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Proc. nº 112/97
2ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. S..., SA interpôs recursos para o Tribunal de Círculo da Comarca de Oeiras das decisões da COMISSÃO NACIONAL DE ELEIÇÕES que a condenaram, respectivamente, na coima única de 20.000.000$00, pela violação do artigo 8º da Lei nº 31/91, de 20 de Julho (divulgação de resultados de sondagem executada à boca das urnas, directamente relacionada com o acto eleitoral ainda a decorrer), e na coima única de 10.000.000$00, pela prática de 85 infracções ao artigo 62º da Lei nº 14/79, de 16 de Maio (não transmissão dos tempos de antena dos partidos políticos concorrentes às eleições para a Assembleia da República em Outubro de 1995).
No primeiro recurso, entendeu a recorrente que, embora encontrando-se proibida tal conduta (divulgação de sondagens no próprio dia das eleições, antes do encerramento das urnas) pelo artigo 8º da Lei nº 31/91, a mesma não se encontrava todavia cominada com qualquer coima ou sanção, não se mostrando admissível ou «permitida a analogia para determinar uma coima».
No segundo recurso, entendeu a recorrente que a imposição aos operadores privados de televisão da obrigação de conceder tempo de antena aos partidos políticos, introduzida pela Lei nº 35/95, de 18 de Agosto, ao alterar o artigo 62º da Lei Eleitoral para a Assembleia da República (Lei nº 14/79, de 14 de Maio), carecia de fundamento constitucional, legal ou contratual. Como afirmou nas suas alegações:
78º Nestas circunstâncias cabe concluir da seguinte forma:
a) A verificar-se a prática da contra-ordenação por parte da S..., o que não se concede, esta é apenas uma e única, embora continuada, determinando a aplicação somente de uma coima única;
b) O Artº 40º nº 3 não impõe o dever aos operadores privados de televisão de conceder tempo de antena aos partidos políticos em período eleitoral;
c) Pelo contrário, aquele comando consagra o direito dos
'concorrentes' a eleições de terem direito a tempo de antena em estações emissoras de televisão de âmbito nacional e regional, sem especificar quais, e remetendo essa regulamentação para a Lei;
d) No regime jurídico da actividade de televisão consagrou-se o sistema de aquele referido direito ser garantido pelos dois canais de televisão da concessionária do respectivo serviço público (Artº 32º nº 1 da Lei nº 58/90 e cláusulas 5ª nº 1, 9 do Contrato de Concessão);
e) O regime jurídico e quadro legal ao abrigo do qual a S... concorreu ao licenciamento do 3º Canal é composto, nomeadamente, pela Lei nº
58/90, Regulamento do Concurso, Proposta apresentada a concurso, Resolução do Conselho de Ministros nº 6/92 e Alvará para o Exercício da Actividade de Televisão;
f) A alteração da Lei Eleitoral, pela qual a S... passou a ser obrigada a conceder tempo de antena, constitui:
- uma alteração unilateral e ilegal das condições e requisitos do licenciamento integrando violação de direitos adquiridos;
- uma violação do Artº 2º da Constituição por ferir o princípio da confiança que deveria respeitar;
- uma violação do nº 2 do Artº 15º da Lei de Televisão, pois constitui um condicionamento à difusão de programas por parte do órgão de soberania Assembleia da república e uma ofensa ao princípio da independência em matéria de programação.
2. Por sentença de 6 de Fevereiro de 1996, do Tribunal de Círculo de Oeiras, o primeiro recurso foi julgado procedente e a recorrente absolvida.
Quanto ao segundo recurso, foi o mesmo julgado parcialmente procedente, substituindo-se a decisão recorrida pela condenação da recorrente na coima única de 5.000.000$00.
Entendeu-se, para tanto, que a recorrente praticara não
85, mas apenas uma única infracção contra-ordenacional, por violação do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 62º da Lei nº 14/79, de 16 de Maio, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 35/95, de 18 de Agosto.
Relativamente à questão de inconstitucionalidade suscitada, tendo por objecto esta norma, concluiu aquela decisão que não se verificava qualquer violação do artigo 2º da Constituição. Para tanto, considerou-se, no essencial, que, à data da concessão do alvará de emissão à recorrente – 2 de Outubro de
1992 – encontrava-se já em vigor o artigo 40º, nºs 1 e 3, da Constituição, redacção introduzida pela Lei Constitucional nº 1/89 e, bem assim, a Lei nº
58/90, de 7 de Setembro, disciplinadora da actividade televisiva, resultando desses preceitos a clara distinção entre tempos de antena institucionais, esses apenas impostos aos operadores públicos, e tempos de antena em períodos de campanha eleitoral, estipulando a lei, em relação a estes, que a respectiva utilização seria regulada pela Lei Eleitoral.
A alteração introduzida na Lei Eleitoral, através da Lei nº 35/95, impunha-se, de resto, uma vez que aquela lei datava já de 1979 e, após a 2ª revisão constitucional permitira-se a abertura do sector televisivo aos operadores privados. Afirmou-se nesse aresto:
Assim, quando foi licenciada a actividade de radiotelevisão por parte da S..., já esta entidade tinha perfeito conhecimento, quer face ao disposto no nº 3 do art. 40º da CRP (na redacção dada pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho), quer face ao disposto na Lei nº 58/90, de 7 de Setembro, de que era sua obrigação garantir tempo de antena, durante os períodos de campanha eleitoral, aos partidos políticos e coligações concorrentes à eleição para a Assembleia da República, tudo nos termos constantes (ou que viessem a constar) da Lei Eleitoral para este órgão de soberania.
3. Inconformada, a recorrente interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, restrito à parte que a condenou na coima de
5.000.000$00. Na sua motivação, continuou a sustentar a inconstitucionalidade da alínea a) do nº 2 do artigo 62º da Lei Eleitoral, com a redacção introduzida pela Lei nº 35/95, de 18 de Agosto, entendendo, nomeadamente, que o tribunal recorrido «deveria ter aplicado o nº 3 do artº 40º da Constituição no sentido de que não contém uma obrigação para os operadores privados, consagrando apenas um direito aos concorrentes às eleições» e ainda que «deveria ter considerado que a alteração da Lei Eleitoral, mais do que regular a utilização do direito de antena, atribui obrigações aos operadores privados, em perfeita oposição ao regime legal» no âmbito do qual se efectuara o licenciamento da actividade da recorrente.
Na sua resposta, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
Por acórdão de 26 de Novembro de 1996, a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida, entendendo, além do mais, que se não verificava qualquer violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica ínsitos no artigo 2º da Constituição.
4. É dessa decisão que vem interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, para apreciação da questão de inconstitucionalidade da norma constante da alínea a) do nº 2 do artigo 62º da Lei nº 14/79, de 16 de Maio, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 35/95, de 18 de Agosto.
Já neste Tribunal, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
a) A Constituição da República reconhece no nº 3 do Artº 40º que nos períodos eleitorais os concorrentes têm direito a tempo de antena;
[...]
c) A Lei nº 58/90 que regulamenta a Actividade de Televisão, atribui a concessão do serviço público de televisão à RTP-SA (Artº 5º);
[...]
f) A Lei nº 58/90 remete para a Lei Eleitoral apenas a regulamentação da utilização do direito de antena e não a definição de quais as estações que têm a obrigação de o conceder (Artº 33º, nº 2);
[...]
h) A Lei que na prática consagra o direito de antena a que alude o nº
3 do Artº 40º da Constituição da República, é a Lei nº 58/90 e não a Lei Eleitoral;
i) Á Lei Eleitoral cabia apenas regulamentar a forma de utilização desse direito;
j) O Estado, através dos respectivos órgãos de soberania, após a revisão constitucional, legislou e aprovou um regime jurídico de actividade de televisão no qual o serviço público era prestado na totalidade pela concessionária não havendo imposições especificas desse serviço para os operadores privados;
[...]
l) A Lei nº 35/95 que alterou a alínea a) do nº 2 do Artº 62º da Lei nº 15/79, violou, por isso, a Constituição da República, concretamente o seu Artº 2º e o Princípio da Confiança dele decorrente, que os cidadãos têm legítimas expectativas de ver respeitado que, no caso presente, não foi;
m) A Lei nº 35/95 viola, igualmente, a Constituição da República ao definir, fixar e impôr como bem entendeu, o período horário de programação da recorrente no qual o direito de antena devia ser transmitido, sobrepondo-se e limitando o direito e a independência de programação e de informação da recorrente S...;
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
5. A norma em questão, constante da Lei Eleitoral para a Assembleia da República, é a seguinte: Artigo 62º
(Direitos de antena)
[...]
2. Durante o período da campanha eleitoral as estações de rádio e de televisão reservam aos partidos políticos e às coligações os seguintes tempos de antena:
a) A Radiotelevisão Portuguesa, S. A., em todos os seus canais, incluindo o internacional, e as estações privadas de televisão:
De segunda-feira a sexta-feira – quinze minutos, entre as 19 e as 22 horas;
Aos sábados e domingos – trinta minutos, entre as 19 e as 22 horas;
[...]
Vindo suscitada a violação do princípio da confiança, cumpre averiguar, em primeiro lugar, se a recorrente tinha, à data da edição da norma questionada, legítima expectativa em não ser obrigada a transmitir tempos de antena, durante os períodos eleitorais.
A este propósito, refere-se no acórdão recorrido:
A Constituição é a fonte de direito positivo hierarquicamente superior composta por um complexo de normas jurídicas directamente vinculantes. E se há normas constitucionais que estabelecem determinados objectivos e finalidades, cuja realização prática pressupõe, ou até exige, a emanação de outros actos, sobretudo legislativos, não é lícito concluir pela não preceptividade de tais normas. «A sua disciplina é obrigatória e as directivas por elas definidas, longe de serem meros convites para legislar, assumem o carácter de verdadeiras imposições constitucionais de actividade legiferante»
(cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 2ª edição, Livraria Almedina, Coimbra 1980, pág. 216).
O artigo 40º da C.R.P. consagrando um direito político, é uma norma preceptiva, a necessitar de definição legal da atribuição de tempos de antena e dos critérios de distribuição, mas imediatamente aplicável, nos termos do artigo
18º, nº 1 da C.R.P. - «os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas».
A referência «nos termos da lei», constante no nº 3 do artigo 40º da C.R.P. reporta-se claramente à lei eleitoral e a Lei nº 35/95, de 18 de Agosto, ao introduzir alterações à Lei Eleitoral da Assembleia da República (Lei nº
14/79, de 16 de Maio), mais não visou do que regulamentar o comando do nº 3 do artigo 40º, resultante da segunda revisão constitucional, que aboliu a proibição da propriedade da televisão, impondo ao Estado assegurar a existência e o funcionamento de um serviço público de televisão (cfr. artigo 38º, nº 5 C.R.P.).
[...]
Ao definir-se no nº 1 do artigo 62º que «os partidos políticos e as coligações têm direito de acesso, para propaganda eleitoral, às estações de rádio e televisão, públicas e privadas», está-se a dar cumprimento ao comando constitucional definido no artigo 40º, está-se a dar cumprimento a uma imposição constitucional de actividade legiferante.
A imposição legiferante que decorre do texto constitucional é cumprida, precisamente, com a regulamentação decorrente das alterações introduzidas pela Lei nº 35/95, de 18 de Agosto, concretamente, com a regulamentação decorrente do artigo 62º.
[...]
Aliás, a Lei nº 58/90, de 7 de Setembro – regime jurídico da actividade de televisão – já estabelecia expressamente que o exercício do direito de antena, nos períodos eleitorais, seria regulado pela lei eleitoral
(artigo 33º, nº 2: «nos períodos eleitorais, a utilização do direito de antena é regulado pela Lei Eleitoral»), distinguindo, claramente, o direito a tempo de antena, fora dos períodos oficiais de campanha eleitoral do direito de antena nos períodos eleitorais, na sequência da distinção constante da norma constitucional.
Vimos já que o direito de antena eleitoral (nº 3 do artigo 40º) obriga todas as estações, de âmbito nacional ou regional, sem distinção entre as públicas e as privadas. Aquando da abertura à iniciativa privada, e subsequente licenciamento dos operadores de televisão privados, já a obrigação constitucional estava em vigor e era, por isso, directamente aplicável, vinculando todas as entidades públicas e privadas.
Se não se tivesse verificado a produção legislativa consubstanciada na regulamentação decorrente das alterações introduzidas pela Lei nº 35/95, de
18 de Agosto, a inércia legislativa inconstitucional não poderia, nem deveria, conduzir à supressão prática de um direito político constitucionalmente garantido e não deveria constituir argumento para a recusa do tempo de antena pela operatividade directa da norma do artigo 18º.
Os princípios da confiança e da segurança jurídica ínsitos na ideia de Estado de direito democrático, consagrada no artigo 2º da Constituição, não foram frustrados pela regulamentação decorrente das alterações introduzidas pela lei nº 35/95, de 18 de Agosto. O Estado interveio legislativamente, sem violação do princípio da confiança, dando cumprimento a uma imposição constitucional de actividade legiferante.
O Estado legislador não afrontou a confiança que a S... há-de depositar no Estado uma vez que, ao cumprir uma imposição constitucional – a inércia legislativa constituiria inconstitucionalidade por omissão (artigo 283º)
-, não violou compromissos assumidos pelo Estado-administração quando licenciou a S... na medida em que, quando foi licenciada, a S... passou a estar abrangida pela obrigação de conferir tempos de antena nos períodos eleitorais.
Esta conclusão, bem como o essencial da argumentação que a fundamenta, são de confirmar.
Com efeito, o artigo 40º da Constituição é, desde a segunda revisão constitucional, efectuada em 1989, inequívoco quanto à obrigação de transmissão de tempos de antena, em períodos eleitorais, para as estações privadas de televisão. Dispunha-se neste artigo, na versão de 1989: Artigo 40º
(Direitos de antena, de resposta e de réplica política)
1. Os partidos políticos e as organizações sindicais, profissionais e representativas das actividades económicas têm direito, de acordo com a sua representatividade e segundo critérios objectivos a definir por lei, a tempos de antena no serviço público de rádio e televisão.
2. Os partidos políticos representados na Assembleia da República, e que não façam parte do Governo, têm direito, nos termos da lei, a tempos de antena no serviço público de rádio e televisão, a ratear de acordo com a sua representatividade, bem como o direito de resposta ou de réplica política às declarações políticas do Governo, de duração e relevo iguais aos dos tempos de antena e das declarações do Governo.
3. Nos períodos eleitorais os concorrentes têm direito a tempos de antena, regulares e equitativos, nas estações emissoras de rádio e de televisão de âmbito nacional e regional, nos termos da lei.
Da mera confrontação entre os nºs 1 e 2 deste artigo, por um lado, e o seu nº 3, por outro, resulta claro que apenas os tempos de antena a que se referem os mencionados nºs 1 e 2 são exclusivamente impostos ao serviço público de televisão. Não se encontrando, pois, tal restrição expressa no nº 3 do artigo em causa, já os tempos de antena a atribuir em períodos eleitorais deverão ser transmitidos igualmente pelas estações privadas (neste ponto, a nova redacção do artigo 40º, introduzida pela revisão constitucional de 1997, nada veio alterar). Neste sentido, aliás, se manifestavam, ainda antes da publicação da Lei nº
35/95, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra, 1993, nota VI ao artigo 40º, pág. 241):
Sujeitos passivos do direito de antena e dos direitos conexos são as emissoras de rádio e de televisão públicas («serviço público de rádio e de televisão»), com excepção do direito de antena eleitoral (nº 3), que obriga todas as emissoras de âmbito nacional ou regional, sem distinção entre as públicas e as privadas. A sujeição das emissoras privadas ao direito de antena eleitoral decorre directamente da função constitucional das eleições.
Neste contexto, a remissão efectuada no artigo 33º, nº 2, da Lei nº
58/90, segundo o qual «nos períodos eleitorais, a utilização do direito de antena é regulada pela Lei Eleitoral», não pode deixar de ser entendida como constituindo, desde logo, uma obrigação para todas as estações de televisão. O que se remete para a Lei Eleitoral é, efectivamente, a forma de utilização do direito de antena – que, aliás, varia consoante o tipo de eleição em causa –, sem prejuízo de se estabelecer imediatamente, em execução da Constituição, a obrigação genérica de transmissão de tempos de antena em períodos eleitorais.
Não se pode, pois, reconhecer a existência de qualquer expectativa de que, nesta matéria, fosse titular a recorrente, pelo que falece o pressuposto indispensável a uma eventual ocorrência de violação do princípio da confiança.
6. Também se não descortina qualquer violação da Constituição, como decorrência do facto de a lei ter vindo «definir, fixar e impor como bem entendeu, o período horário de programação da recorrente no qual o direito de antena devia ser transmitido, sobrepondo-se e limitando o direito e a independência de programação e de informação da recorrente S...».
Com efeito, tal imposição – consequente à necessidade de se assegurar, por um lado, que os tempos de antena dos diversos concorrentes sejam regulares e equitativos e, por outro lado, que os mesmos tempos de antena sejam efectivos – resulta directamente do já mencionado artigo 40º, nº 3, da CRP, quando remete para a lei a regulação dos mesmos tempos de antena.
III – DECISÃO
7. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 30 de Junho de 1999 Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José Manuel Cardoso da Costa