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Processo nº 289/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - No Tribunal Judicial da comarca de Ponte de Lima foi AL submetido a julgamento em processo sumário, acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de pesca ilegal, previsto e punido pelos artigos 43º e 65º do Decreto nº 44 623, de 10 de Outubro de 1962, e nº 14, alínea a), do Edital da Direcção-Geral de Florestas, relativo à zona de pesca profissional do Rio Lima, de 17 de Dezembro de 1999.
A sentença proferida, de 23 de Fevereiro de 2000, considerou que aquele bloco normativo, quando conjugado com o nº 14 do citado Edital, criou um novo tipo legal de crime – o de pesca ilegal –, o que é da competência legislativa exclusiva da Assembleia da República, de acordo com o disposto no artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição da República (CR).
Assim sendo, decidiu não aplicar aquelas normas no caso concreto, vindo, subsequentemente a absolver o arguido.
O magistrado do Ministério Público competente interpôs oportunamente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Recebido o recurso e instruídos os autos com cópia do edital e informação de que o mesmo foi publicitado, por afixação, nas Câmaras Municipais de Ponte da Barca, Ponte de Lima e Viana do Castelo, nas respectivas Juntas de Freguesia e nos postos de venda de licenças de pesca da Direcção Regional de Agricultura de Entre Douro e Minho, tão só alegou o Ministério Público que, ao concluir pela procedência do recurso, assim sintetizou o seu juízo:
'A norma resultante dos artigos 43º e 65º do Decreto-Lei [terá querido escrever Decreto] nº 44 623, de 10 de Outubro de 1962, na parte em que tipifica e sanciona como crime de pesca ilegal a actividade piscatória exercida nas zonas aquáticas delimitadas e assinaladas pela Direcção-Geral das Florestas, em regulamento ou acto administrativo destinado a concretizar, em termos de mero juízo técnico, a protecção dos bens e valores ambientais subjacentes à norma incriminadora, não viola os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade.'
Cumpre apreciar e decidir.
II
1. - A Lei nº 2097, de 6 de Junho de 1959, na sua Base XXX, determinou que a Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas estudasse a regulamentação da pesca que, nas águas interiores do País, abrangia diversos interesses, que cumpria acautelar, como fonte de riqueza pública, meio de desporto e motivo de atracção turística. Nomeadamente, e consoante se lê do preâmbulo do diploma que veio concretizar essa regulamentação – o Decreto nº 44
623, de 10 de Outubro de 1962, no uso da faculdade concedida pelo nº 3 do artigo
109º da Constituição (de 1933) – representava-se, então, a 'necessidade de organizar um sistema jurídico-penal que garanta o respeito das regras mais conformes à prática desportiva ou profissional, dos direitos e legítimos interesses dos proprietários ribeirinhos e de outros variados interesses públicos e particulares ligados à utilização das águas em que a pesca é admitida'.
Dispõe o artigo 43º deste regulamento da Lei nº 2097 que
'é proibido pescar, em qualquer época do ano, nas zonas aquáticas designadas e assinaladas pela Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas para abrigos, desovadeiros e viveiros de reprodução, bem como, e independentemente de qualquer delimitação especial, dentro das eclusas, aquedutos ou passagens para peixes, e profissionalmente a menos de 200 metros de barragens e 50 metros de açudes, comportas, descarregadores ou quaisquer obras que alterem o regime normal de circulação das águas'.
Por sua vez, o artigo 31º do mesmo diploma atribui ao Secretário de Estado da Agricultura (hoje, Ministro), mediante portaria e sob proposta daquela direcção-geral, competência para a demarcação das zonas de pesca profissional e a regulamentação do exercício de pesca nessas zonas [cfr. a alínea d) do preceito].
Ora, a Portaria nº 929/99, de 20 de Outubro, que criou uma zona de pesca profissional no troço do rio Lima compreendido entre a barragem de Touvado, na freguesia do mesmo nome, do concelho de Ponte de Lima, a montante, e a ponte de Lanheses, na freguesia de Lanheses, do concelho de Viana do Castelo, a jusante (cfr. o seu nº 1), determinou, no nº 1, reger-se o exercício da pesca na zona assim criada pelo regulamento anexo à Portaria e que dela faz parte integrante.
E consta desse 'Regulamento da Zona de Pesca Profissional do Rio Lima' que 'as zonas de protecção onde será proibida a pesca e que serão sinalizadas com placas previstas na legislação em vigor', serão definidas por edital da Direcção-Geral das Florestas, consultada a Direcção Regional de Agricultura de Entre Douro e Minho [cfr. o nº 3 do Regulamento e sua alínea h)].
O edital da Direcção-Geral das Florestas, a que já se fez referência, de 17 de Dezembro de 1999, estabelece, no seu nº 14, a proibição de pesca no açude de Ponte de Lima, '50 m para montante e 200 m para jusante'.
Finalmente, dispõe, na parte que interessa, o artigo 65º do Decreto nº 44623:
'A pesca com inobservância do disposto no [...] artigo 43º [...], constitui crime punível com a pena de 10 a 30 dias de prisão e multa de 100$ a 2500$.'
2. - É este o complexo normativo que foi posto em crise pelo magistrado recorrido, por nele surpreender vícios de inconstitucionalidade formal e orgânica.
Com efeito, invoca-se, a este propósito, o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 165º da Constituição da República (CR), nos termos da qual é da competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre a definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como sobre processo criminal, salvo autorização ao Governo, e considera-se o nº 1 do artigo 1º do Código Penal que, 'contendo a densificação normativa do princípio da legalidade, prescreve que a definição do que são crimes só pode ser feita por lei (com exclusão de quaisquer outras fontes de direito)'.
Como, observa-se, a infracção de que vem acusado o arguido foi delimitada por um simples edital, verifica-se que a definição da dimensão da área de exclusão de pesca, que se tem por um dos elementos do tipo de ilícito concreto aqui em questão, foi definido por um acto de valor inferior a acto legislativo, sem específico carácter normativo, integrando, assim, vício de inconstitucionalidade formal.
Acresce que, de igual modo, concorre vício de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que à Direcção-Geral está vedado criar ou modificar tipos de crime.
Ou seja, a decisão recorrida, ao proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos imputados ao arguido, teve em consideração o bloco normativo constituído não só pelos citados artigos 43º e
65º do Decreto nº 44 623, como também pelo nº 14 do Edital, entendendo que daí resulta um tipo legal de crime diverso do previsto naqueles dois primeiros preceitos, diferença essa resultante exactamente do nº 14 do Edital e, daí, a recusa da sua aplicação por razões de inconstitucionalidade formal e orgânica.
De outro modo, de resto, não teria cabimento a convocação destes alegados vícios no tocante às normas do diploma de 1962, sabido que a competência e a forma dos actos normativos são aferidos pelas normas constitucionais vigentes ao momento da sua produção.
O juízo formulado estaria correcto no entendimento segundo o qual o nº 14 do Edital teria introduzido um novo elemento típico ao mencionado ilícito penal.
Assim sendo, importa reflectir quanto à aceitação desta tese.
Com efeito, a decisão recorrida subentende um problema equacionável em termos de responsabilidade material conexo com o princípio da legalidade.
Na verdade, nela se afirma não se estar perante a utilização de normas penais em branco, na medida em que a norma do artigo 43º se encontra 'perfeitamente definida', no que toca à parte criminal, uma vez que não há remissão 'para qualquer outro acto normativo ou administrativo que eventualmente a completasse'. O que para a decisão releva é a ocorrência de modificação de um dos elementos objectivos do tipo – equivalendo à criação de um tipo novo – 'por parte de um ente sem legitimidade constitucional para tal' (sem prejuízo de, como observa o Ministério Público nas suas alegações, a proibição do nº 14 do Edital não ser dotada de directa relevância penal).
Mostrar-se-ia, deste modo, violado o princípio da legalidade em matéria de punição criminal consagrado no nº 1 do artigo 29º da Constituição da República – na medida em que proíbe a intervenção normativa de regulamentos não podendo a lei cometer-lhes tal competência (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 193; José de Sousa e Brito, 'A lei penal na Constituição', in Estudos sobre a Constituição, Lisboa, 1978, vol. 2º, págs. 234, 235 e 244).
A questão foi encarada e resolvida recentemente, em recurso em todo semelhante ao presente, pelo acórdão, ainda inédito, nº
545/2000, deste Tribunal Constitucional, onde se pondera:
'[...]o que está em causa é saber se - por força dessa remissão ou reenvio que decorre da letra do próprio artigo 43º do Decreto nº. 44 623 - a relevância axiológica do bem a tutelar e os elementos constitutivos do tipo se alcançam apenas e directamente através daquela norma legal ou se, pelo contrário, o bonus pater familias necessita de a completar com as disposições constantes do edital emitido pela Direcção-Geral das Florestas, ou seja, por outras palavras, saber se a dimensão axiológica do bem, o desvalor da acção, a consciência do ilícito se alcançam através apenas do artigo 43º em conjugação com o artigo 65º do Decreto nº. 44 623, que estabelece a respectiva punição, ou se o tipo só está completo em termos de permitir ao agente avaliar a ilicitude da sua conduta e determinar o seu comportamento de acordo com essa avaliação com recurso à incorporação da norma constante do edital, em especial do seu nº. 14. A resposta a esta questão só pode ser negativa. Na verdade, o nº. 14 do edital não cria/modifica um novo tipo legal de crime, diferente e autónomo do previsto e punido pelos artigos 43º e 65º do Decreto nº.
44 623, de 10 de Outubro de 1962.
É que pela norma incriminatória e independentemente do reenvio normativo – que, se cinge à limitação da área de proibição de pesca num determinado açude – o comportamento sancionado é objectivamente determinável, tornando-se claro o juízo de censura penal para os cidadãos que, deste modo, podem orientar a sua conduta de acordo com esse juízo normativo (cfr. 'Direito Penal – Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime' - apontamentos e materiais de estudo da cadeira de Direito Penal segundo as lições dos Profs. Figueiredo Dias e Costa Andrade, pag. 172). Saliente-se que a norma remissiva não delega na Direcção-Geral de Florestas o poder de definir o conteúdo da incriminação, já que os critérios do ilícito penal (desvalor de acção, desvalor de resultado e identificação do bem jurídico tutelado) e os elementos constitutivos do tipo se encontram expressamente previstos nos artigos 43º e 65º do Decreto nº. 44 623, de 10 de Outubro de 1962
(cfr. em caso semelhante o Acórdão nº 427/95, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol., pags. 697 e segs.). Neste enquadramento, a prescrição do nº 14 do Edital tem, como bem acentua o Exmo Magistrado do Ministério Público 'uma dimensão essencialmente técnica e casuística – traduzindo, deste modo, não a formulação de um juízo valorativo de natureza criminal mas a sua execução e concretização (...)' Pelo que se deixa dito, não parece que se possa qualificar a norma do artigo 43º do Decreto nº 44623, como norma legal em branco, considerando como normas penais em branco aquelas que '(...) que cominam uma pena para comportamentos que não descrevem, mas se alcançam através de uma remissão da norma penal para leis, regulamentos ou inclusivamente actos administrativos autonomamente promulgados em outro tempo e lugar' (cfr. Figueiredo Dias e Costa Andrade, ob. cit., pp. 171 e 172) - a concreta delimitação espacial das zonas de exclusão de pesca – açudes, no caso em apreço – não se configura como elemento constitutivo essencial do tipo de ilícito, impedindo que o agente oriente a sua conduta de acordo com o direito. Estamos, assim, perante uma situação em que o reenvio se circunscreve aos casos relativamente aos quais 'a norma penal indica já por si mesma a esfera e conteúdo de desvalor que a norma pretende impor e se relega para o regulamento tão só a enunciação técnica detalhada (...) enunciação técnica que, ainda, deve ser expressão de um critério técnico já locaIizável na norma penal de fonte legislativa' (citando Bricola, Luis Arroyo Zapatero 'Princípio de legalidad y reserva de ley en materia penal' in 'Revista Española de Derecho Constitucional' Maio/Agosto 1983, t. 8, pags. 34). O princípio da legalidade não resulta assim violado, nomeadamente no plano da determinabilidade, visto que a utilização do reenvio normativo, que assinala in casu que a pesca no açude de Ponte de Lima é proibida, não obsta à determinabilidade objectiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos; enfim, a certeza do direito, a cognoscibilidade acerca de quais as condutas puníveis não é minimamente afectada pela técnica de reenvio utilizada.'
3. - Entende-se ser de perfilhar, no essencial, a tese professada no aludido acórdão nº 545/2000, para cuja fundamentação se remete e aqui se dá por reproduzida.
III
Em face do exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma resultante dos artigos 43º e 65º do Decreto nº 44.623, de 10 de Outubro de 1962, em conjugação com o disposto no nº 14 do Edital da Direcção-Geral das Florestas, de 17 de Dezembro de 1999;
b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a sentença recorrida ser reformada de acordo com o juízo de constitucionalidade agora formulado. Lisboa, 31 de Janeiro de 2001 Alberto Tavares da Costa Messias Bento José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida