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Proc. 82/04
3ª Secção Rel. Cons. Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A Junta de Freguesia A., recorrente no Proc. nº 3679/92, da 6ª Secção, do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrido B., veio, ao abrigo do nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), reclamar do despacho certificado a fls.17, que não lhe admitiu o recurso que pretendeu interpor do acórdão de 6/5/03, que negara provimento ao recurso de revista.
Sustenta que o recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, deve ser admitido, pelo seguinte:
A) Quanto à questão de inconstitucionalidade normativa :
“In casu, a recorrente fundou o seu recurso no facto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ter feito uma interpretação, ainda que implícita, do artº
342º do C.C., a qual subverte e adultera completamente a interpretação que vem sendo dada quer pela doutrina quer pela jurisprudência àquele preceito, segundo a qual aquele que invoca um direito está obrigado a fazer prova dos factos constitutivos do mesmo. No caso dos autos tendo o recorrido alegado o seu cumprimento estava, por força daquela regra, obrigado a prová-lo. A interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez no douto Acórdão desta regra foi dispensar o recorrido de fazer prova de que cumpriu, presumindo esse cumprimento do facto da recorrente não ter logrado provar o não cumprimento invocado, impondo a esta um ónus da prova que pela aplicação do artº 342º do C.C. lhe não pertencia. Explicou ainda a recorrente que essa interpretação violava o princípio da igualdade previsto no artº 13º da Constituição, na medida em que essa discriminação, pela qual se dispensou o recorrido de fazer prova do seu cumprimento, se deveu ao facto de a categoria profissional de arquitecto que o Supremo Tribunal de Justiça caracterizou como produtor de obra de cariz intelectual, inteiramente livre e responsável pelo seu trabalho, o qual, apesar de no mesmo Acórdão se ter dito que se concretizava na apresentação de um projecto apto ao fim pretendido, a verdade é que a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez do artº 342º do C.C. dispensou o recorrido de ter de provar que o projecto apresentado serviu o fim pretendido, atirando para cima da recorrente o ónus de isso ter de provar. Em face disto a recorrente concluiu que o Supremo Tribunal de Justiça efectuou uma interpretação implícita do artº 342º do C.C., que traduz na sua inconstitucionalidade por violação do artº 13º da C.R.P. referente ao princípio da igualdade. Pensamos por isso que a inconstitucionalidade foi correctamente enquadrada no artº 70º nº 1 b) da LOTC e artº 280º nº 1 b) do C.R.P.”
B) Quanto ao ónus de suscitação atempada da questão de constitucionalidade
“Sabe a recorrente que é princípio firmado na jurisprudência deste Tribunal Constitucional, enquanto requisito de admissibilidade de recurso, que a questão da constitucionalidade seja levantada durante o processo em termos de conferir ainda ao Tribunal recorrido a hipótese de sobre ela tomar posição antes de se ter esgotado o seu poder jurisdicional. Todavia, tal como se dá conta no requerimento de interposição de recurso a jurisprudência deste Tribunal tem admitido excepções a esta regra quando a questão em apreço seja de todo imprevisível e excepcional em termos do recorrente não a ter podido levantar ainda quando o poder jurisdicional do Tribunal ‘a quo’ se tenha esgotado. A recorrente defende ser este o caso. Na verdade, a recorrente entende que a regra do artº 342º do C.C. em termos de se admitir que, sobre aquele que invoque um direito impende o ónus de provar os factos constitutivos do mesmo, está tão consolidado no nosso ordenamento jurídico que para a recorrente era completamente inimaginável e imprevisível que o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão em causa pudesse interpretá-la do modo como o fez, conferindo a algumas categorias de pessoas – in casu ao recorrido – atenta a sua categoria profissional de arquitecto, um privilégio especial dispensando-o da prova do direito que invocou, isto é, dispensando-o da prova do seu cumprimento e presumindo isso pelo não cumprimento invocado pela recorrente, o que se traduz numa discriminação de tratamento que redunda na violação do princípio de igualdade previsto no artº 13º da C.R.P. Perante esta interpretação que o Supremo fez, a qual era de todo inesperada, a recorrente só poderia levantar a questão da inconstitucionalidade no requerimento de interposição de recurso na medida em que, apesar de ter existido pedido de aclaração e de nulidade do Acórdão, esses não são meios idóneos para a arguição da inconstitucionalidade.”
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente, desde logo porque a decisão impugnada não assentou na aplicação da norma questionada pela entidade recorrente: na verdade, o Supremo não realizou a interpretação das regras atinentes à repartição do ónus da prova, especificada pela reclamante – limitando-se a concluir, face à matéria de facto provada, pela improcedência da
“excepção do cumprimento imperfeito”, tendo em conta, nomeadamente, o objecto do recurso de revista (cfr. p. 47). Tal circunstância – não aplicação, como “ratio decidendi”, da interpretação normativa arguida de inconstitucional – determina, sem mais, a inverificação dos pressupostos do recurso de constitucionaldiade interposto.”
2. São as seguintes as ocorrências processuais com relevo para decisão da reclamação :
a) A ora reclamante interpôs recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que a condenou a pagar ao autor a quantia aí determinada a título de honorários relativos a dois contratos de elaboração de projectos de arquitectura. b) Concluiu as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1- Na resposta à matéria de facto, a fundamentação foi ‘as respostas aos quesitos fundaram-se nas respostas dos senhores peritos, nos documentos juntos ao processo e no depoimento das testemunhas gravadas’. No recurso de apelação arguiu a nulidade da fundamentação. A Relação, fazendo uma incorrecta interpretação da lei, não a reconheceu.
3- A prestação do recorrido era uma só e não se esgota na entrega física dos projectos mas sim no resultado que sobre eles se venha a produzir decorrente da sua aprovação ou não pelas entidades competentes.
4- Há que esperar pelo resultado da apreciação, para se ajuizar do cumprimento ou não.
5- Havendo revogação dos contratos, os mesmos extinguiram-se nesse momento.
6- O A. não pode formular o pedido com base nos contratos. Poderá reclamar o que achar ter direito, ao abrigo de qualquer outro instituto, mas não do cumprimento do contrato.
7- A Relação deveria ter considerado que na data em que as partes puseram termo aos contratos por acordo, a prestação do recorrido por ser só uma ainda não se achava cumprida.
8- Para o caso de se entender que a resposta ao quesito 76 é possível de ser interpretada como geradora de incumprimento definitivo, temos de ponderar:
9- Os contratos só ficavam cumpridos com a aprovação pelas entidades que deviam dar o seu parecer.
10- Ao projecto apresentado pelo A. relativo ao Balneário foram apontados vários defeitos (quesitos 85, 86, 89, 78, 79, 80).
11- A prestação do A. foi defeituosa, logo há cumprimento defeituoso.
12- Apontados os defeitos pela ré não foram corrigidos.
13- O A. Até aceitou que os defeitos fossem corrigidos por terceiro. Isto gerou incumprimento definitivo por perda do interesse da R. (artº 808º nº 2).
14- Havendo incumprimento definitivo, o recorrido perdeu o direito de receber a restante parte da segunda prestação e a terceira respeitante ao contrato do Novo Balneário, bem como a segunda prestação do Projecto da Zona Envolvente.
15- Para o caso de se entender que, em virtude da prestação incompleta, deve haver redução do preço, ainda assim, por não existirem factos que desde já permitam essa quantificação, deverá remeter-se para execução de sentença esse apuramento, não só referente à restante parte da segunda prestação do Novo Balneário como também à totalidade da segunda prestação do projecto da Zona envolvente.”
c) Por acórdão de 6/5/2003 ( fls.24/43), o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista; d) A reclamante pediu a aclaração desse acórdão, tendo sobre esse pedido recaído o acórdão de 8/7/03 (fls. 44/45); e) E arguiu a sua nulidade, tendo sobre essa arguição recaído o acórdão de
4/11/2003 ( fls. 46/47); f) A reclamante interpôs recurso do acórdão de 6/5/2003 para o Tribunal Constitucional nos termos do requerimento de fls. 13/16; g) Recurso que o seguinte despacho não admitiu :
“Uma vez que não se verifica a ocorrência de qualquer das situações previstas nas als. b) e f) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15/10, nos termos do nº
2 do artº 76º do mesmo diploma, não se admite o recurso interposto através do requerimento de fls. 201 a 204. Sem custas, pela recorrente das mesmas se encontrar isenta.”
3. Constitui requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional que a norma ou normas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelo recorrente 'durante o processo' hajam sido efectivamente 'aplicadas' pela decisão recorrida (ainda que de modo implícito), em termos de constituírem a sua ratio decidendi (cfr., inter alia, os Acórdãos nºs. 90/85, 94/88 e 318/90, publicados no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1985, 22 de Agosto de 1988 e 15 de Março de 1991, respectivamente).
Ora, o acórdão recorrido não fez aplicação da norma cuja inconstitucionalidade a reclamante pretende discutir, isto é, não interpretou o artigo 342ºdo Código Civil no sentido de que, em função de determinada categoria profissional, o devedor não tem o ónus de fazer prova do cumprimento das obrigações contratuais conexas com o exercício profissional correspondente, sendo o credor que está onerado com a prova do incumprimento. O essencial da ratio decidendi do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não é que constitua
ónus do credor provar o não cumprimento mas que é seu ónus, perante factos integradores do cumprimento por parte do devedor, provar que esse cumprimento foi defeituoso.
Com efeito, correspondem a questões jurídicas diferentes – susceptíveis também de diferentes respostas quanto ao ónus da prova – o não cumprimento, a violação contratual negativa (em que o aspecto patológico é a não realização da prestação debitória, sem que se tenha verificado qualquer das causas extintivas típicas da relação obrigacional) e o cumprimento defeituoso, a chamada violação contratual positiva (em que o aspecto patológico está num defeito da prestação realizada)
[Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5ªed., p. 124 e segs. ].
Esta linha decisória está bem patente na seguinte passagem do acórdão recorrido:
“Estamos perante dois contratos de projecto de arquitectura autónomas e com duas fases distintas de execução, estudo prévio e projecto final. Estes contratos de prestação de serviços inominados, regem-se pela vontade das partes na medida em que não violem eventuais normas imperativos, pelas normas do contrato de mandato, com alterações impostas pela natureza do seu objecto, que levam a aplicar algumas normas do contrato e empreitada e atender a normas do direito de autor. No contrato, as partes fixaram de modo muito vago os contornos da obrigação do projectista, limitaram-se a indicar o fim do projecto, os prazos de execução, a termos em que o credor podia por termo ao contrato e as suas consequências bem como as consequências da mora do devedor. No caso de vaguidade na definição da obrigação cabia ao A. (devedor) ir definindo esses contornos a medida que ia avançando na execução, tendo em conta o fim pretendido. Ao apreciar o modo como esse definição foi sendo feita não podemos deixar de atender às intervenções do credor que concorreram para a mesma, sem prejuízo da autonomia do devedor, como é próprio de um contrato de prestação de serviços. Apresentado o projecto final, ou uma das fases distintas, só será justa causa de recusa do resultado apresentado, se o credor alegar e provar razões objectivas que convençam que esse resultado tem vícios que o tornam imprestágel para atingir os fins pretendidos. Atendendo aos termos em que se processou a intervenção do credor na definição do objecto da obrigação, podemos dizer que o devedor apenas se obrigou a pôr à disposição do credor o seu saber e saber fazer. Cabia ao credor, para obter uma censura do resultado apresentado, alegar e provar vícios reveladores de violação pelo devedor das boas regras da arte. Não alegando e provando esse vícios tem de responder nos termos do contrato.”
E é reafirmada no acórdão que recaiu sobre o pedido de aclaração, em que pode ler-se o seguinte:
“Na discussão dissemos: ‘Como vimos, o A. Apresentou o projecto. A obrigação estava cumprida.’ Depois de várias considerações concluímos que ‘Em face desta matéria de facto não podemos dizer que o projecto apresentado pelo A. pusesse em risco os recurso hidrológicos existentes’.
‘Não podendo fazer esse juízo não podemos julgar procedente a excepção de cumprimento imperfeito para isentar a ré de cumprir a sua obrigação’. Em seguida, acerca de outros defeitos apresentados e provados, concluímos: ‘no fim do processo, não temos um termos de comparação para dizer onde é que o A. errou.’
‘O A. cumpriu a obrigação do contrato de elaboração do projecto do Novo Balneário’. Com clareza dizemos que a obrigação do A. chegou ao fim.”
E é, por último, confirmada pelo acórdão que indeferiu a arguição da nulidade, no qual se afirmou
“Todavia, e se bem se atentar nas conclusões da recorrente, verifica-se que nos defeitos que a mesma alega naquela peça processual como existentes no projecto apresentado pelo recorrido, não se englobam quaisquer daqueles que a mesma ora vem arguir como não tendo sido levados em linha de consideração por este Tribunal – vide conclusão 10º) a fls. 735. Assim, e uma vez que o objecto do conhecimento do recurso pelo tribunal ad quem, quanto aos seus respectivos fundamentos, se mostra confinado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes – artº 690º, nº 1 do CPC e Anotado do Prof. Alberto dos Reis, vol. V, pág. 375 e 480 –, é manifesta, para tal efeito, a natureza nova dos factos ora suscitados pela requerente, como integrativos de defeitos existentes no projecto apresentado pelo recorrido.”
Assim, como salienta o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, o Supremo Tribunal de Justiça limitou-se a concluir, face à matéria de facto provada e tendo presente o âmbito do recurso, pela improcedência da “excepção do cumprimento imperfeito”, não fazendo aplicação da norma do nº 1 do artigo 342º do Código Civil com o sentido que a recorrente alega ser inconstitucional.
Tanto basta para que se julgue não verificada a hipótese prevista na al. b) do nº1 do artigo 70º da LTC, como se decidiu no despacho reclamado e não admitir o recurso de constitucionalidade (a alínea f) do nº 1 do artº 70º da LTC, também referida no despacho objecto de reclamação não vem ao caso).
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação, confirmando o despacho que não admitiu o recurso.
Sem custas, por isenção da reclamante.
Lisboa, 19 de Março de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida