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Processo n.º 93/98
2ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Relatório
1. A Soc., Ldª, proprietária do prédio urbano sito em Lisboa, na Rua ... ,n.º...
, propôs em Setembro de 1993 no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa acção declarativa de preferência com processo sumário contra Man. e mulher, M., e contra J., por este ter adquirido, por cessão, a posição de arrendatário dos primeiros réus no escritório sito no 4º andar, lado frente, do mencionado imóvel, e pedindo, com fundamento no artigo 116º, n.º 1, do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aplicável por remissão do artigo 117º (agora 121º) do mesmo diploma, a “substituição da ora A. na posição que o 3º R. assumiu quanto à metade indivisa do direito de arrendamento do escritório em causa”. Em Fevereiro de 1995 a acção foi julgada improcedente e, em consequência, foram os réus absolvidos do pedido. Inconformada, a ora recorrente apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa e, nas alegações que então produziu, sustentou que
“a ter feito a douta sentença correcta interpretação do direito de preferência em causa, seriam, além do mais, inconstitucionais os arts. 116º a 118º (actuais
116º a 121º) do RAU, por violação dos arts. 62º e 13º n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa”. No seu Acórdão de 11 de Março de 1997, o Tribunal da Relação de Lisboa, ponderou que
“o artº 117º [do RAU] além de não excluir o artº 115º, manda aplicar aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais – nos quais admite o trespasse – o artº 116º, entre outros. Só que este artº 116º, ao conceder direito de preferência ao senhorio, refere apenas a hipótese de trespasse, e não a de cessão. Donde, só se pode concluir que só havendo trespasse, mesmo em caso de arrendamento para exercício de profissões liberais, é que o senhorio tem direito de preferência; já não o tem, pois a lei não lhe concede, na hipótese de só haver cessão da posição de arrendatário, como é o caso dos autos.” Acresce que, segundo esse aresto,
“exigindo a lei, para o que ora releva, ao cessionário, a continuidade da mesma actividade – profissão – no arrendado, não podendo a autora, a senhoria, dar continuidade à actividade de exercício de advocacia no locado […] jamais gozaria a “Soc., Ldª” do direito de preferência invocado na cessão da posição do co-arrendatário Man..” Em consequência, o Tribunal da Relação negou provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida e negando que a interpretação perfilhada para o artigo 117º (actual artigo 121º) do RAU fosse inconstitucional.
2. Deste Acórdão interpôs a Soc., Ldª recurso para o Tribunal Constitucional. Como o requerimento de interposição do recurso não satisfazia os requisitos do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, foi a recorrente convidada a indicar os elementos previstos nesse preceito legal. Na resposta a tal convite, sustentou que
“a terem o alcance que lhes foi dado na douta sentença e acórdão recorridos, os artigos 122º e 120º do R.A.U., violam, nomeadamente, os arts. 62º e 13º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa”. Nas alegações que apresentou junto deste Tribunal, a recorrente concluiu do seguinte modo:
“Conclusões
1. A doutrina recusa a figura do trespasse do locado para exercício de profissão liberal.
2. Um escritório de advocacia não se pode configurar como um estabelecimento susceptível de trespasse.
3. O ‘trespasse’ de um escritório de advocacia implicaria a transmissão dos seus elementos tais como equipamentos, biblioteca, ficheiros e a assunção dos próprios contratos dos empregados (‘teoria da empresa’).
4. A Lei 42/90, de 10 de Agosto, não autorizou o Governo a criar a figura do trespasse em transmissão da posição de locatário de profissão liberal.
5. A Lei apenas autorizou o Governo – al j) – a aperfeiçoar as regras aplicáveis aos trespasses de arrendamentos comerciais.
6. O douto acordão recorrido considerou que o RAU introduziu a figura de trespasse em arrendamentos de profissão liberal.
7. Por essa interpretação entendeu que só em caso de trespasse de arrendamento para o exercício de profissão liberal é que o RAU passou a admitir o direito de preferência do senhorio.
8. Frisou-se que, no caso dos autos, não ocorreu um trespasse mas a declarada cessão (parcial) da posição de arrendatário.
9. Recusou-se, assim, e com este primeiro argumento, o peticionado direito de preferência.
10. Trata-se de uma interpretação dos arts. 117º (121º) e 118º
(122º) do RAU que, para além de não enquadrável com a nossa ordem jurídica, dada a referida Lei de autorização, estava, além de mais, ferida de inconstitucionalidade orgânica.
11. O douto acordão recorrido utilizou, como argumento suplente, para negar também o exercício, pela autora, do direito de preferência, o facto de esta ser uma sociedade comercial e a cessão só poder operar-se para ‘o arrendatário’ que, no local, continue a mesma actividade.
12. Tratou-se de uma cessão parcial do direito ao arrendamento em que o recorrido, co-arrendatário de parte indivisa, adquiriu, por 400.000$00, a posição de arrendatário da parte restante do locado.
13. Um senhorio, quando exerce o direito de preferência num trespasse, ou numa cessão, total ou parcial, nunca pode assumir a posição da trespassário ou de cessionário.
14. O exercício, pelo senhorio, do direito de preferência, acarreta, do ponto de vista jurídico e em concreto, a correspondente e inapelável extinção do arrendamento em causa.
15. Com o devido respeito não faz qualquer sentido pressupor-se que o senhorio, ao exercitar o direito de preferência tenha de continuar, no seu prédio, o negócio ou actividade anterior.
16. Extinto o arrendamento pelo exercício do direito de preferência, o senhorio faz do prédio o que bem entender e for legal.
17. O art. 116º do RAU, ao restaurar o direito de preferência do senhorio em caso de trespasse ou de cessão da posição de arrendatário, não exigiu, o que seria uma aberração jurídica, e nulidade directa, que o
(preferente) senhorio tivesse de assegurar a continuação do mesmo ramo de negócio ou actividade.
18. A legitimidade activa, para impedir um falso trespasse ou cessão, cabe apenas ao senhorio através da acção de resolução ou declaração de nulidade de tal negócio.
19. Aos Tribunais não cabe, sequer, uma ‘fiscalização preventiva’ do que se poderá passar no locado após o exercício do direito de preferência do senhorio.
20. Ainda que, por absurdo, oficiosamente, os Tribunais pudessem proceder a esse prévio ‘expurgo’, isso constituía sempre uma violação do princípio de igualdade entre os cidadãos.
21. Tem havido alguma resistência, de parte da jurisprudência, para admitir o exercício do direito de preferência por senhorio que não possa vir a ‘exercer’, no local, o mesmo ramo de comércio, indústria ou de actividade.
22. Com o maior respeito, para além do absurdo jurídico, que já se salientou, (‘senhorio’ ‘trespassário’ ou ‘cessionário’ do seu próprio contrato) isso correspondia a estabelecer distinção entre a classe dos senhorios.
23. Extremamente reduzidas serão, aliás, as situações em que um senhorio tenha a profissão liberal ou que seja comerciante ou industrial como o seu arrendatário.
24. A coincidência é, neste domínio, rara, e até pouco possível.
25. No rigor de tal exigência, só um senhorio comerciante ou industrial podia ser ‘trespassário’ de uma loja ou fábrica.
26. No sério, em sustentação de tal tese, só um senhorio advogado, médico ou arquitecto, podia exercer a preferência na cessão de um escritório ou gabinete se fosse ‘oficial do mesmo ofício’.
27. Está à vista que, mesmo admitindo essa espantosa tese de
‘negócio do senhorio consigo mesmo’, tal interpretação representava, na prática, esvaziar, melhor, ‘liquidar’, o restaurado direito de preferência.
28. Demais, o RAU apenas exige, como requisito para o exercício de direito de preferência, a qualidade de senhorio, o exercício atempado de tal direito e o depósito do valor do trespasse ou cessão. Nada mais!
29. A interpretação do douto acordão, mesmo adentro de tal inadmissível tese, vem introduzir uma clara distinção e discriminação entre a classe dos senhorios.
30. Um senhorio que seja arquitecto não podia preferir na cessão de um escritório de advocacia instalado num seu prédio por não ter o grau académico de advogado ou vice-versa.
31. Um senhorio, firma comercial, porque, social e economicamente, tem tal estatuto, não podia preferir na cessão de um escritório de advogados, porque não tem o grau académico de advocacia e não é sociedade de advogados.
32. A discriminação, adentro da classe dos senhorios, mercê de tais atributos ou qualidades, constitui violação do n.º 2 do art. 13º da Constituição da República Portuguesa.
33. A interpretação ‘travão’ do douto acórdão viola, além do mais, o próprio art. 62º n.º 1 da CRP.
34. No rigor dos princípios jurídicos, o exercício do direito de preferência pelo senhorio acarreta a extinção total ou parcial desse arrendamento.
35. A interpretação do acordão, ainda que douto, mesmo que fosse cogitável a figura de senhorio-trespassário ou senhorio-cessionário, impedia a recuperação pelo senhorio da propriedade arrendada.
36. O direito de propriedade só pode ser limitado ou impedido no seu exercício pelas formas que a lei fixa taxativamente.
37. O douto acordão negando, no caso, o direito e preferência, toma a iniciativa de ‘não licenciar’ a futura fruição do senhorio sobre a sua propriedade.
38. O exercício da preferência pelo senhorio não prejudica o cedente ou o recorrido e a decisão em causa representa uma defesa oficiosa do negócio havido.
39. No caso de proceder a preferência, o aqui recorrido continua a fruir metade indivisa do locado, continuando a laborar aí e é-lhe devolvida a quantia (simbólica) que declarou ter pago: 400 contos.
40. A intenção do legislador, ao reintroduzir o direito de preferência, foi exactamente, como é expresso no preâmbulo do DL 321-B/90, de 15 de Outubro, a de evitar as fraudes em tais transmissões e permitir que o senhorio melhor exerça os seus direitos de propriedade.
41. Foi, aliás, no mesmo sentido, recuperação pelo senhorio dos locados, o DL 257/95, de 30 de Setembro, que veio permitir também contratos a prazo nos próprios arrendamentos para o exercício de comércio, indústria ou profissão liberal.
42. Ou seja: vem-se acentuando a preocupação de evitar renovações infindáveis de contratos, e transmissões incontroláveis pelos senhorios, permitindo que estes recuperem, cada vez mais, o prédio ou partes do prédio que locaram.
43. O douto acordão além das referidas violações de direitos fundamentais, vem ,ao arrepio da letra, e espírito da Lei, e intenções do legislador, constituir uma barragem a tal inovação e certo refundamento em matéria de arrendamento.
44. Não cabe, em alegações para este Tribunal Constitucional, aprofundar os princípios e normas da locação.
45. Isso não impede que estas sejam chamadas à colação, ainda que sob a perspectiva e plataforma das possíveis interpretações inconstitucionais.
46. O douto acordão violou os referidos arts. 13º n.º 2 e 62º n.º 1 da CRP e al. j) da Lei 42/90, de 10 de Agosto.
47. Não pode, por isso, subsistir a linha e orientação inconstitucional do douto acordão.
48. Deve ser, pois, proferido, por Vossa Excelências, acordão que considere inconstitucional a figura do trespasse em arrendamento para profissão liberal.
49. Deve ainda ser considerada inconstitucional a discriminação entre senhorios tomando como base a respectiva instrução, situação económica ou social.
50. Deve ser ainda considerada inconstitucional a interpretação restritiva, nem juridicamente defensável, de que, pelo exercício da preferência, o senhorio, extinguindo-se o arrendamento em causa, não fique com o direito a recuperar, total ou parcialmente, o prédio que locara.” Por sua vez, J. concluiu assim as suas alegações:
“IV- Conclusões:
1ª- Não procedem as conclusões da douta alegação da Recorrente.
2ª- Deve, por isso, ser negado provimento ao recurso.”
3. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos A) Objecto do recurso:
4. A decisão recorrida fundou-se numa interpretação do artigo 117º do Regime do Arrendamento Urbano (abreviadamente RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
321-B/90, de 15 de Outubro (norma, essa, que passou a ser o artigo 121º, após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro), segundo a qual “só havendo trespasse, mesmo em caso de arrendamento para exercício de profissões liberais, é que o senhorio tem direito de preferência”, e já não no caso de só haver cessão da posição de arrendatário, exigindo-se, aliás, mesmo a aceitar-se que bastava a cessão da posição de arrendatário, que o senhorio continuasse a exercer a mesma profissão no arrendado. Assim, não se tendo provado a existência desse “trespasse”, nem podendo a autora, ora recorrente, dar continuidade a essa actividade, o tribunal a quo negou o direito de preferência invocado. Está, portanto, em questão o artigo 117º (actual artigo 121º) do RAU, na parte em que manda aplicar aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais a norma (artigo 116º do RAU) que prevê um direito de preferência do senhorio, interpretado no sentido de não bastar, como pressuposto para o reconhecimento desse direito de preferência, a existência de uma mera cessão da posição de arrendatário (no caso, de co-arrendatário). Segundo o artigo 117º do Regime do Arrendamento Urbano:
“É aplicável aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais o disposto nos artigos 112º a 116º [actualmente 110º a 120º] do presente diploma”. Por sua vez, no artigo 116º, n.º 1, do mesmo diploma lê-se:
“No trespasse por venda ou dação em cumprimento do estabelecimento comercial, o senhorio do prédio arrendado tem direito de preferência.” O objecto do presente recurso, é, pois, o artigo 117º do RAU (actual artigo
121º), na interpretação, acolhida na decisão recorrida, que requer, como condições para atribuição de um direito de preferência ao senhorio no arrendamento para exercício de profissão liberal, a existência de “trespasse” do estabelecimento (considera-se, assim, como lapso material a invocação, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, do artigo 120º do RAU, artigo que trata do “Regime das obras” no locado, e que foi introduzido no RAU apenas em 1995 – portanto, depois de a acção ter sido proposta e de os factos discutidos terem ocorrido; tal norma não tem qualquer atinência com a questão discutida nas instâncias, e, por outro lado, tanto nas alegações para a Relação como nas alegações para o Tribunal Constitucional, a ora recorrente suscitou e sustentou a inconstitucionalidade dos artigos 116º a 118º, na interpretação referida, acolhida na decisão recorrida). Segundo a referida interpretação, o direito de preferência do senhorio previsto no artigo 116º não é reconhecido no arrendamento para exercício de profissão liberal em caso de cessão da posição de arrendatário desacompanhada do dito
“trespasse” (rectius, de transmissão do equipamento, pessoal, clientela, projectos, etc. do escritório, gabinete ou atelier instalado no imóvel). Ao efectuar a interpretação do artigo 117º (actual 121º) do RAU, em termos de exigir o referido pressuposto para o reconhecimento do direito de preferência do senhorio no arrendamento para exercício de profissão liberal, o tribunal recorrido deu, aliás, por assente a resposta negativa à questão de saber se, desde logo, a previsão desse direito de preferência nos arrendamentos em questão
é inconstitucional. Na verdade, a interpretação da remissão do artigo 117º para o artigo 116º, por forma a restringir nos termos referidos o reconhecimento do direito de preferência ao senhorio, pressupõe obviamente, desde logo, que a aplicação desse direito de preferência do senhorio aos arrendamentos para profissão liberal não
é inconstitucional. A decisão recorrida, ao interpretar e aplicar a norma remissiva do artigo 117º em termos de restringir as condições para reconhecimento do direito de preferência ao locador nos arrendamento para exercício de profissão liberal - por isso não reconhecendo à ora recorrente o direito de preferência que ela pretendeu exercer - deu, assim, por assente que esta norma, na parte em que manda aplicar o mencionado direito de preferência aos arrendamentos para exercício de profissão liberal, não era censurável sub species constitutionis. Ora, é certo que, se não for assim – se o artigo 117º, na parte em que manda aplicar o direito de preferência previsto no artigo 116º aos arrendamentos para exercício de profissão liberal (independentemente da interpretação mais ou menos restritiva dos pressupostos desse direito de preferência), for inconstitucional
–, se torna desnecessário apurar a constitucionalidade daquela posição, perfilhada no acórdão recorrido, que limita o direito de preferência do senhorio ao caso de “trespasse” e de continuação, por este, do exercício da mesma profissão no local arrendado. Seria, então, logo, a própria interpretação da norma remissiva do artigo 117º para o artigo 116º – aplicada no caso concreto –, no sentido de existir um direito de preferência do senhorio nos arrendamentos para o exercício de profissão liberal, que se afigura inconstitucional. E, sendo o reconhecimento de um direito de preferência ao senhorio em caso de “trespasse” ou de cessão da posição de arrendatário, no arrendamento para o exercício de profissão liberal, inconstitucional, ficaria prejudicada a questão de saber se uma eventual interpretação restritiva dos pressupostos para esse reconhecimento
é ou não constitucionalmente conforme. Todavia, a questão de saber se a norma do artigo 117º do RAU, em si mesma, enquanto manda aplicar ao arrendamento para exercício de profissão liberal o direito de preferência do senhorio previsto no artigo 116º do mesmo diploma, é desconforme com a Constituição da República não constitui objecto do presente recurso. Antes está apenas em causa a interpretação de tal norma que requer, como condições para atribuição de um direito de preferência ao senhorio no arrendamento para exercício de profissão liberal, a existência de “trespasse” do estabelecimento, não se bastando com a mera cessão da posição de arrendatário. Vejamos, pois. B) Inconstitucionalidade orgânica
7. No Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de
15 de Outubro, manteve-se a estrutura da regulamentação do arrendamento para exercício de profissões liberais que constava do Código Civil de 1966 (artigos
1119º e 1120º), com duas normas:
- uma primeira (o artigo 1119º do Código Civil, artigo 117º da versão do RAU de 1990, e actual artigo 121º) manda aplicar a esses arrendamentos determinadas normas relativas ao arrendamento para comércio e indústria (os artigos 1113º a 1117º, no Código Civil, os artigos 112º a 116º, na versão originária do RAU);
- a segunda norma (artigo 1120º do Código Civil, artigo 118º da versão do RAU de 1990, e actual artigo 122º) prevê a possibilidade de cessão da posição de arrendatário forçada, para o senhorio, quando o cessionário continue a exercer no local arrendado a mesma profissão. A única alteração relevante introduzida em 1990 nas regras que disciplinam o arrendamento urbano para exercício de profissão liberal traduziu-se, assim, no alargamento da remissão que se continha na primeira das normas referidas – o artigo 1119º, correspondente artigo 117º do RAU na versão de 1991, actual artigo
121º –, e, portanto, na determinação das normas do regime dos arrendamentos comerciais que são aplicáveis a esse tipo de arrendamento. Efectivamente, o artigo 1119º do Código Civil preceituava que:
“É aplicável aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais o disposto nos artigos 1113º a 1117º”. Como se vê, não se incluía nesta remissão o artigo 1118º do Código Civil, no qual (no seguimento do artigo 64º, n.º 2, da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de
1948) se previa a possibilidade de cessão da posição de arrendatário sem autorização do senhorio em caso de trespasse do estabelecimento comercial. Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, 4ª ed., Coimbra, 1997, págs. 724-5),
“Mandando aplicar, no artigo 1119º, ao arrendamento para o exercício de profissão liberal, apenas as disposições dos artigos 1113º a 1117º do Código Civil – e omitindo, ostensivamente, nesta remissão, o disposto no artigo 1118º – este Código quis manifestamente afastar a possibilidade legal do trespasse de escritórios, consultórios ou gabinetes destinados ao exercício de profissão liberal.” Isto, sendo certo, todavia, que a possibilidade de cessão da posição de arrendatário sem autorização do senhorio se encontrava já prevista adrede para os arrendamentos para exercício de profissões liberais, no artigo 1120º, n.º 1, do Código Civil, desde que o cessionário continuasse a exercer no prédio a mesma profissão, pelo que – considerando a limitação da noção de trespasse ao exercício do mesmo comércio ou indústria, a inferir da alínea a) do n.º 2 desse artigo 1118º (cf., sobre este n.º 2, Orlando de Carvalho, “Estabelecimento, trespasse e mudança de destino”, na Revista de Legislação e de Jurisprudência,
110º ano, n.º 3592, págs. 102 e segs.), que correspondia à exigência de continuação do exercício da mesma actividade profissional no imóvel – uma remissão para o artigo 1118º, se fizesse sentido, seria, em todo o caso, desnecessária. Com o RAU, diversamente, o já citado artigo 117º (actual artigo 121º) veio declarar aplicáveis aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais os artigos 112º a 116º [actualmente 110º a 120º] do mesmo diploma, incluindo, portanto, as normas que prevêem a dispensa de autorização do senhorio para a cessão da posição de arrendatário em caso de trespasse e que, neste caso, consagram o direito de preferência desse senhorio (artigos 115º e 116º). Assim (e deixando de parte as alterações na remissão resultantes do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro, que não relevam para o caso), o legislador do RAU efectuou, não apenas uma “actualização da remissão” (cfr. Menezes Cordeiro e Castro Fraga, Novo regime do arrendamento urbano anotado, Coimbra, 1990, pág.
153), mas um verdadeiro alargamento desta, no que toca ao regime da cessão da posição de arrendatário em caso de trespasse (previsto no artigo 115º do RAU em conformidade com o anterior artigo 1118º do Código Civil) e à (inovadora) norma que reintroduziu na nossa ordem jurídica o direito de preferência do senhorio em caso de trespasse do estabelecimento comercial (artigo 116º do RAU). Pode concluir-se que a norma remissiva relativa aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais foi alterada pelo legislador de 1991, alargando-se o leque de normas aplicáveis ao arrendamento para exercício de profissão liberal por forma a incluir agora nessas regras: a) o artigo 115º do RAU (correspondente ao anterior artigo 1118º do Código Civil), que prevê a possibilidade de cessão da posição de arrendatário sem dependência de autorização do senhorio, em caso de trespasse; e b) o (novo) direito de preferência do senhorio em caso de trespasse
(artigo 116º do RAU).
8. Há, todavia, que ter em conta que continua prevista nos arrendamentos para exercício de profissão liberal a dispensa do consentimento do senhorio para a transmissão da posição de arrendatário, desde que o cessionário continue a exercer no locado a mesma actividade, nos termos do artigo 118º do RAU
(actualmente artigo 122º, correspondente ao anterior artigo 1120º do Código Civil). Segundo este artigo 118º:
“1. A posição do arrendatário é transmissível por acto entre vivos, sem autorização do senhorio, a pessoas que no prédio arrendado continuem a exercer a mesma profissão.
2. A cessão deve ser celebrada por escritura pública.” E, por isso mesmo, salienta hoje a doutrina (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, 4ª ed., cit., pág. 722) que
“Com a sua nova redacção, que engloba (tal como, aliás, já sucedia com o primitivo texto do art. 117º do RAU) a remissão para o artigo 115º, no qual se regula o fenómeno do trespasse do estabelecimento comercial ou industrial e com a introdução no RAU da disposição do artigo 122º (que reproduza a doutrina do art. 1120º do Cód. Civil), nós temos hoje reconhecida na legislação vigente, na
área do arrendamento para o exercício das profissões liberais, a validade da transmissão do arrendamento sem necessidade de autorização do senhorio, quer a transmissão se faça com o equipamento - máquinas de fotocópias, computadores, aparelhos de medicina e de cirurgia, equipamento de radiografia, câmaras de ecografia, bibliotecas, telefones, etc. -, o pessoal, projectos e anteprojectos de arquitectura ou de engenharia encomendados, do escritório, gabinete ou atelier instalado no imóvel arrendado, quer a transmissão abranja apenas o imóvel (vazio ou em cru) para o adquirente (do direito ao arrendamento) nele continuar a exercer a mesma profissão (liberal).” E assim, também a jurisprudência já tem reconhecido que a cessão da posição de arrendatário para o exercício de profissão liberal não tem de ser acompanhada dos instrumentos e utensílios necessários ao exercício da profissão (assim o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Fevereiro de 1998, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, VI, 1, pág. 68), mantendo a possibilidade de cessão forçada para o senhorio, prevista no artigo
118º, interesse, por exemplo, para os casos de cessão parcial do direito ao arrendamento (assim, Antunes Varela, em anotação aos acórdãos da Relação de Lisboa de 18 de Novembro de 1993 e do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Junho de 1996, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 130º, pág. 351). Resulta já do que se disse que, em termos substanciais, a remissão que constava da norma do artigo 1119º do Código Civil para o regime do arrendamento comercial foi alargada no artigo 117º do RAU (actual artigo 121º) apenas no tocante ao
“trespasse”, e em particular ao direito de preferência do senhorio,
“ressuscitado” pelo legislador em 1990 no artigo 116º, tendo-se, porém, neste ponto – justamente em discussão no presente recurso – o artigo 117º do RAU revelado inovatório. Esta última solução adoptada pelo legislador do RAU inspirou-se, na verdade, no direito de opção que a Lei n.º 1662, de 4 de Setembro de 1924, concedia ao senhorio, nos casos de trespasses de estabelecimentos comerciais ou industriais. Preceituava essa norma:
“Os trespasses de estabelecimentos comerciais ou industriais só terão validade quando reduzidos a escritura pública, devendo nela especificar-se o preço do trespasse.
§ único: O senhorio terá sempre o direito de opção, nos termos da legislação geral.” E a reintrodução deste direito de preferência na nossa ordem jurídica terá, aparentemente, visado dois objectivos:
“dar uma oportunidade ao senhorio de recuperar um bem que a ordem jurídica, supostamente, lhe atribuiu em primeira linha; e permitir à sociedade civil, ela própria, pôr um travão nas simulações ocorridas no trespasse, que assumem foros de escândalo.” (assim, Menezes Cordeiro e Castro Fraga, ob. cit., pág. 152) Saliente-se, aliás, que esta inovação do diploma de 1990 não ficou isenta de críticas, salientando-se que, não só não se pode considerar este direito do senhorio, referente à transmissão do estabelecimento comercial, como simétrico do recíproco direito de preferência do arrendatário em caso de alienação do prédio arrendado, como, designadamente (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, cit., pág. 715)
“destoa, na verdade, de um sistema jurídico que, em diversos momentos, procura defender o valor económico e social do estabelecimento comercial, como unidade autónoma, no património do seu titular, a introdução desarmónica de uma peça como esta do artigo 116º, que tanto pode desvalorizar essa unidade num momento crucial da sua vida, como é o do trespasse.” Seja como for, não cabe a este Tribunal, obviamente, ajuizar do mérito substancial da reintrodução do direito de preferência do senhorio em caso de trespasse, pelo artigo 116º do RAU. Todavia, sendo o direito de preferência do senhorio reconhecido igualmente, por força da remissão contida no citado artigo 117º (actual artigo 121º do RAU), no arrendamento para exercício de profissões liberais, e sendo este ponto justamente o que se discute nos presentes autos, o que já se torna necessário averiguar é, considerando a inclusão, pelo artigo 168º, n.º 1, alínea h) da Constituição da República (na redacção de 1990), do regime geral do arrendamento urbano na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, se o Governo se encontrava habilitado para realizar uma alteração no regime do arrendamento urbano para exercício de profissões liberais consistente na introdução de um inovador direito de preferência do senhorio, resultante dos artigos 116º e 117º do RAU, para cujo surgimento não basta a cessão da posição de arrendatário.
9. O Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro foi aprovado no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, requerida pelo artigo 168º, n.º 1, alínea h), da Constituição. O Governo ficou autorizado por essa Lei n.º 42/90 a alterar o regime do arrendamento urbano. Nos termos do artigo 2º deste diploma, as alterações deveriam respeitar, entre outras, as seguintes directrizes, que interessam para o caso dos autos:
“a) Codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano, por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da sua multiplicidade;
(…) c) Preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição de arrendatário;
(…) j) Aperfeiçoamento das regras aplicáveis aos trespasses de estabelecimentos comerciais, de modo a contemplar os diversos interesses em presença;
(…)” Ora, segundo a recorrente esta Lei 42/90, de 10 de Agosto, “não autorizou o Governo a criar a figura do trespasse em transmissão da posição de locatário de profissão liberal”, pelo que a posição seguida na decisão recorrida, segundo a qual “só em caso de trespasse de arrendamento para o exercício de profissão liberal é que o RAU passou a admitir o direito de preferência do senhorio”, constitui “uma interpretação dos arts. 117º (121º) e 118º (122º) do RAU que, para além de não enquadrável com a nossa ordem jurídica, dada a referida Lei de autorização, estava, além de mais, ferida de inconstitucionalidade orgânica”. Será assim?
10. Para analisar esta questão, cumpre notar, antes de mais, que, como bem salienta o acórdão recorrido, tem sido controvertido na jurisprudência o exacto entendimento do sentido da remissão do artigo 121º (anterior artigo 117º) do RAU para o artigo 116º, designadamente, quanto aos pressupostos para reconhecimento do direito de preferência. Assim, para certa corrente, o direito de preferência do senhorio é reconhecido também no caso da (simples) cessão de posição de arrendatário prevista no artigo
118º (actual artigo 122º) do RAU, sendo igualmente discutido se é indispensável que o senhorio continue a exercer a mesma actividade profissional no imóvel
(assim, o Acórdão da Relação de Lisboa de 18 de Novembro de 1993, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, cit., págs. 211 e segs.) ou se esse requisito não é necessário para o reconhecimento do direito de preferência (veja-se, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Junho de 1996, na Revista, cit., págs. 215 e segs.; na doutrina, Manuel Januário Gomes, Arrendamentos comerciais, 2ª ed., Coimbra, 1991, pág. 196, Jorge Pinto Furtado, Manual do arrendamento urbano, Coimbra, 1996, págs. 540 e segs.). Para outra posição, diferentemente, apenas existindo “trespasse” - cuja noção teria sido estendida pelo RAU para além dos estabelecimentos comerciais, aos casos de transmissão, por acto inter vivos, de escritório, consultório, laboratório e atelier, acompanhada de outros valores, corpóreos e incorpóreos, que eventualmente os individualizem - seria reconhecido tal direito de preferência ao senhorio (assim, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de
29 de Junho de 1995, in Colectânea de Jurisprudência, XX, 3, pág. 142, e, na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, cit., págs. 724 e seg., Antunes Varela, na anotação cit., págs. 218 e segs., e Jorge Aragão Seia, Arrendamento urbano anotado e comentado, 4ª edição, Coimbra, 1998, pág.
562). Foi, justamente, esta última a posição adoptada na decisão recorrida, para a qual “só havendo trespasse, mesmo em caso de arrendamento para exercício de profissões liberais, é que o senhorio tem direito de preferência”, já não na hipótese de só haver cessão da posição de arrendatário. E, segundo esse aresto, ainda que se aceitasse que bastava esta cessão para ao senhorio ser reconhecido um direito de preferência, sempre seria de exigir que o senhorio continuasse no prédio a exercer a mesma profissão. Ora, na parte em que remete para o artigo 116º do RAU, a norma remissiva do artigo 117º é sem dúvida, como se viu, inovatória em relação ao anterior regime do arrendamento para exercício de profissão liberal. Improcede, assim, a tentativa de enquadrar a norma em questão na alínea a) artigo 2º da Lei n.º 42/90, onde se prevê apenas “a codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano, por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da sua multiplicidade”, mas não a consagração de quaisquer soluções inovatórias, ainda que correspondam a outras, que já vigoraram na nossa ordem jurídica.
11. Confrontando a norma do artigo 117º do RAU (actual artigo 121º), com o sentido acolhido na decisão recorrida, com as “directrizes” formuladas no artigo
2º da referida lei de autorização legislativa para aprovação do RAU, logo ocorre uma aproximação com a alínea j), segundo a qual:
“j) Aperfeiçoamento das regras aplicáveis aos trespasses de estabelecimentos comerciais, de modo a contemplar os diversos interesses em presença;” Deve entender-se que, por esta alínea o Governo ficou autorizado, designadamente, a, depois de ponderar os diversos interesses em presença, introduzir, por exemplo, o direito de preferência do senhorio, previsto no artigo 116º, n.º 1 do RAU para o caso de trespasse do estabelecimento comercial. O legislador terá optado por introduzir esse direito de preferência, como forma de permitir ao senhorio a recuperação do imóvel no caso de trespasse, precisamente depois de ponderar o interesse do proprietário – ao qual a ordem jurídica atribui em princípio a disponibilidade do bem - com o do arrendatário - que, naturalmente aponta no sentido de poder dispor livremente do direito ao arrendamento, designadamente no caso de trespasse do estabelecimento comercial – e com o interesse geral – que se, por um lado, aponta no sentido da preservação e tutela da unidade económica e social do estabelecimento, por outro lado, visa a promoção e o incentivo de um mercado imobiliário dinâmico. Ora, no presente processo não interessa apurar se, a seguir-se a posição que interpreta a remissão para o artigo 116º no sentido de que o direito de preferência previsto neste último é atribuído ao senhorio logo em caso de simples cessão do direito ao arrendamento desacompanhado de quaisquer outros elementos, tal inovação seria ainda recondutível ao regime dos “trespasses de estabelecimento comercial”, podendo encontrar suficiente habilitação legislativa na alínea j) do artigo 2º da Lei n.º 42/90. Na verdade, está apenas em causa a interpretação da norma, perfilhada na decisão recorrida, segundo a qual o direito de preferência previsto por remissão do artigo 117º para o artigo 116º apenas tem aplicação ao arrendamento para exercício de profissão liberal em caso de “trespasse” de escritório, gabinete, consultório ou atelier. Cabe, assim, perguntar se é ainda viável o enquadramento da inovadora consagração desse direito de preferência, entendida nestes termos, num aperfeiçoamento de “regras aplicáveis aos trespasses de estabelecimentos comerciais”.
12. É certo que a noção de “trespasse” tem conhecido no direito português latitudes diversas, com importância para diversos pontos de regime (ver Orlando de Carvalho, Critério e estrutura do estabelecimento comercial, I, Coimbra,
1969, págs. 589 e segs.). Todavia, embora controvertida na doutrina e na jurisprudência, tal noção não era utilizada no domínio do arrendamento fora do domínio da transmissão de estabelecimentos comerciais. Poderá, todavia, sustentar-se que a noção de “trespasse” foi alargada pelo RAU, justamente pela remissão do artigo 117º para os artigos 115º e 116º. Assim, defende-se hoje na doutrina que
“onde o Código Civil (art. 1119º) não admitia ostensivamente a figura do trespasse (que era na área relativamente vasta dos arrendamentos para o exercício de profissões liberais), o RAU, com a remissão expressa do artigo 117º para os artigos 115º e 116º, veio expressamente admitir, duma assentada, quer o trespasse dos escritórios para o exercício de profissões liberais, sem necessidade de autorização do senhorio (remissão do art. 117º para o art. 115º), quer o direito de preferência do senhorio nesse caso de trespasse do escritório para o exercício de profissão liberal (remissão do art. 117º para o art. 116º)”
(Antunes Varela, anotação cit., pág. 349). A noção de “trespasse”, envolvendo a ideia de transmissão de um estabelecimento, teria assim aplicação, hoje, na área das profissões liberais, pelo menos em certos casos, excepcionais, nos quais se pode reconhecer a existência de uma verdadeira empresa ou “estabelecimento de profissional liberal”.
É certo que, na grande maioria dos casos, no domínio das profissões liberais, não existe verdadeira autonomia dos valores objectivos, que caracterizam o estabelecimento comercial (designadamente dos valores de organização e de exploração, como o aviamento, resultantes da agregação de elementos corpóreos e incorpóreos e da actividade da empresa – para o problema da determinação do estabelecimento comercial como objecto de negócios, vide, por todos, Orlando de Carvalho, Critério e estrutura do estabelecimento comercial, cit., passim), em relação à pessoa do profissional (advogado, médico, engenheiro, arquitecto, etc.) e sua actividade. Assim, os valores que caracterizam a empresa ou estabelecimento comercial permanecem normalmente ligados ao sujeito que exerce uma profissão liberal, e acompanham-no quando, por exemplo, muda de escritório, consultório ou atelier. E, por isso, salienta-se normalmente que não se trata, em regra, de verdadeiras empresas ou estabelecimentos, que possam ser equiparados a empresas ou estabelecimentos comerciais (cf. A. Ferrer Correia, Lições de direito comercial, Coimbra, 1973, págs. 5 e 147-8). Deve, todavia, reconhecer-se que, excepcionalmente, mesmo na área das profissões liberais, os elementos objectivos que rodeiam o exercício da actividade profissional podem avultar e ganhar significativa importância autónoma, em relação a essa actividade pessoal - assim, por exemplo, em casos de clínicas médicas equipadas com sofisticada aparelhagem de diagnóstico. Nesses casos, certamente excepcionais (mas que o progresso técnico e económico poderá tornar mais frequentes), pode discernir-se uma combinação de elementos objectivos - não só corpóreos mas também concomitantes valores de organização e de exploração a eles associados -, cujo significado económico (e jurídico) se autonomiza da actividade do profissional liberal, permitindo falar de uma empresa ou estabelecimento. E nestes casos excepcionais não deixa tal
“estabelecimento de profissional liberal” de poder ser equiparado a uma empresa ou estabelecimento comercial (salientando a possibilidade de existência destes casos excepcionais, aos quais justamente se confinaria o direito de preferência do senhorio previsto por remissão do artigo 117º para o artigo 116º do RAU, Antunes Varela, anotação, cit., na Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3884, pág. 352), quer no sentido usual ou corrente do termo, quer, mesmo, eventualmente, no sentido técnico-jurídico, segundo o qual são comerciais muitas empresas de prestação de serviços. Pode, pois, concluir-se que, se, no domínio do exercício de profissões liberais, nada haverá na generalidade destes casos, que permita falar em estabelecimento comercial ou industrial, deve admitir-se também que, em hipóteses excepcionais, o exercício dessa actividade se dê num enquadramento objectivo tal que se deva reconhecer a existência de uma verdadeira empresa ou estabelecimento, equiparável ao estabelecimento comercial. Ora, nessas hipóteses, se estamos perante exercício de profissões liberais em estabelecimentos que podem ser equiparados a estabelecimentos comerciais, também não repugnará falar de um trespasse desse estabelecimento. Assim, na interpretação segundo a qual o legislador, com a introdução da remissão do artigo 117º (actual artigo 121º) para o artigo 116º do RAU, pretendeu admitir o trespasse de um estabelecimento de profissional liberal para estas hipóteses equiparáveis a um estabelecimento comercial (posição defendida, por exemplo, por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. II, cit., pág. 724, Antunes Varela, na anotação, loc. e pág. cits. e António Pais de Sousa, Anotações ao regime do arrendamento urbano, 5ª ed., Lisboa, 1997, pág. 338), pode dizer-se que essa inovação constitui ainda uma reformulação ou
“aperfeiçoamento” de “regras aplicáveis aos trespasses de estabelecimentos comerciais”, respeitando a citada alínea j) do artigo 2º da Lei n.º 42/90. Ao aprovar o RAU, o Governo estava, pois, habilitado pela Assembleia da República a introduzir o direito de preferência do senhorio no regime do arrendamento para o exercício de profissões liberais, desde que a hipótese em que esse direito de preferência é reconhecido seja limitada a casos em que estão em causa transmissões equiparáveis ao trespasse de estabelecimento comercial – justamente o que, na interpretação explanada, se fez com a introdução da remissão no artigo 117º, actual 121º, do RAU, para a norma que concede direito de preferência ao senhorio em caso de trespasse de estabelecimento comercial. E pode, assim, concluir-se pela inexistência de inconstitucionalidade orgânica na norma do artigo 117º do RAU, na parte em que remete para o artigo 116º do mesmo diploma. C) Inconstitucionalidades materiais
13. Há agora que apurar se a interpretação da remissão contida no artigo 121º do RAU, seguida na decisão recorrida, no sentido de condicionar o direito de preferência do senhorio ao caso de “trespasse” (ou de continuação de exercício no prédio da mesma profissão), é ou não materialmente inconstitucional, como sustenta a recorrente. Segundo esta,
“não ocorrendo, como se vê, situações de senhorio-trespassário ou cessionário, limitar o exercício do direito de preferência a certos senhorios, de modo a que os outros não pudessem recuperar o arrendado, constituía uma privação, em vida, do direito à propriedade e ao seu uso e disfrute.” Não assiste, porém, razão à recorrente, não se reconhecendo qualquer inconstitucionalidade material no artigo 117º da versão originária do RAU, interpretado no sentido de esse direito de preferência consagrado no artigo 116º do mesmo diploma não ser reconhecido em caso de simples cessão da posição de arrendatário, mas apenas em caso de “trespasse” – interpretação dessa norma, aliás, que, como dissemos, permite enquadrá-la ainda nos termos da lei de autorização legislativa. Desde logo, não se verifica qualquer violação do direito de propriedade tutelado no artigo 62º, n.º 1, da Constituição, que resulte da restrição do direito de preferência por forma a excluí-lo em caso de simples cessão da posição de arrendatário para o exercício de profissão liberal. Aliás, mesmo para os arrendamentos comerciais esse direito de preferência do senhorio constituiu, como se disse, uma inovação do RAU. Durante largos anos, tal direito de preferência, mesmo em caso de trespasse, não existiu na nossa ordem jurídica, não podendo dizer-se fosse por esse facto violado o direito de propriedade do senhorio.
É certo que a consagração do direito de preferência do senhorio terá visado possibilitar a este, como proprietário do imóvel, uma recuperação do seu gozo. Mas esta possibilidade, vinculada ao exercício do direito de preferência, não pode dizer-se integrante do núcleo constitucionalmente protegido do direito de propriedade, sendo descabida qualquer comparação entre a privação dessa preferência e uma expropriação (comparação na lógica da qual, aliás, qualquer impossibilidade de cessação do contrato de arrendamento se afiguraria violadora do direito de propriedade). Acresce que a limitação da possibilidade de denúncia do arrendamento, e a tutela do arrendatário em caso de cessão da sua posição contratual (cessão forçada para o senhorio, e não subrogação no contrato - vide Carlos Alberto da Mota Pinto, Cessão da posição contratual, Coimbra, 1970, pág. 80 e seg.) para continuação do exercício da profissão ou da exploração do estabelecimento, constituem restrições aos poderes do senhorio que se justificam pela tutela de interesses que se lhe contrapõem – seja o interesse individual do arrendatário, seja o interesse geral na protecção das empresas e dos profissionais liberais. Não pode, pois, ver-se no regime dos artigos 121º e 116º do RAU, interpretados no sentido de excluir o direito de preferência em caso de simples cessão da posição de arrendatário profissional liberal, qualquer violação do direito de propriedade constitucionalmente protegido.
14. Sustenta ainda a recorrente que o acórdão recorrido violou o princípio da igualdade. No seu modo de ver, essa decisão seguiu uma interpretação do artigo
117º (actual artigo 121º) do RAU que “vem introduzir uma clara distinção e discriminação entre a classe dos senhorios. Um senhorio que seja arquitecto não podia preferir na cessão de um escritório de advocacia instalado num seu prédio por não ter o grau académico de advogado ou vice--versa. Um senhorio, firma comercial, porque, social e economicamente, tem tal estatuto, não podia preferir na cessão de um escritório de advogados, porque não tem o grau académico de advocacia e não é sociedade de advogados.”. Assim, afirma,
“a discriminação, adentro da classe dos senhorios, mercê de tais atributos ou qualidades, constitui violação do n.º 2 do art. 13º da Constituição da República Portuguesa.” Diga-se, antes de mais, que pode duvidar-se que a recorrente se reporte aqui a uma interpretação da norma remissiva do artigo 117º do RAU que tenha sido aplicada na decisão recorrida. Esta bastou-se, como ratio decidendi, com a inexistência de trespasse para negar o direito de preferência à ora recorrente, apenas invocando como argumento adjuvante a interpretação que condiciona o direito de preferência à possibilidade de continuação do exercício da actividade no locado (que não se verifica numa sociedade comercial como é a recorrente), quer exista trespasse, quer se admitisse que o senhorio tem o direito de preferência previsto no artigo 116º, n.º 1, do RAU logo no caso de cessão da posição de arrendatário. De todo o modo – adiante-se – não se vê que mesmo esta última interpretação pudesse implicar uma violação do princípio da igualdade, no entendimento sedimentado pela jurisprudência deste Tribunal (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92 e 210/93, publicados, no Diário da República, respectivamente, I Série, de 3 de Março de 1988, II Série, de 1 de Março de 1993 e II Série, de 28 de Maio de 1993). Independentemente da questão de saber qual é a melhor interpretação do direito infra--constitucional resultante dos artigos 117º (actualmente 121º) e 116º do RAU – se a que exige que o senhorio continue a exercer no locado a actividade nele prosseguida ou a que admite o direito de preferência mesmo que não seja assim – o que é certo é que qualquer destas duas posições contempla situações fácticas distintas, fazendo da diferença entre elas o critério para a delimitação da hipótese da norma que atribui o direito de preferência. Não se pode dizer qualquer dessas interpretações – que concedem diferente relevância material à continuação do exercício da actividade no locado como razão justificativa para a atribuição do direito de preferência – violasse o princípio da igualdade. Desde logo, nenhuma de tais interpretações implicaria uma distinção arbitrária ou injustificada. E, como se sabe, o princípio da igualdade não proíbe ao legislador que faça distinções – proíbe apenas que o legislador efectue diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. Ora, justamente, para qualquer uma daquelas interpretações, do ponto de vista relevante para a atribuição de um direito de preferência ao senhorio, não se pode dizer que a situação do senhorio que continua a exercer no locado a actividade até então nele prosseguida (ou que continua a explorar o estabelecimento nele sediado) seja materialmente igual à do senhorio que pretende deixar de exercer essa actividade (ou acabar com esse estabelecimento). Não pode, pois, reconhecer-se na interpretação dos artigos 117º e 116º do RAU, efectuada pelo tribunal recorrido, qualquer violação do princípio da igualdade. E, deste modo, há que concluir pela improcedência do presente recurso de constitucionalidade. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 117º (actual artigo 121º) do Regime do Arrendamento Urbano, interpretada no sentido de, por remissão para o artigo 116º do mesmo diploma, consagrar nos arrendamentos para o exercício de profissões liberais um direito de preferência do senhorio apenas em caso de trespasse do estabelecimento; b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade. Lisboa, 30 de Junho de 199[PMP1] 9 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida
[PMP1] Conclusão: improcedência do recurso
13. Síntese – desnecessidade de tratar do problema da inconstitucionalidade material Chegados a este ponto (e considerando que não se divisa qualquer outra
“directriz” habilitante do legislador do RAU, em termos de lhe permitir a introdução do direito de preferência do senhorio em caso de “trespasse de estabelecimento de profissional liberal”), há que concluir que a norma do artigo
117º do RAU (actual artigo 121º) é organicamente inconstitucional na parte em que remete para o artigo 116º do mesmo diploma, relativo a esse direito de preferência. Designadamente, o estabelecimento deste direito de preferência, não sendo autorizado pela alínea a) do artigo 2º da citada Lei n.º 42/90, não pode considerar-se como “aperfeiçoamento das regras aplicáveis ao trespasse de estabelecimento comercial”, (alínea j)), nem se credencia suficientemente como
“preservação”, maior ou menor, de uma anterior regra socialmente útil que tutele a posição do arrendatário. Prejudicada fica, deste modo, a questão de saber se a interpretação da remissão contida no artigo 121º do RAU no sentido de condicionar o direito de preferência do senhorio ao caso de “trespasse” (ou de continuação de exercício no prédio da mesma profissão), feita na decisão recorrida, é ou não constitucional: a própria consagração desse direito de preferência nos arrendamentos para exercício de profissão liberal, com os referidos pressupostos ou em condições mais alargadas, afigurou-se carecida de suficiente habilitação legislativa parlamentar, e, portanto, organicamente inconstitucional. Não há, pois, que interpretar e aplicar a norma (actual artigo 121º do RAu, na parte em que remete para o artigo
116º), organicamente inconstitucional, que consagra tal direito, o qual não pode ser reconhecido nem nessas condições nem em termos mais amplos. E também não há que abordar as inconstitucionalidades materiais suscitadas pela recorrente. Sendo a norma que alegadamente atribuiria o direito de preferência à recorrente organicamente inconstitucional, pode confirmar-se, embora por fundamentos diversos, a decisão do Tribunal da Relação que negou esse direito à autora, negando-se provimento ao presente recurso.
conclui-se pela impossibilidade de enquadrar da inovação consistente na introdução de um direito de preferância do senhorio no arrendamento para exercício de profissão liberal, em caso de cessão da posição de arrendatário ou de transmissão do imóvel acompanhada de outros valores como equipamento, listas de clientes, pessoal, contratos, etc., no “aperfeiçoamento das regras aplicáveis aos trespasses de estabelecimentos comerciais”. Em suma: mesmo se se admitisse que o legislador de 1990 consagrou a figura do
“trespasse de estabelecimento de profissional liberal”, e que em alguns casos – certamente minoritários - a organização de elementos produtivos, corpóreos e incorpóreos, pode assumir autonomia em relação à actividade do profissional liberal, ainda assim se não será viável a recondução da introdução de um novo direito de preferência do senhorio a uma alteração de “regras aplicáveis aos trespasses de estabelecimentos comerciais”.
12. A alínea c) do artigo 2º Poderia, em particular, pensar-se na alínea c) desse artigo, segundo a qual o legislador do RAU ficou habilitado à “preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário”. O sentido desta directriz foi precisado pelo Tribunal Constitucional logo no Acórdão n.º 311/93 (publicado no Diário da República, n.º 170, de 22 de Julho de
1993) que julgou não inconstitucional a referida lei de autorização legislativa.
É este sentido o:
“de que o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material.”
É certo que, como se escreveu recentemente no Acórdão n.º / , ainda não publicado:
“Não se pode, pois, divisar nessa alínea c) uma prescrição de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime anterior do arrendamento urbano que fossem favoráveis ao arrendatário. Tal entendimento, restritivo e diverso do adoptado anteriormente pelo Tribunal não consideraria, desde logo, a limitação da alínea c) apenas às regras “socialmente úteis”, nem a natureza da fórmula empregue pelo legislador parlamentar, de molde a permitir ao Governo um juízo sobre a utilidade social das regras, ficando obrigado a preservar aquelas em relação às quais esse juízo fosse positivo. Aquela posição restritiva poderia, aliás, fazer o legislador da Lei n.º 42/90 incorrer numa contradição, entre as alíneas b) e c) do artigo 2º desse diploma, uma vez que qualquer facilitação do funcionamento da cessação do contrato - ainda que através da mera simplificação das suas regras processuais – deveria ser considerada violadora da referido imperativo legal de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime do arrendamento favoráveis ao inquilino. Tem, pois, de entender-se que o legislador ficou habilitado pela alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90 a formular um juízo sobre a «utilidade social» das regras do regime do arrendamento urbano, podendo eliminar ou reformular aquelas que se revelavam
«socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material» (formulação adoptada no citado Acórdão n.º
311/93).” O que, todavia, já não cabe no sentido desta alínea c) é a autorização para o legislador, mais do que modificar ou eliminar regras jurídicas anteriores, introduzir novas regras que, como é o caso do direito de preferência do senhorio, em causa no presente processo, deixam menos protegida a posição do arrendatário. E isto, possam ou não essas regras ser consideradas “socialmente
úteis” pelo legislador.
É que, tratando-se de uma nova regras - como a que prevê o direito de preferência do senhorio no arrendamento urbano em caso de trespasse -, não está em causa apenas a autorização para modificação ou eliminação de regras existentes no corpus iuris vigente – e concomitante preservação apenas de algumas, julgadas “socialmente úteis” -, mas antes para uma autêntica inovação normativa, com introdução de novas regras no regime geral do arrendamento urbano, para a qual o Governo carecia de autorização legislativa e não se podia considerar já habilitado, no que toca aos arrendamentos para exercício de profissão liberal, pela alínea j) do artigo 2º da Lei n.º 42/90. Não pode, portanto, dizer-se que o legislador do RAU estivesse habilitado pela alínea c) do mesmo artigo a introduzir este novo direito de preferência no que toca aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais, que resulta da remissão do artigo 117º (actual artigo 121º) do RAU para o artigo 116º do mesmo diploma. Isto significa que o legislador do RAU não estava autorizado a introduzir um novo direito de preferência do senhorio em caso de cessão da posição de arrendatário ou de “trespasse” nos arrendamentos para o exercício de profissão liberal.
(não deixando, todavia, de se referir que tais o problema da violação do direito de propriedade pela interpretação restritiva referida Inconstitucionalidade material Aliás, não viola o direito de propriedade a restrição do direito de preferência – como não era este violado quando não existia qualquer direito de preferência. Não se pode dizer, como o recorrente, nas alegações, que “não ocorrendo, como se vê, situações de senhorio-trespassário ou cessionário, limitar o exercício do direito de preferência a certos senhorios, de modo a que os outros não pudessem recuperar o arrendado, constituía uma privação, em vida, do direito à propriedade e ao seu uso e disfrute.” Na verdade, não era pelo facto de não se prever anteriormente ao RAU o direito de preferência do senhorio - apesar de já ser permitida a cessão forçada para o senhorio da posição do arrendatário profissional liberal – que se violava o direito de propriedade. Não se pode considerar que a possibilidade de exercer o direito de preferência na cessão da posição de arrendatário ou no trespasse do locado seja parte do núcleo essencial deste direito, ou que a privação dessa preferência equivalha a uma expropriação. Isto, traduzindo-se, por outro lado, a limitação da possibilidade de denúncia do arrendamento e a protecção do inquilino em caso de cessão do arrendamento para continuação do exercício da profissão (ou no quadro do trespasse) em limitações justificadas por interesses contrapostos aos do senhorio – a protecção do comércio, para o trespasse do estabelecimento comercial, e das actividades dos profissionais liberais, para a cessão da posição de arrendatário para profissional que continue a exercer a mesma actividade no local arrendado. O fundamento da chamada “cessão legal ou forçada” (vide Carlos Mota Pinto, Cessão da posição contratual, Orlando de Carvalho, “Alguns aspectos da negociação do estalelecimento”, “Trespasse e mudança de destino”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, etc.) Também não é violado o princípio da igualdade Diga-se que a questão de saber qual é a melhor interpretação do artigo 121º é de direito infra-constitucional, e não compete ao Tribunal Cosntitucional sindicá-la, a não ser na medida em que a conformidade com a Constituição imponha uma dada interpretação. Qualquer que seja a melhor interpretação do RAU - que não cabe a ete Tribunal apreciar -, ou seja,
- a que exige que o senhorio continue a exercer no locado a actividade nele prosseguida (como, no caso do trespasse, que ele continue a explorar no locado o estabelecimento do inquilino), ou
- a que admite o direito de preferência mesmo que o senhorio não possa ou não pretenda continuar a exercer a mesma actividade (ou a explorar o mesmo estabelecimento) no locado, o que é certo é que qualquer delas contempla situações distintas – não se pode dizer que a primeira interpretação, em causa no presente processo, viole o princípio da igualdade. A distinção não é arbitrária ou injustificada, justamente porque, do ponto de vista relevante para a desnecessidade de consentimento do senhorio (e para o
âmbito da restrição ao trespasse ou à cessão sem autorização, resultante da atribuição de um direito de preferência ao senhorio) não se pode dizer que a situação do senhorio que continua a exercer no locado a actividade nele prosseguida (ou que, no caso do trespasse, continua a explorar no locado o estabelecimento do inquilino) seja igual à do senhorio que pretende deixar de exercer essa actividade- Seja qual for a melhor interpretação, a seguida pelo tribunal recorrido não viola o princípio da igualdade. Conclusão: improcedência do recurso