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Processo n.º 485/00
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. J... declarou, no início da audiência de julgamento, perante o Tribunal Colectivo da Comarca de Tavira, não prescindir da documentação em acta dos depoimentos prestados na audiência, tendo o Mm.º Juiz Presidente proferido o seguinte despacho:
'Entende o Tribunal que em julgamento perante o Tribunal Colectivo ou perante o Tribunal de Júri, não existe com os actuais meios disponíveis possibilidade de reprodução integral dos depoimentos. Trata-se hoje como ontem de norma programática. De resto só a reprodução integral terá sentido como abertura da possibilidade de recurso da matéria de facto perante tais Tribunais. Pretendendo o contrário equivaleria ao lançamento da total anarquia na justiça penal porque, é sabido ser imenso o tempo necessário à transcrição de tais gravações, a serem obviamente efectuadas por funcionário judicial, pois não estão em causa direitos livremente disponíveis, caso em que é compreensível que seja dada às partes a possibilidade de efectuar tais transcrições. Mas também aí, em coerência com o sistema judiciário português, se dispensou a audiência perante o Tribunal Colectivo, estamos obviamente a falar do Código de Processo Civil. O Direito Penal constitui o tronco fundamental das mais elementares regras de convivência social e não pode ser hipotecado às possibilidades ou disponibilidades dos funcionários (como é sabido são poucas), mas muito menos às possibilidades ou disponibilidades dos intervenientes processuais, sejam eles quem sejam. Termos em que não se procederá à pretendida documentação, sendo certo que também o Tribunal não vê necessidade de se socorrer de tal meio para a apreciação da prova, a qual não apresenta especial complexidade.' O arguido, que não impugnou autonomamente este despacho, foi condenado, por Acórdão de 15 de Novembro de 1999 daquele Tribunal Colectivo, 'pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes qualificado, p. e p. pelo n.º 1 do art.
21º e alínea c) do art. 24º do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22.1, na pena de 9 anos de prisão'. Inconformado, o arguido interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando, no que ora interessa, após referência ao artigo 363º do Código de Processo Penal, que
'o indeferimento da peticionada documentação da prova viola o princípio da igualdade e do direito de defesa do arguido, decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático (art. 2º da CRP) e das garantias do processo criminal
(art. 32º da CRP).' Defendeu igualmente que a exposição dos fundamentos de facto nos quais o tribunal recorrido baseara a sua convicção é manifestamente insuficiente, violando o artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e que
'A interpretação feita pelo Tribunal a quo sobre a extensão do respectivo dever de motivação inconstitucionaliza todo o sistema chamado da revista alargada, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 32º da CRP.' Por Acórdão de 7 de Junho de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, fundamentando a decisão da seguinte forma, no que toca às duas questões referidas:
'Quanto à invocada violação do princípio da igualdade e do direito de defesa do arguido, por indeferimento da documentação da prova produzida em julgamento: O recorrente apoia a sua tese no disposto no artigo 363º do Código de Processo Penal. Mas cotejando o conteúdo do preceito contido no artigo 363º, com o estatuído no artigo 364º do mesmo código, constata-se, sem sombra de dúvida, que a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência, somente deverá ter lugar em audiência que decorrer perante o tribunal singular ou na ausência do arguido, e 'quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daqueles, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser'. Por seu turno, o n.º 4 do art. 364º do Cód. Proc. Penal estabelece que 'se não estiverem à disposição do tribunal meios idóneos à reprodução das declarações, o juiz dita para a acta o que resultar das declarações prestadas'. Ora, dos preceitos legais acabados de referir não resulta, de nenhum modo, que o Tribunal Colectivo seja obrigado, por lei, a proceder à documentação das declarações orais prestadas na audiência que decorram perante ele, nada autorizando a concluir por essa obrigatoriedade, já que tal hipótese teria que estar expressamente prevista, para poder englobar-se 'nos casos em que a lei expressamente impuser' – art. 363º, in fine, do Cód. Proc. Penal. Aliás, tudo o que vem de ser exposto resulta, da própria natureza, do modo de funcionamento, das atribuições e competência do Tribunal Colectivo em processo penal. Acresce que, se nos julgamentos do Tribunal Colectivo – grande parte dos quais atingem muita complexidade, com a intervenção possível de muitas dezenas ou centenas de testemunhas –, se a documentação das declarações orais fosse obrigatória, essa obrigatoriedade bloquearia e lançaria o caos na justiça penal, pelas possibilidades de chicana e de reclamações infundadas que ficariam abertas quando o presidente do Tribunal ditasse, por súmula, para acta as declarações prestadas, em face do disposto nos arts. 364º, n.º 3 e 4, e 100º, n.ºs 2 e 3, do Cód. Proc. Penal. Por isso, não cremos que qualquer legislador minimamente responsável enveredasse por tal solução legislativa absolutamente impraticável. Por outro lado, contrariamente ao que sucede em processo penal, a questão que agora ocupa, em processo civil encontra-se expressamente regulada, no tocante à intervenção do Tribunal Colectivo e gravação da prova, no art. 508º--A, n.º 2, al. c), do Cód. Proc. Civil, podendo as partes 'requerer a gravação da audiência final ou a intervenção do colectivo', pelo que a gravação da audiência exclui, necessariamente, a intervenção do colectivo. Isto mesmo resulta também inequivocamente do preâmbulo do Dec.-Lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro, nos seguintes termos:
'estabelece-se agora, como regra, no processo declarativo comum ordinário, a intervenção do juiz singular na fase de julgamento, condicionando a requerimento das partes a intervenção do tribunal colectivo e mantendo o princípio de que esta fica precludida se alguma das partes tiver requerido a gravação da prova.' Nenhuma disposição legal análoga vigora em processo penal não existindo, assim, a obrigatoriedade de gravação da audiência final com a intervenção do colectivo. Ainda que, por mera hipótese, se admitisse que o despacho de indeferimento da documentação da prova pudesse configurar uma irregularidade, ela teria de considerar-se sanada, por não haver sido arguida pelo interessado no próprio acto, sendo ainda certo que dela não poderia, agora, conhecer-se oficiosamente por não afectar o valor do acto do julgamento – art. 123º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Penal. Logo, não se vislumbra que houvesse sido ofendido o princípio da igualdade e do direito de defesa do arguido, e bem assim as garantias do processo criminal, nem se mostra violado o disposto nos arts. 2º e 32º da Constituição da República, pelo que, manifestamente improcede este fundamento do recurso.
[...] A arguida nulidade do acórdão recorrido por insuficiência da exposição dos fundamentos de facto nos quais o Tribunal baseou a sua convicção, e inexistência do exame crítico das provas. Sustenta o recorrente que a douta decisão recorrida é nula, por insuficiência na exposição dos fundamentos de facto nos quais o Tribunal baseou a sua convicção e, ainda, por não haver procedido ao exame crítico das provas no art. 374º, n.º
2, do Cód. Proc. Penal, mas sem o menos vislumbre de razão. Com efeito o n.º 2 do citado art. 374º preceitua: 'Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que serviram para formar a convicção do tribunal.' Ora, examinando-se, detidamente, o douto acórdão recorrido, com saliência para o que consta de fls. 469 a 471, constata-se, indiscutivelmente, que na decisão da causa concorrem todos os requisitos mencionados no citado n.º 2 do art. 374º, pelo que, a todas as luzes, não se verifica a arguida nulidade.'
2. Desta decisão foi interposto pelo arguido, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28 /82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), o presente recurso de inconstitucionalidade, para
'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do preceito do artigo 363º do Código de Processo Penal, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida.' Nas alegações que produziu no Tribunal Constitucional, o recorrente defendeu a inconstitucionalidade das normas dos artigos 363º do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida na decisão recorrida, por violação dos artigos 2º e
32º da Constituição da República, e 374º, n.º 2, do mesmo Código, por violação do artigo 205º, n.º 1, da Lei Fundamental. O Ministério Público, por sua vez, após delimitar o objecto do recurso, à luz do respectivo requerimento, à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo
363º do Código de Processo Penal, concluiu assim as suas contra-alegações:
'1 – Os recursos de fiscalização concreta têm carácter instrumental, só devendo conhecer-se da questão de constitucionalidade suscitada quando a decisão a proferir pelo Tribunal Constitucional puder repercutir-se, de forma útil e efectiva, no sentido e no conteúdo da decisão impugnada.
2 – Considerando explicitamente o acórdão recorrido que a irregularidade – hipoteticamente cometida pelo despacho interlocutório e autónomo que rejeitou o pretendido registo ou documentação da audiência – estava precludida, em consequência de não ter sido tempestiva e adequadamente arguida pelo interessado, carece de utilidade a apreciação da questão de constitucionalidade da norma constante do artigo 363º do Código de Processo Penal.
3 – Termos em que não deverá conhecer-se do presente recurso.' Notificado para, querendo, se pronunciar sobre a questão prévia assim suscitada, veio o recorrente pugnar pelo conhecimento do recurso, dizendo, quanto à irregularidade processual em causa:
'porque se trata de uma irregularidade renovada em cada acto de julgamento, que constitui um vício repristinado a cada um deles, não pode considerar-se sanada, sob pena de assim se configurar um verdadeiro atentado aos direitos, liberdades e garantias.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. No requerimento de interposição do presente recurso não se faz qualquer referência à norma do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ou, sequer, ao problema da exposição dos fundamentos de facto que serviram para formar a convicção do tribunal. Não se curará, pois, da conformidade constitucional desta última norma, restingindo-se o objecto do recurso, em face do teor do respectivo requerimento, à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 363º do Código de Processo Penal.
4. Mesmo delimitando assim o objecto do recurso, a análise do teor da decisão recorrida e do requerimento de recurso conduz, todavia, à conclusão de que dele se não pode tomar conhecimento. Na verdade, constituem requisitos específicos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, além da suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente. Este último requisito é uma consequência da natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, o qual visa obter a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de constitucionalidade normativa suscitada incidentalmente num processo concreto, e da qual dependa a decisão deste processo. Se a referência à norma em questão aparece como mero obiter dictum, ou se se encontrar na decisão recorrida um outro fundamento, por si só suficiente para chegar à mesma decisão, a intervenção do Tribunal Constitucional viria a revelar-se inútil, no caso concreto, por não ser susceptível de vir a alterar o decidido. Encontrando-se na decisão recorrida outro fundamento, para além da aplicação da norma impugnada, só por si suficiente para chegar à tal decisão, não existe, pois, interesse processual que justifique o conhecimento da questão pelo Tribunal Constitucional – seja qual for o sentido da decisão que recaia sobre a questão, manter-se-á inalterado o decidido pelo tribunal recorrido
(cfr., por exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 454/91, 337/94, 608/95,
577/95, 1015/96, 196/97 e 508/98, publicados os três primeiros no Diário da República, II série, respectivamente de 24 de Abril de 1992, 4 de Novembro de
1994, e 19 de Março de 1996).
5. Ora, no caso presente, é isso mesmo que se verifica, como salienta o Ministério Público nas suas contra-alegações. No Acórdã o do Supremo Tribunal de Justiça recorrido, depois da análise dos termos em que deve ter lugar a documentação da prova – referindo-se à interpretação do artigo 363º do Código de Processo Penal e ao despacho de indeferimento da documentação da prova –, pode, na verdade, ler-se que:
'Ainda que, por mera hipótese, se admitisse que o despacho de indeferimento da documentação da prova pudesse configurar uma irregularidade, ela teria de considerar-se sanada, por não haver sido arguida pelo interessado no próprio acto, sendo ainda certo que dela não poderia, agora, conhecer-se oficiosamente por não afectar o valor do acto do julgamento – art. 123º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Penal.' Aliás, o recorrente, dizendo embora, que, no seu entendimento, a irregularidade processual em causa não pode considerar-se sanada, não impugnou a constitucionalidade do entendimento contrário das normas que regulam as irregularidades – isto é, a constitucionalidade da interpretação do artigo 123º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça. E só por via da apreciação da constitucionalidade de tais normas, se atempadamente suscitada, poderia o Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a sanação e a possibilidade de conhecer da irregularidade eventualmente existente, e poderia, dessa forma, a sua decisão vir a projectar-se sobre o outro fundamento expressamente invocado na decisão recorrida para negar provimento ao recurso do arguido. Mesmo sem curar de apurar se se verificam no presente caso os restantes requisitos do presente recurso de constitucionalidade – designadamente, a suscitação, durante o processo, de uma questão de constitucionalidade normativa, isto é, referida a uma norma ou a uma sua dimensão interpretativa devidamente enunciada –, conclui-se, pois, que existe no Acórdão recorrido outro fundamento bastante para a decisão proferida – a sanação da irregularidade eventualmente existente, por não haver sido arguida pelo interessado no próprio acto, e a impossibilidade de dela se conhecer oficiosamente, por não afectar o valor do acto do julgamento, nos termos do artigo 123º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal –, para além da interpretação do artigo 363º, do Código de Processo Penal, questionada pelo recorrente. Tanto basta para, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, impor o não conhecimento do presente recurso cuja apreciação não poderia reflectir-se utilmente na decisão recorrida. III. Decisão Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso e condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 8 unidades de conta. Lisboa, 6 de Setembro de 2000 Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa