjugados com os artigos 279º e 296º do Código Civil. Convidado o recorrente para identificar com precisão a interpretação normativa que considerava inconstitucional veio dizer que é a que entende que 'daquelas disposições decorre que na contagem do prazo de interposição do recurso contencioso de anulação se inclui o dia da notificação ou publicação do acto recorrido uma vez que a este prazo não é aplicável o disposto na alínea b) do artigo 279º do Código Civil', por restringir de forma inconstitucional os direitos fundamentais
à tutela jurisdicional efectiva e ao recurso dos actos administrativos, violando os artigos 18º, 20º e 268º da Constituição'.
Após a prestação deste esclarecimento, o recorrente apresentou as suas alegações em que concluíu pela forma seguinte:
1. A interpretação que aos arts. 28º e 29º, nº 1 da LPTA conjugados com o art. 279º do C.C. foi dada pelo tribunal recorrido é claramente inconstitucional, porque viola os arts. 13º, 20º e 268º, nº 4 da Lei Fundamental. Com efeito,
2. O entendimento segundo o qual a alínea b) do art. 279º do C.C. não se aplica à contagem dos prazos previstos no art. 28º da LPTA resulta de uma interpretação restrita àqueles prazos e que não tem correspondência na interpretação das regras relativas à contagem dos demais prazos de caducidade do direito de acção e de outros legalmente previstos para o exercício de direitos.
3. Tal interpretação, porque totalmente injustificada em face das especialidades e natureza do recurso contencioso e das respectivas normas procedimentais, viola claramente o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado.
4. Especialmente se atendermos a que o entendimento constante do aliás douto acórdão sob recurso, leva a situações de manifesta desigualdade no modo de contagem de prazos substancialmente idênticos em termos da sua natureza, fazendo uma distinção entre os mesmos apenas porque se trata do exercício de um direito frente a uma entidade pública.
5. Sem que a lei preveja, em lado algum, na sua letra ou espírito, razão justificativa para tal tratamento desigual.
6. Tanto mais que o sistema de cômputo civil instituído no art. 279º do C.C. e, concretamente plasmado na sua alínea b), resulta da consagração do princípio da tutela da segurança jurídica, que constitui um princípio geral de direito. Acresce que,
7. Aquelas normas, com a interpretação que lhes foi dada no aliás douto Acórdão recorrido, consubstanciam, claramente, restrições ilegítimas dos direitos à tutela jurisdicional efectiva e ao recurso contencioso dos actos administrativos, consagrados, respectivamente, nos arts. 20º e 268º, nº 4 da Constituição. Com efeito,
8. Aquelas normas organizatórias e procedimentais não se limitam a conformar os termos do exercício daqueles direitos constitucionalmente garantidos porquanto restringem de forma manifesta a segurança e certeza jurídicas no exercício dos mesmos, que, enquanto princípio geral de direito inerente a um Estado de Direito, faz necessariamente parte do conteúdo essencial de qualquer direito fundamental e, mais especificamente, dos direitos, liberdades e garantias e outros direitos a estes análogos. Sendo que,
9. A referida restrição viola claramente o princípio da proibição do excesso resultante do art. 18º da Constituição, na medida em que é perfeitamente injustificada e desnecessária à conformação daquele direito no confronto com outros direitos fundamentais ou interesses públicos constitucionalmente tutelados.
10. Deste modo, em face do exposto, só o entendimento de que a alínea b) do art. 279º do C.C. também tem, conjuntamente com a respectiva alínea c), aplicação ao prazo previsto no art. 28º da LPTA, se revela conforme com os invocados princípio da igualdade e direitos à tutela jurisdicional efectiva e ao recurso contencioso. NESTES TERMOS Deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, julgando-se inconstitucionais as normas conjugadas dos arts. 28º e 29º, nº 1 da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e do art. 279º do C.C., na interpretação que lhes foi dada pelo Venerando Supremo Tribunal Administrativo, segundo a qual, em virtude do nº 1 do art. 29º da LPTA, a alínea b) do referido art. 279º do Código Civil, não tem aplicação aos prazos referidos no art. 28º da LPTA. Só assim decidindo SERÁ CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA!'
A Câmara Municipal de Alcobaça recorrida não apresentou alegações.
Corridos que foram os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS
3. – De acordo com o esclarecimento prestado nos autos pelo recorrente, confirmado pelas conclusões das respectivas alegações, o que o recorrente questiona é a interpretação feita na decisão recorrida dos artigos
28º e 29º, n.º1, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(LPTA) conjugada com o artigo 279º do Código Civil, na medida em que entende que na contagem do prazo de propositura do recurso contencioso não se atende à norma da alínea b) do artigo 279º mas apenas à da alínea c) do mesmo preceito.
Um tal entendimento seria inconstitucional por violar o princípio do direito de acesso ao direito e da tutela judicial efectiva garantidos nos artigos 18º, 20º e 268º, n.º4, da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos, em primeiro lugar, o teor das normas questionadas. Da LPTA:
'Artigo 28º
(Prazos de recurso)
1 – Os recursos contenciosos de actos anuláveis são interpostos nos seguintes prazos (...): a. Dois meses se o recorrente residir no continente ou nas regiões autónomas; b. (...);
2 – os prazos estabelecidos no número anterior contam-se nos termos do artigo
279º do Código Civil, sem prejuízo do disposto nos artigos 31º, n.º2, e 85º' Artigo 29º
(Recurso do acto expresso)
1 – O prazo para interposição de recurso de acto expresso conta-se da respectiva notificação ou publicação, quando esta seja imposta por lei.
2 – (...).' Do Código Civil:
'Artigo 279º
(Cômputo do termo)
À fixação do termo são aplicáveis, em caso de dúvida, as seguintes regras: a. Se o termo se referir ao princípio meio ou fim do mês, entende-se como tal, respectivamente, o primeiro dia, o dia 15 e o último dia do mês; se for fixado no princípio, meio ou fim do ano, entende-se, respectivamente, o primeiro dia do ano, o dia 30 de Junho e o dia 31 de Dezembro; b. Na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia nem a hora, se o prazo for de horas, em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr; c. O prazo fixado em semanas, meses ou anos, a contar de certa data, termina às 24 horas do dia que corresponda dentro da última semana, mês ou ano, a essa data; mas, se no último mês não existir dia correspondente, o prazo finda no último dia desse mês; d. É havido, respectivamente, como prazo de uma ou duas semanas o designado por oito ou quinze dias, sendo havido como prazo de um ou dois dias o designado por 24 ou 48 horas; e. O prazo que termine em Domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil; aos domingos e dias feriados são equiparadas as férias judiciais, se o acto sujeito a prazo tiver de ser praticado em juízo.'
No caso em apreço, vem claramente assente nos autos que o recorrente foi notificado da deliberação impugnada no dia 2 de Outubro de
1997, tendo a petição do recurso contencioso dado entrada em Tribunal no dia 3 de Dezembro de 1997.
Também não se discute nos autos que o prazo legal de interposição do recurso é de dois meses.
A única divergência que ocorre, é a de que o recorrente entende que mesmo contando o prazo de interposição do recurso contencioso nos termos da alínea c) do artigo 279º do Código Civil, se não se aplicar também e simultaneamente a essa contagem de prazo o que se dispõe na alínea b) da mesma norma, se está a restringir de foram inconstitucional os direitos fundamentais à tutela jurisdicional efectiva e ao recurso dos actos administrativos que, por serem direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias só podem ser restringidos nos termos da Constituição.
4. – Nos autos, a decisão de 1ª instância do TACC, depois confirmada pelo STA, limitou-se a aplicar a alínea c) do artigo 279º do Código Civil (CC): o recorrente foi notificado da deliberação impugnada no dia 2 de Outubro de 1997, sendo o prazo de recurso de dois meses, concluiu-se que o prazo terminava em 2 de Dezembro de 1999, pelo que tendo o recurso sido interposto em 3 de Dezembro de 1997 estava fora de prazo, e, por isso, foi rejeitado por extemporaneidade.
No STA, a questão foi tratada da forma seguinte: 'Não a tem quanto à primeira, pois como se afirma no parecer do Ilustre Magistrado do MºPº, junto deste Tribunal e na Jurisprudência aí citada, o prazo de interposição de recurso termina no dia do segundo mês correspondente àquele em que ocorreu a notificação do acto recorrido. A alínea c) do artº 279º do C. Civil é clara.
É certo que nos termos da alínea b) do mesmo artigo se dispõe que na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia, mas tais regras têm diferentes campos de aplicação, estando a regra da alínea c) em consonância com o disposto no n.º1 do artigo 29º da LPTA, onde se dispõe que o prazo de interposição do recurso de acto expresso se conta a partir da respectiva notificação ou publicação.'
5. – Importa desde já referir que este Tribunal tendo a sua competência limitada às questões de constitucionalidade, não pode apreciar qualquer divergência interpretativa em matéria de direito infraconstitucional que é, afinal, o que está na base do presente recurso.
Porém, o recorrente suscita a inconstitucionalidade da interpretação feita na decisão recorrida, na medida em que, ao não considerar aplicável a alínea b) do artigo 279º do CC na contagem do prazo de interposição do recurso contencioso, se estaria a restringir o direito à tutela jurisdicional efectiva e ao recurso contencioso.
Vejamos.
De acordo com o artigo 20º da Constituição, nele se estabelece que 'a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiências dos meios económicos' (n.º 1); e que
'todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo'.
Assim, o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva compreende, além de outros direitos, a garantia da via judiciária que consiste no direito de recurso a um tribunal e à obtenção de uma decisão jurídica em prazo razoável e mediante processo equitativo, não podendo tal direito de acesso ser negado por insuficiência económica.
Esta garantia da via judiciária abrange ainda o estabelecimento dos mecanismos adequados e necessários à defesa dos direitos subjectivos e interesses legítimos dos cidadãos, por forma a constituir-se uma protecção plena, sem lacunas. Todavia, o legislador ordinário conserva ainda uma ampla margem de liberdade de conformação na disciplina de diversos aspectos – alguns essenciais – da regulamentação do direito constitucional ao recurso contencioso, como, por exemplo, o âmbito do recurso, a legitimidade, os prazos, os poderes de cognição do tribunal e outros.
A garantia constitucional do direito à tutela jurisdicional efectiva não implica que seja inteiramente livre o acesso aos tribunais, podendo existir razões de ordem pública, de justiça, de segurança e de eficiência que levem o legislador a limitar as formas pelas quais se concretiza o recurso à justiça administrativa. O legislador apenas está impedido de criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, sem fundamento e de forma excessiva ou desproporcionada, o acesso dos cidadãos aos tribunais em geral ou à justiça administrativa.
Esta garantia do direito à tutela jurisdicional efectiva consta também do artigo 268º, da Constituição, no qual se estabelecem os Direitos e garantias dos administrados, tendo o n.º4 do preceito o seguinte teor: 'É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas.'
O legislador do processo administrativo fixou o prazo de recurso contencioso de actos anuláveis em 2 meses, se o recorrente residir no continente ou nas regiões autónomas (artigo 28º, alínea a), da LPTA). No número
2 do mesmo preceito, o legislador ordinário determinou que os prazos estabelecidos no n.º1 se contam nos termos do artigo 279º do Código Civil. No que se refere ao momento do início do prazo para interposição de recurso de acto expresso, o legislador do processo administrativo estabeleceu que o prazo de recurso se conta a partir da respectiva notificação.
A questão de constitucionalidade que vem suscitada pelo recorrente é a de saber se a forma de contagem do prazo de recurso utilizando apenas a alínea c) do artigo 279º do CC constitui uma restrição do direito fundamental de recurso contencioso e, portanto, se será violadora do direito à tutela jurisdicional efectiva.
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Com efeito, o legislador ordinário dispõe de uma larga margem de conformação em matéria de fixação dos prazos de recurso. Aliás, o recorrente não questiona o prazo de recurso em si mesmo, mas tão somente a forma como as instâncias procederam à sua contagem: segundo o recorrente haveria que contar o prazo de 2 meses de acordo com a alínea c) do artigo 279º do CC e, depois, como a alínea b) se aplica 'na contagem de qualquer prazo' haveria adicionar mais um dia, uma vez que na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia em que ocorrer o evento.
Porém, um tal entendimento não colhe qualquer apoio da doutrina civilista ou da jurisprudência (cf. acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 23-05-89 – Rec. 24882, BMJ nº 387, pág. 352, de 13-02-92 Rec.
30068, BMJ nº 414, pág. 605 e de 12-03-92 – Rec. 30044, BMJ nº 415, pág. 696 e também Ferreira Pinto e Guilherme da Fonseca, in 'Direito Processual Administrativo Contencioso', pág. 96, nota 321). Assim, Pires de Lima e Antunes Varela referem em comentário ao artigo 279º (in 'Código Civil Anotado', 4ª Edição, pág. 256) que '2. Entre as várias regras contidas na disposição, reveste especial interesse o disposto na alínea b), visto ter-se adoptado o regime processual de contagem dos prazos (Cód. Proc. Civil, art. 148º, n.º1), em prejuízo do sistema do Código Civil de 1867 (art. 562º). Os prazos contam-se, portanto, a partir da entrada em vigor da nova lei civil, com mais um dia ou uma hora, conforme os casos.
3. A doutrina da alínea c) harmoniza-se com as regras das alíneas anteriores. Assim, o prazo de uma semana que começou numa segunda-feira termina às 24 horas da Segunda-feira seguinte, não se contando, portanto, o dia do início do prazo. O mesmo acontece com o prazo de meses ou anos. (...)'[sublinhado agora].
Verifica-se assim que a regra de cálculo do prazo fixado em semanas, meses ou anos, estabelecida na alínea c) do artigo 279º do Código Civil, tem ínsita a que se estabelece na alínea b) do mesmo preceito, não havendo, por isso, que fazer preceder o seu funcionamento da prévia aplicação desta alínea b). Portanto, desde logo parece não ter qualquer fundamento a tese que o recorrente defende quanto ao modo de contagem do prazo de recurso fixado em meses.
Mas a questão de constitucionalidade que vem suscitada não tem qualquer razão de ser: de facto, o estabelecimento de um prazo para interpor um recurso contencioso e a forma diferente de calcular a contagem desse prazo, conforme os casos a que são aplicados, não dificulta nem prejudica de forma desproporcionada ou irrazoável o direito de acesso dos particulares ao recurso contencioso, não violando o direito à tutela jurisdicional efectiva o cálculo de tal prazo fixado em meses e contado apenas com recurso à alínea c) do artigo 279º do Código Civil.
III – DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando na parte impugnada a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 unidades de conta.
Lisboa, 27 de Setembro de 2000 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa