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Procº nº 975/98 Plenário (1ª Secção) Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
(Consº Vítor Nunes de Almeida)
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO:
1. O Juiz-Desembargador J.... requereu no Supremo Tribunal Administrativo (STA), a suspensão de eficácia do despacho de 25 de Junho de 1998 do Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que indeferira a declaração de impedimento de vários membros daquele Conselho, no
âmbito de um processo disciplinar instaurado ao requerente.
Logo nesse requerimento, foi suscitada a questão de inconstitucionalidade dos artigos 3º, nº 4, alínea f), e nº 19 (deve-se ter pretendido escrever nº 10), 1º (deve-se ter pretendido escrever 11º), 26º, nºs 1 e 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de
16 de Janeiro, dos artigos 82º, 90º, nº 1, e 95º, nº 1, alínea a), da Lei nº
21/85, de 30 de Julho, do artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, na redacção do Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro, bem como do artigo 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio; terá ainda sido suscitada - embora de forma não clara - a inconstitucionalidade do artigo 76º, nº 1, do Decreto-Lei nº 267/85.
Após a resposta da entidade requerida, o STA proferiu, pela 1ª Secção, o acórdão de 29 de Julho de 1998, em que se decidiu indeferir o pedido de suspensão de eficácia e condenar o requerente em custas.
Entretanto, o requerente foi notificado de outro despacho do Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), de 13 de Julho de 1998, pelo qual se determinou 'o reconhecimento de grave urgência para o interesse público na manutenção do indeferimento do pedido de declaração de impedimento em causa'. Face a esta notificação, o requerente veio pedir a declaração de nulidade ou a anulação desse despacho de 13 de Julho de
1998, bem como a declaração de ineficácia de todos os actos de execução praticados pelo CSTAF posteriores à dedução do pedido de suspensão de eficácia
(fls.121/131, dos autos). Nesse requerimento, suscitou a inconstitucionalidade dos artigos 3º, nº 4, alínea f), e nº 19 (deve-se ter pretendido escrever nº
10), 1º (deve-se ter pretendido escrever 11º), 26º, nºs 1 e 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, dos artigos 82º, 90º, nº 1, e 95º, nº 1, alínea a), da Lei nº 21/85, e, bem assim, dos artigos 76º, nº
1, e 80º, nº 2, do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho.
Todavia, o STA, por acórdão de 23 de Setembro de 1998, decidiu «não tomar conhecimento do pedido», na parte em que se requeria a declaração de nulidade ou a anulação do despacho de 13 de Julho de 1998, e «indeferir o restante», voltando a condenar o requerente nas correspondentes custas.
2. Inconformado com ambos os acórdãos tirados no STA, o requerente deles interpôs oportunamente recurso para este Tribunal.
No requerimento de interposição de recurso do acórdão de 29 de Julho de 1998, o recorrente referiu que pretendia que o Tribunal apreciasse a constitucionalidade das seguintes normas: o dos artigos 3º, nº 4, alínea f), e nº 19 (deve-se ter pretendido escrever nº 10), 1º (deve-se ter pretendido escrever 11º), 26º, nº 1, e nº 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, e dos artigos 82º, 90º, nº 1, e 95º, nº 1, alínea a), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, todas por violação do artigo 37º, nº 2, da Constituição; o do artigo 76º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, por violação dos artigos 18º, nº 2, 20º, nº 5, e 268º, nº 4, da Constituição; o do artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, por violação dos artigos 202º, nº 2, 203º e 219º, nºs 1 e 2, da Constituição; o do artigo 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio, por violação dos artigos 18º, nº 3, e
20º, nº 1, da Constituição.
Por seu turno, no requerimento de interposição de recurso do acórdão de 23 de Setembro de 1998, o recorrente declarou pretender que se apreciasse a conformidade constitucional das seguintes normas: o dos artigos 3º, nº 4, alínea f), e nº 19 (deve-se ter pretendido escrever nº 10), 1º (deve-se ter pretendido escrever 11º), e 26º, nº 1, e nº 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, e dos artigos 82º, 90º, nº 1, e 95º, nº 1, alínea a), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, por violarem o estabelecido no artigo 37º, nº 2, da Constituição; o do artigo 80º, nº 1, do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, por violar, não só o disposto nos artigos 2º e 9º, alínea b), da Constituição, «como também a efectividade de protecção jurisdicional garantida» pelos artigos 20º, nº 5, e 268º, nº 4, da Constituição, «com relevância para a 'adopção de medidas cautelares adequadas'»; o do artigo 80º, nº 2, do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, por violar o disposto nos artigos 20º, nº 5, e 268º, nº 4, da Constituição; o do artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, por violar o disposto nos artigos 202º, nº 2, 203º, e 219º, nºs 1 e 2, da Constituição; o do artigo 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio, por violar o disposto nos artigos 18º, nº 3, e 20º, nº 1, da Constituição.
3. – Em 3 de Dezembro de 1998, o primitivo relator lavrou um despacho, ao abrigo do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil (CPC), pelo qual se propunha conhecer apenas do recurso respeitante às normas seguintes: o do artigo 76º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho; o do artigo 80º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho; o do artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho; o do artigo 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio.
Afirmou-se no referido despacho:
Importa averiguar antes de mais se o Tribunal pode conhecer de todas as normas indicadas nos requerimentos de interposição dos recursos.
Assim, constata-se que o recorrente, relativamente a ambos os recursos, refere como normas cuja constitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie, os artigos 3º, nº 4, alínea f), e nº 19, 1º, 26º, nº 1, e nº 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, e os artigos 82º, 90º, nº 1 e 95º, nº 1, alínea a), da Lei nº 21/85, de
30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais).
O artigo 3º define, no nº 1, a noção de infracção disciplinar; no nº
4, refere os deveres gerais dos funcionários cuja violação constitui infracção disciplinar e na alínea f) refere-se o dever de correcção. O artigo 26º, nº 1 e nº 2 alínea a) do mesmo Estatuto refere-se às penas de aposentação compulsiva e demissão.
As normas do Estatuto dos Magistrados Judiciais referem-se também ao procedimento disciplinar quanto a esses magistrados.
Ora, é manifesto que a decisão recorrida não aplicou – nem podia aplicar – tais normas. Com efeito, o acórdão em questão limitou-se a decidir duas questões incidentais suscitadas pelo recorrente: o impedimento do presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e a questão da intervenção do Ministério nas sessões do STA, para além de decidir a questão da suspensão de eficácia que constituía o objecto do pedido.
O acórdão de 23 de Setembro limitou-se a decidir a questão suscitada pelo despacho de 13 de Julho de 1998 do presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, não tomando conhecimento do pedido quanto à declaração de nulidade ou anulação de tal despacho e na parte restante indeferiu o pedido.
O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e este tipo de recurso tem de respeitar requisitos de admissibilidade: a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada durante o processo – o que se verifica no caso em apreço; mas, a decisão recorrida tem de aplicar as normas cuja constitucionalidade se suscita: tais normas têm de constituir o fundamento normativo da decisão recorrida, o que não acontece no presente caso, pois tal decisão não utilizou as normas respeitantes ao Estatuto Disciplinar dos Funcionários.
Assim, o Tribunal não conhecerá do presente recurso na parte relativa aos artigos 3º, nº 4, alínea f), e nº 19, nº 1, 26º, nº 1, e nº 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro; artigos 82º, 90º, nº 1 e 95º, nº 1, alínea a) do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
Este despacho do relator mereceu resposta de ambas as partes: o autor, limitando-se a renovar a argumentação já expendida nos autos, referindo agora que as normas dos artigos 3º, nº 4, alínea f), e nº 19, 26º, nº 1, e nº 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, e nos artigos 82º, 90º, nº 1 e 95º, nº 1, alínea a), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, foram implicitamente aplicadas nas decisões recorridas; pelo seu lado, a autoridade recorrida, na respectiva resposta, refere que as decisões recorridas também não tinham aplicado o artigo 80º, nºs 1 e 2, da LPTA, aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, pelo que, para além das normas referenciadas no despacho do relator, também estas deviam ser excluídas do
âmbito do recurso.
Notificado desta resposta, o recorrente veio defender o entendimento de que o recurso relativamente àquela norma devia prosseguir os seus termos normais.
4. – Quanto às normas que no parecer do relator se entendia que preenchiam os requisitos de admissibilidade do recurso foram apresentadas alegações, tendo o recorrente concluído as suas pela forma seguinte:
'[...]. II. A sua inconstitucionalidade decorre da seguinte argumentação: IIII. O recorrente pretende da jurisdição protecção para o seu direito de, como juiz de tribunal superior, ser arguido em processo disciplinar determinado e decidido por órgão constituído por vogais que se encontrem numa posição em que a sua imparcialidade não seja questionável - direito fundamental garantido pelos art.ºs 32º, n.º. 1, e 266.º, n.º 2, da Constituição. IV. É um direito necessitado de protecção jurisdicional porque a posição de imparcialidade do agente decisor se insere num procedimento disciplinar injusto, na medida em que traduz a perseguição administrativa de infracção exclusivamente sujeita a perseguição judicial. V. É um direito necessitado de protecção jurisdicional também porque o recorrente é arguido, não enquanto cidadão, mas enquanto juiz alegadamente infractor 'por factos ocorridos durante o exercício de funções' de juiz (do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo recorrido de 29.7.98). VI. A protecção que o recorrente solicitou ao Supremo Tribunal Administrativo foi denegada, porque este, apesar de solicitado a agir de acordo com as alterações introduzidos pela IV Revisão Constitucional, limitou-se a decidir como sempre decidiu. VII. O recorrente vem denunciado pelo recorrido particular Dr. Pego de lhe ter ofendido a honra, consideração e dignidade pessoal e profissional no decurso de uma sessão da 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo. VIII. Na sequência do respectivo processo disciplinar n.º 439 o agente instrutor acusou disciplinarmente o recorrente das ditas ofensas, propondo a pena capital de aposentarão compulsiva - expulsão pura e dura do recorrente da magistratura! IX. Em 22.6.98 o requerente suscitou o incidente de impedimento em relação aos membros do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais que tomaram a deliberação instaurativa do processo disciplinar n.º 439, os recorridos particulares com excepção do Dr. Pego, invocando a circunstância de, por força da sua participação na deliberação referida, ter feito instaurar contra os mesmos processo crime, o que integra o fundamento de impedimento previsto no art.º 44.º, n.º 1, alínea f), do Código do Procedimento Administrativo. X. Por despacho de 25.6.98, o recorrido público indeferiu o impedimento oposto aos recorridos particulares, com excepção do Sr. Dr. Pego. XI. Resulta do discurso do recorrido público que a parcialidade do órgão decisor, que aliás o mesmo não contesta, porque foi 'criada' pelo recorrente é de manter. XII. Por outro lado, o recorrido público opta manifestamente por uma actuação de
órgão decisor parcial, apesar de tal actuação inquinar todo e qualquer acto praticado por aquele. XIII. No processo disciplinar levantado ao recorrente, enquanto juiz, estão em causa declarações ou opiniões, nada lisonjeiras diga-se em abono da verdade, que aquele teria proferido ou emitido, durante a conferência da 1.' Secção do Tribunal Central Administrativo do passado dia 12.3.98. XIV. O processo disciplinar em curso implica a violação do princípio da separação de poderes, constituindo a prática de procedimentos por órgão administrativo incluído nas atribuições dos tribunais judiciais, nos termos do art.º 37.º, n.º 3, da Constituição, o que configura o vício de usurpação de poder, e acarreta a sua nulidade, nos termos do art.º 133.º, n.º 2, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo, nulidade que aqui vai invocada, nos termos e para os efeitos do art.º 134.º, n.ºs 1 e 2, do CPA: o acto nulo não produz efeitos jurídicos, a nulidade é invocável a todo o tempo e pode ser declarada a todo o tempo por qualquer tribunal. XV. Atento o arbítrio que a actuação do recorrido público denota, em contexto de procedimento administrativo sancionador nulo, o recorrente solicitou a suspensão jurisdicional do despacho que indeferiu a declaração administrativa de impedimento de vogais de órgão decisor. XVI. In casu, os vogais de órgão decisor do procedimento sancionatório administrativo nulo têm o dever de actuar imparcialmente - isto é, não obstante ser nulo e de nenhum o efeito o procedimento, os vogais do respectivo órgão decisor têm o dever constitucional de actuarem numa posição de imparcialidade. XVII. No caso sub judice, pretende o recorrente que a actuação de alguns vogais constituintes de órgão decisor, porque numa posição de parcialidade, não comprometam irremediavelmente o acto final do processo disciplinar em curso. XVIII. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29.7.98, a fls 106 e seguintes dos autos, ora recorrido, indefere o pedido, considerando que dá por assente a legalidade do acto suspendendo ('é assim completamente irrelevante tratar de tudo o que se reporta às eventuais ilegalidade que o acto apresente') e que não se encontra verificado o requisito do art.º 76.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho. XIX. A IV Revisão Constitucional, suscitando-se o presente litígio já após a entrada em vigor das respectivas alterações, veio assegurar a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos - art.º 20.º, n.º 1, da Constituição - realçando-se aqui a expressão defesa efectiva, tutela efectiva (art.º 20.º, n.º 5). XX. Estes direitos à efectivação jurídica dos direitos e interesses jurídicos são especifica e constitucionalmente concretizados no que toca ao cidadão na veste de administrado: a IV Revisão Constitucional (1997) garante aos
'administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnarão de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas'
(art.º 268.º, n.º 4). XXI. A aplicação directa do art.º 268.º, n.º 4, da Constituição, implica a interpretação do direito ordinário em conformidade com a Constituição, através dos seguintes expedientes:
- desaplicação por inconstitucionalidade de normas erguidas como impedimento legal a uma protecção adequada de direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares;
- formatação judicial constitucionalmente adequada de instrumentos processuais já existentes para, de forma equitativa, eficaz e expedita, se defenderem direitos, liberdade e garantias - art.º 20.º, n.º 4. XXII. Como pressupostos da concessão da suspensão de eficácia judicial dos actos administrativos impugnados, temos o periculum in mora, e o fumus boni iuris, na medida em que espalhados pelas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 76.º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, formatadas pois à luz da garantia introduzido pela IV Revisão Constitucional. XXIII. O afastamento da relevância, efectuado pelo Acórdão de 29.7.98, dos receios invocados pelo recorrente do âmbito normativo em apreço, a pretexto de acto de conteúdo negativo, impede a integração da factualidade invocada pelo recorrente nos art.ºs 101.º a 132.º da petição, o que significa uma restrição injustificada e desproporcional da posição jurídica do recorrente, na medida em que não permite que os seus direitos e interesses espelhados na situação em que se encontra actualmente (de que a nulidade do procedimento administrativo sancionador é elemento integrante) sejam confrontados com o interesse público concretamente prosseguido pela decisão do procedimento disciplinar. XXIV. Assim, afigura-se ao recorrente que a interpretação do art.º 76.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, aplicada pelo Tribunal recorrido, não observa o parâmetro constitucional dado pelo art.º 20.º, n.º 5,
(defesa de 'direito a defesa em processo administrativo sancionador' de forma a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaça de violação daquele), concretizado pelo art.º 268.º, n.º 4 (tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos traduzido na adopção de medidas cautelares adequadas); nem observa o parâmetro constitucional constituído pelo art.º 18.º, n.º 2, na medida em que a restrição efectuada resulta, não de lei especifica, nem da necessidade de salvaguardar outro direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, mas sim de posições jurisprudenciais se tem entendido não ser legalmente possível suspender a eficácia de actos de conteúdo puramente negativo [...]' - Acórdão recorrido de 29.7.98). XXV. Pelo que a interpretação e aplicação efectuadas pelo Supremo Tribunal Administrativo do art.º 76.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, violam o disposto nos art.ºs 20.º, n.º 5, e 268.º, n.º 4, bem como no art.º 18.º, n.º 2, todos da Constituição. XXVI. O Acórdão do STA de 23.9.98, a fls 166 e seguintes, não toma conhecimento do pedido na parte em que se pede a declaração de nulidade ou a anulação do despacho de 17JUL98 e indefere o restante', porque:
· o recorrente pediu a declaração de nulidade ou a anulação e devia ter pedido a ineficácia.
· na parte em que pediu a ineficácia, não identificou nenhum acto de execução.
· mesmo que houvesse algum acto de execução, não havia lugar à declaração de ineficácia porque o pedido de suspensão de eficácia tinha sido indeferido. XXVII. Ora, ao decidir como decidiu, o STA aceitou como válido o despacho do recorrido público de 13.7.98, despacho emitido no uso da faculdade constante do art.º 80.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, faculdade que, enquanto modalidade do privilégio de execução prévia, é gravosa para os particulares e desprestigiante para os tribunais, porque representa uma condenável diminuição de garantias dos particulares, incompatível com o Estado de direito, o que viola, não só o disposto nos art.º 2.º e art.º 9.º, alínea b), da Constituição, como também a efectividade de protecção jurisdicional garantida pelos art.º 20.º, n.º 5, e art.º 268.º, n.º 4, da Constituição, com relevância para a 'adopção de medidas cautelares adequadas'. XXVIII. Por outro lado, ao negar ao recorrente o direito à suspensão provisória do acto impugnado até trânsito em julgado do pedido de suspensão de eficácia no presente processo, o STA fez aplicação do art.º 80.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, em desconformidade com o disposto nos art.ºs 20.º, n.º 5, e 268.º, n.º 4, da Constituição. XXIX. Da tramitação processual, verifica-se que o agente do Ministério Público, junto do Supremo Tribunal Administrativo, teve a seguintes intervenção:
· a fls 102 a 104 defende abundantemente o indeferimento da suspensão pretendida pelo recorrente;
· interveio na sessão da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 29.7.98 em que se discutiu a presente causa em conferência, e em que foi resolvido indeferir o pedido formulado pelo recorrente - termo de fis 1 18;
· assinou o Acórdão recorrido, juntamente com os juízes da conferência
- cfr fls 1 17. XXX. Decorre também da tramitação processual que o recorrente não foi notificado da promoção do Ministério Público de fls 102 a 104, pelo que não pode pronunciar-se, previamente à decisão, sobre o indeferimento que ali é proposto; nem foi notificado para estar presente na sessão de 29.7.98 referida, afim de poder contraditar as razões oralmente apresentadas pelo Ministério Público. XXXI. O Acórdão recorrido aplicou o disposto no art.º 15.º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, já que, apesar do carácter reservado do
órgão jurisdicional 'conferência', o agente do Ministério Público teve intervenção na sessão em que foi resolvido indeferir o pedido do recorrente, desacompanhado deste, chegando a apor a sua assinatura no acto jurisdicional, pelo que o agente em causa vem configurado como 'juiz'. XXXII. Daí que o art.º 15.º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, na medida em que permite essa configuração, seja inconstitucional por violação do disposto nos art.ºs 202.º, n.º 2, 203.º, 219.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição. XXXIII. Na medida em que os juízes, sendo o recorrente juiz, só nos casos especialmente previstos na lei podem ser responsabilizados disciplinarmente em razão do exercício das suas funções (art.º 5.º, n.º 2, da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho), por definição, qualquer processo administrativo sancionador de juiz pressupõe necessariamente que a respectiva infracção disciplinar tenha sido praticada 'em razão das funções de magistrado judicial'. O recorrente vem ao tribunal defender-se de razões de índole disciplinar directamente conexionadas com o exercício das suas funções - porque se as razões de índole disciplinar não estivessem directamente conexionadas com o exercício das funções do recorrente, o processo disciplinar em causa era inadmissível. XXXV. O processo disciplinar de que o recorrente é alvo - o processo disciplinar n.º 439 do CSTAF - assenta na circunstância de que a respectiva infracção disciplinar tenha sido praticada 'em razão das funções de magistrado judicial'. XXXVI. O próprio Acórdão recorrido reconhece que o recorrente é infractor 'por factos ocorridos durante o exercício das suas funções' de juiz . XXXVII Se a expressão 'exercício das suas funções' é idêntica nos art.º
5.º, n.º 2, e no art.º 17.º, n.º 1, alínea g), ambos da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, não se vislumbra motivo jurídico para a interpretar de forma diversa: para perseguir o recorrente, a expressão tem um determinado significado jurídico; para o recorrente se defender dessa perseguição, a expressão já tem outro significado jurídico! XXXVIII. Qualquer Estatuto, enquanto conjunto de direitos e deveres aplicáveis a titulares de órgãos do Estado - um juiz é titular de um órgão jurisdicional - deve ser aplicado unitariamente, isto é, as suas expressões normativas têm de manter o mesmo significado jurídico face às diversas hipóteses em que suscite a sua aplicação, sob pena de relevar a facticidade dos resultados pretendidos, em detrimento da conformação resultante do dever-ser jurídico. XXXIX. O direito conferido pelo art.º 17.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, é direito especial dos juizes, traduzido em isenção de preparos e custas em qualquer acção em que o juiz seja parte principal ou acessória, por via do exercício das suas funções. XL. A isenção é concedida (aos juizes) nos expedientes judiciais em que é pedida por ou contra um juiz, uma determinada composição de um litígio suscitado por causa do exercício das suas funções. XLI. Para efeito da isenção de custas em causa, um juiz está no exercício de funções quando se encontra em posição de poder actuar os poderes funcionais implicados na competência do tribunal a que está adstrito. XLII. Por isso, o exercício de funções deve constituir a causa de pedir da acção, de tal forma que aqui são contidos os litígios de natureza estatutário em que o juiz é parte; ou seja, a acção há-de fundar-se em factos directamente conexionados com o exercício das funções do juiz, pelo que a isenção concedida é uma isenção de tipo subjectivo - vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
466/97, in Diário da República, II, n.º 245, de 22.10.97. XLIII. No caso dos autos, o litígio surge em virtude de o 'exercício de funções de juiz do Tribunal Central Administrativo', em comissão permanente de serviço, do recorrente, já que a pretexto de punição disciplinar mediante processo disciplinar pretende o órgão recorrido puni-lo por eventual abuso de liberdade de expressão no decurso de uma sessão do órgão jurisdicional de que o recorrente
é titular. XLIV. Assim não considerando, está-se a interpretar restritivamente o art.º
17.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei n.º
10/94, de 5 de Maio, com violação do disposto nos art.ºs 18.º, n.º 3, e 20.º, n.º 1, da CRP. Termos em que requer: a)- a declaração de inconstitucionalidade das normas apontadas, na interpretação aplicada pelo Tribunal a quo; b)- a revogação dos Acórdãos recorridos; c)- a baixa do processo ao Supremo Tribunal Administrativo, a fim de ser reformada a decisão em conformidade com o julgamento de inconstitucionalidade, deferindo-se o pedido de suspensão de eficácia subjacente aos presentes autos.'
Também o Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) apresentou alegações em que defendeu as posições que expôs nos autos, mas não formulou conclusões.
Corridos que foram os vistos legais, foi determinada a intervenção do plenário, nos termos do preceituado no artigo 79º-A da LTC, tendo ocorrido mudança de relator.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS:
A - Delimitação do objecto do recurso
5. Importa, antes de mais, averiguar se o Tribunal confirma ou não o despacho do relator quanto à exclusão do âmbito do recurso das normas dos artigos 3º, nº 4, alínea f), e nº 10, 11º e 26º, nº 1 e nº 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, e dos artigos 82º, 90º, nº 1, e 95º, nº 1, alínea a), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho
- normas que o recorrente veio considerar como implicitamente aplicadas pelas decisões recorridas.
Efectivamente, o acórdão de 29 de Julho de 1998 indeferiu o pedido formulado, que era tão-só o da suspensão da eficácia do despacho de 25 de Junho de 1998 da autoridade recorrida, que indeferira, por sua vez, a declaração de impedimento de outros membros daquela entidade. Ora, a decisão que indeferiu tal pedido de suspensão de eficácia do acto administrativo impugnado não aplicou, manifestamente, de forma explícita ou implícita, as referidas normas. De facto, como decorre singelamente da sua leitura, o mencionado acórdão do STA limitou-se a indeferir a pretensão da suspensão e a resolver duas questões incidentais suscitadas pelo recorrente - o impedimento do presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e a questão da intervenção do Ministério Público nas sessões do STA -, sendo certo que a solução jurídica dessas questões se não reporta às normas questionadas.
Por outro lado, o acórdão de 23 de Setembro - atinente ao pedido de declaração de nulidade ou de anulação do despacho de 13 de Julho, bem como ao pedido de declaração de ineficácia de todos os actos de execução entretanto praticados - também se não socorreu das mesmas normas, por o respectivo âmbito de aplicação ser manifestamente alheio às questões controvertidas.
Assim, não tendo havido aplicação das normas referidas, não pode tomar-se conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade na parte relativa àquelas normas, que ficaram anteriormente identificadas.
6. Há, porém, que apreciar a questão suscitada pelo Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais relativa à não aplicação, pelos acórdãos recorridos, do artigo 80º, nºs 1 e 2, da LPTA.
Segundo o artigo 80º, nºs 1 e 2, da LPTA, constitui dever expresso da Administração impedir que se proceda à execução do acto cuja suspensão de eficácia foi pedida, só podendo iniciar-se ou prosseguir a execução do acto, antes do trânsito em julgado da decisão do pedido, quando, em resolução fundamentada, se reconheça grave urgência para o interesse público na execução.
Assim sendo, resulta evidente que o acórdão de 29 de Julho, ao indeferir o pedido de suspensão de eficácia, não pode ter - nem podia ter - aplicado tal normativo.
Por outro lado, no requerimento de fls. 121/131 dos autos, o recorrente pediu que se declarasse a nulidade ou se anulasse o despacho de 13 de Julho de 1998 da autoridade recorrida e, ainda, que o Tribunal declarasse ineficazes todos os actos de execução praticados pelo CSTAF posteriores ao pedido de suspensão de eficácia, para tanto invocando o artigo 80º, nºs 1 e 2 da LPTA.
Contudo, o Supremo Tribunal Administrativo, pelo acórdão de 23 de Setembro de 1998, decidiu não tomar conhecimento do pedido na parte em que se pedia a declaração de nulidade ou a anulação do despacho de 13 de Julho de 1998 e 'não ser possível decretar a ineficácia dos actos que porventura concretizem a respectiva execução', por ter sido indeferido o pedido de suspensão de eficácia. Ora, não tendo o STA tomado conhecimento do pedido na parte relativa à declaração de nulidade ou anulação do despacho de 17 de Julho de 1998, é manifesto que a norma aqui em causa – o artigo 80º, nºs 1 e 2, da LPTA - não foi aplicada na decisão recorrida.
Por isso, não pode também conhecer-se do recurso de constitucionalidade, quanto a tal norma.
7. Nestes termos, o Tribunal altera, nesta parte, o despacho do primitivo relator (fls. 184 a 190 dos autos), passando a constituir objecto do presente recurso de constitucionalidade apenas as seguintes normas: o do artigo 76º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho
(LPTA); o do artigo 15º da mesma LPTA; o do artigo 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio.
Assinale-se, porém, que só a norma do artigo 76º, nº 1, da LPTA é abrangida por ambos os recursos interpostos, na medida em que, relativamente às outras duas, a questão da respectiva inconstitucionalidade não foi suscitada no requerimento que viria a dar origem ao segundo acórdão do STA, ou seja, ao acórdão de 23 de Setembro de 1998 - isto é, a questão de inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo, em termos de o tribunal recorrido estar obrigado a dela conhecer (artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC) no mencionado segundo acórdão.
Quanto às restantes normas indicadas pelo recorrente, o Tribunal decide não tomar conhecimento do recurso, por falta de pressupostos de admissibilidade.
B - O artigo 76º, nº 1, alínea a), da LPTA
8. A norma do artigo 76º, nº 1, da LPTA, é do seguinte teor: Artigo 76º
(Requisitos)
1 – A suspensão da eficácia do acto recorrido é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) A execução do acto cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso.
[...]
Entende o recorrente:
[...] a interpretação do art.º 76º, n.º1, alínea a) do Decreto – Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, aplicada pelo Tribunal recorrido, não observa o parâmetro constitucional dado pelo art.º 20º, n.º5, (defesa de 'direito a defesa em processo administrativo sancionador' de forma a obter tutela efectiva e em tempo
útil contra a ameaça de violação daquele), concretizado pelo art.º 268º, n.º4
(tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos traduzidos na adopção de medidas cautelares adequadas); nem observa o parâmetro constitucional constituído pelo art.º 18º, nº 2, na medida em que a restrição efectuada resulta, não de lei específica, nem da necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, mas sim de posições jurisprudenciais ('[...] se tem entendido não ser legalmente possível suspender a eficácia de actos de conteúdo puramente negativo [...]' – Acórdão recorrido de 29.7.98).
Assim, o recurso tem como fundamento a inconstitucionalidade da alínea a) do nº 1 do artigo 76º da LPTA, por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva tal como resulta consagrado nos artigos 18º, nº 2, 20º, nº 5, e 268º, nº 4, da Constituição.
O acórdão do STA procurou apurar se da execução imediata do acto impugnado resultaram para o interessado prejuízos de difícil reparação cuja ocorrência podia ser afastada pela suspensão de eficácia do acto administrativo em causa.
Escreveu-se, a este respeito, no acórdão recorrido:
Daqui resulta que a eventual suspensão da eficácia de actos administrativos que se limitam a proibir uma qualquer alteração na ordem jurídica, não determinando a satisfação da pretensão do particular em ver concretizada essa alteração, nunca seria apta a evitar os prejuízos invocados pelo requerente, pois eles são necessariamente decorrentes não da execução do acto, como exige a citada alínea a) do n.1 do art.º 76º da LPTA, mas da situação jurídica preexistente.
Por isso se tem entendido não ser legalmente possível suspender a eficácia de actos de conteúdo puramente negativo, que se limitam a proibir uma alteração da ordem jurídica, pois tal suspensão, a ser decretada, deixaria inalterada a situação jurídica anterior e nenhum benefício traria para os interesses que o requerente defende.
O caso em apreço tem esta característica.
Apura-se que o Requerente solicitou, no seu requerimento de 22JUN98, a declaração de impedimento, na intervenção em matérias relacionadas com o processo disciplinar de que é alvo, dos vogais do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais que deliberaram instaurar-lhe tal processo.
O acto recorrido aqui em causa limitou-se a indeferir tal pretensão; a sua hipotética suspensão de eficácia nenhum benefício traria aos interesses do Requerente, pois não provocaria o impedimento dos mencionados vogais do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que é, no fundo, a pretensão que o Requerente pretende ver satisfeita e que, em seu próprio entender, seria a
única com virtualidade para impedir os prejuízos que alega ter de suportar.
Esta conclusão não provoca qualquer compressão intolerável dos direitos e interesses legalmente protegidos do Requerente, nem traduz uma injustificada diminuição das garantias constitucionais de tutela jurisdicional do direito de recurso.
Conclui-se, portanto, no acórdão em causa que quaisquer prejuízos que eventualmente possam resultar para o recorrente não decorrem da execução do acto cuja suspensão foi pedida, pelo que não se decretou a aludida suspensão.
9. Mas violará esta interpretação normativa o preceituado na Constituição, designadamente após a última revisão constitucional?
Este Tribunal já teve ocasião de analisar a questão da eventual inconstitucionalidade da norma em apreço à luz da nova versão da Constituição, resultante das alterações introduzidas no texto constitucional em 1997, dando-lhe resposta negativa, no Acórdão nº 345/99 (Diário da República, II Série, de 17 de Fevereiro de 2000), em recurso interposto também pelo ora recorrente.
Escreveu-se então:
A norma sub iudicio não viola o artigo 20º, n.º 5, da Constituição.
Este preceito constitucional dispõe como segue:
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
A garantia de acesso aos tribunais (consagrada no n.º 1 deste artigo
20º) visa assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos.
Como é sabido, a eficácia desta garantia depende, sobremaneira, de a justiça ser administrada em prazo razoável (cf. o n.º 4 do artigo 20º da Constituição), pois - como escreveu MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1956, página 372) - 'vencer o pleito, mas só tarde e a más horas, equivale em certa medida a não vencer'.
De acordo com o disposto do n.º 5 do artigo 20º da Lei Fundamental, que se transcreveu atrás, na revisão constitucional de 1997, entendeu-se que, quando estiverem em causa direitos, liberdades e garantias pessoais - que são os previstos nos artigos 24º a 47º - o legislador, com vista a que os cidadãos possam obter 'tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos', deve organizar procedimentos judiciais céleres e com prioridade.
Nos dizeres do deputado JOSÉ MAGALHÃES: 'para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei deve assegurar procedimentos judiciais credibilizados pela celeridade e prioridade de modo a obter tutela efectiva em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos' (cf. Diário da Assembleia da República, I série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997). Ou seja: as leis hão-de prever instrumentos processuais que - nas palavras do deputado LUÍS DE SÁ (Diário da Assembleia da República, I série, n.º 94, de 16 de Julho de
1997) - permitam aos cidadãos 'recorrer, de uma forma muito célere e pronta, dando um conteúdo efectivo e uma protecção eficaz aos direitos, liberdades e garantias pessoais'.
Ora, antes de mais, o direito a recurso contencioso não é um direito pessoal. Ao que acresce que a suspensão de eficácia se caracteriza, justamente, por ser um procedimento cautelar, que está associada ao recurso contencioso de anulação, na dependência do qual se encontra, e por ter a natureza de processo urgente [ cf. artigos 6º, n.º 1, e 76º a 81º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho)] .
É que, em determinadas circunstâncias, a suspensão de eficácia torna-se indispensável para acautelar o efeito útil daquele recurso. Indispensável, porque, num sistema de administração executiva, como é o português, o recurso contencioso de anulação não tem, em regra, efeito suspensivo, pois a autoridade própria do acto administrativo conduz a que, não obstante a interposição do recurso, o acto impugnado possa, em regra, ser executado. Fala-se, a tal propósito, em privilégio de execução prévia. E invoca-se também o facto de os actos administrativos gozarem de uma presunção de legalidade.
Com a suspensão de eficácia, procura-se, pois, obstar a que a demora normal do recurso possa retirar à sentença de provimento todo o seu alcance prático.
O procedimento de suspensão de eficácia é, assim, um procedimento judicial urgente, célere e com prioridade (cf. artigos 6º, nºs 2 e 3, e 78º da citada Lei de Processo dos Tribunais Administrativos). Só desse modo, de resto, está apto a desempenhar a sua função, que é a de dar combate ao periculum in mora.
Um procedimento judicial assim caracterizado - e, obviamente, a norma que o recorta - não pode entrar em colisão com o mencionado n.º 5 do artigo 20º da Constituição, que tem exactamente em vista assegurar, em tempo útil, a tutela efectiva dos direitos, liberdades e garantias pessoais contra ameaças e violações de que sejam objecto.
[...] A norma sub iudicio também não viola o artigo 268º, n.º 4, da Constituição.
Este artigo 268º, n.º 4, da Constituição, após a revisão de 1997, passou a dispor como segue:
É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas.
Este preceito constitucional veio deixar claro que o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa - a mais do que obrigar o legislador a regular o clássico direito ao recurso contencioso contra actos administrativos; e, bem assim, o direito de acesso à justiça administrativa para tutela dos direitos ou interesses legalmente protegidos (nomeadamente, das acções para o reconhecimento desses direitos ou interesses) - obriga-o a prever meios processuais que permitam ao administrado exigir da Administração a prática de actos administrativos legalmente devidos (acções cominatórias) e, quando for o caso, lançar mão de medidas cautelares adequadas.
É que tudo são manifestações (concretizações) do direito de acesso aos tribunais para defesa, por parte dos administrados, dos 'seus direitos e interesses legalmente protegidos', como dispõe o n.º 1 do artigo 20º da Constituição.
O mencionado artigo 268º, n.º 4, não impede, porém, que a lei estabeleça requisitos a cuja verificação condiciona o decretamento judicial da suspensão de eficácia do acto administrativo impugnado ou a impugnar. Não impede, designadamente, que exija, como condição desse decretamento, que a execução do acto 'cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso'
É que, o acto impugnado visa a prossecução do interesse público.
Assim, pois, é razoável que o interesse público ceda, se for provável que o acto administrativo impugnado cause prejuízos de difícil reparação ao interessado - probabilidade que existe, toda a vez que, de acordo com um juízo de prognose, a execução de tal acto seja adequada a causá-los. Nesse caso, então, justifica-se que se suspenda a execução do acto administrativo.
[...]
A interpretação, que o acórdão recorrido fez do artigo 76º, n.º 1, alínea a), da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, na parte em que este exige, como condição do decretamento da suspensão de eficácia do acto administrativo impugnado, que a sua execução 'cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso', é, pois, compatível com a Constituição (recte, com o artigo 268º, n.º 4).
[...] A norma sub iudicio tão-pouco viola o artigo 18º, n.º 2, da Constituição.
Este preceito constitucional dispõe como segue:
A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
De facto, contrariamente ao que vem sustentado pelo recorrente, a dita norma não contém uma restrição que 'resulta, não de lei específica, nem da necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses protegidos, mas sim de posições jurisprudenciais ditas pacíficas'.
A norma questionada, quando faz depender o decretamento da suspensão de eficácia do facto de o acto impugnado ser adequado a causar prejuízos de difícil reparação, não restringe o direito ao recurso contencioso. Limita-se, antes, a regulamentar o exercício de um tal direito em termos que, já se viu, são razoáveis e proporcionados - e nessa medida necessários - à prossecução do interesse público visado com a prática do acto impugnado (cfr. artigo 266º da Constituição) e à 'necessária eficácia' da Administração (artigo 267º, nº 2 da Constituição), sem descurar os legítimos interesses do requerente, pois que o protege contra a risco de prejuízos de difícil reparação.
E também não há inconstitucionalidade por violação da garantia de tutela juridicional efectiva mediante a adopção de medidas cautelares adequadas, consagrada a partir de 1997 no nº 4 do artigo 268º, seja porque os limites resultantes dos interesses constitucionalmente protegidos que já se referiram são visados à partida pela exigência constitucional de adequação daquelas medidas cautelares, ou seja porque se deduzem sistematicamente da protecção constitucional ao interesse público prosseguido pela Administração e à necessária eficácia desta.
10. Estes argumentos, aduzidos em anterior jurisprudência, são no essencial aplicáveis ao caso dos autos, em que se requereu a suspensão de eficácia de um acto administrativo de conteúdo negativo, como salientou o Supremo Tribunal Administrativo.
Com efeito, este Tribunal teve já igualmente ocasião de sublinhar no Acórdão nº 303/94, como se sumariou na sua publicação (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., págs. 829 e segs.), que «o nº 1 do artigo 76º da LPTA, na interpretação segundo a qual só na medida em que os actos administrativos, formalmente de conteúdo negativo, tenham, no rigor das coisas, uma vertente positiva (ou seja, tenham uma eficácia secundária ablatória que redundaria em que, se a suspensão de eficácia não fosse decretada, na prática se não alcançaria o resultado desejado através do recurso de anulação) é que é possível decretar a sua suspensão, não é afrontador» das atinentes normas constitucionais.
Assim sendo, não se conclui pela inconstitucionalidade da norma em causa.
C - A norma do artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho (LPTA)
11. A norma constante do artigo 15º da LPTA foi objecto de alteração pelo Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro, tendo ficado com a seguinte redacção:
No Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal Central Administrativo o representante do Ministério Público a quem, no processo, esteja confiada a defesa da legalidade assiste às sessões de julgamento e é ouvido na discussão.
Pretende o recorrente que esta norma viola o disposto nos artigos
202º, nº 2, 203º e 219º, nºs 1 e 2, da Constituição, na medida em que permite que o agente do Ministério Público intervenha na sessão em que se decide do deferimento ou do indeferimento do pedido do recorrente, chegando a assinar o acórdão, sem que o recorrente esteja presente ou seja ouvido, o que gera inconstitucionalidade por assim se configurar o agente do Ministério Público como um verdadeiro «juiz».
No referido Acórdão nº 345/99, o Tribunal Constitucional, pela 3ª Secção, já concluiu pela inconstitucionalidade da norma em questão. Fê-lo, então, com os seguintes fundamentos:
Cabe perguntar se a norma do referido artigo 15º viola a norma que se extrai do nº 4 do artigo 20º da Constituição, na parte em que consagra o direito a um 'processo equitativo' . Tal violação não foi invocada pelo recorrente, mas o Tribunal não está vinculado às normas perante si invocadas como fundamento
(artigo 79-C da Lei do Tribunal Constitucional).
O conceito de 'processo equitativo' tem sido desenvolvido sobretudo pela jurisprudência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo artigo 6º tem precisamente como epígrafe 'direito a um processo equitativo' e cujo § 1º dispõe , retirando as palavras do artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que 'qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativamente', frase que é repetida no artigo 14º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos. Ora a revisão constitucional pretendeu precisamente, fazendo uma 'transposição explícita do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem', tendo presente 'todo o trabalho do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem', 'dar dignidade constitucional' (expressões do deputado Alberto Martins na reunião de 5.9.1996 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, edição provisória não oficial de José de Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional em CD-Rom, 2ª ed., Lisboa, Editorial Notícias, 1999), a conteúdos normativos que, através daquele direito internacional, já integravam a ordem jurídica portuguesa e inclusivamente, num certo entendimento, através da remissão no nº 2 do artigo
16º, a própria ordem constitucional (no mesmo sentido se pronunciou o deputado Luis Sá, ibidem: 'toda a densificação é bem vinda e nesse sentido creio que a consagração do princípio do processo equitativo pode ser uma contribuição para que no plano da legislação ordinária venha a ser reforçado o princípio da igualdade das armas, dos direitos de defesa, da justiça no processo em termos gerais': também o deputado Luis Marques Guedes admitiu um 'ganho acrescido').
A partir do Acórdão Lobo Machado contra Portugal de 20 de Fevereiro de 1996 (Recueil des arrêts et décisions 1996 - I, pp. 195 ss.), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem firmou uma jurisprudência segundo a qual o direito a um processo equitativo inclui 'o direito a um processo contraditório. Este implica em princípio a faculdade para as partes de um processo, penal ou civil, de tomar conhecimento de, e de discutir, todo o elemento ou observação apresentado ao juíz, mesmo por um magistrado independente, tendo em vista influenciar a decisão' (p.206, § 31). Tal direito teria sido violado no caso pela impossibilidade para o interessado de tomar conhecimento e de responder ao parecer do procurador-geral adjunto anterior ao julgamento do recurso na secção social do Supremo Tribunal da Justiça - parecer que foi de apoio à decisão recorrida - (p. 205, § 31) e também pela presença daquele Magistrado no julgamento, onde teve oportunidade de se pronunciar novamente no sentido do anterior parecer - pelo que a aparência de imparcialidade do Tribunal, ao dispor-se a ouvir de novo apenas uma das opiniões em confronto também seria afectada (§ 32). Esta jurisprudência foi confirmada uniformemente em acórdãos posteriores, nomeadamente nos Acórdãos Vermeulen, da mesma data (Recueil cit.,
1996-I, p. 225 ss., 234, § 33 e 34), Niederost-Huber, de 18 de Fevereiro de 1997
(Recueil cit., 1997-I, p. 101 ss., 108-109 §§ 24-31), Montovanelli de 18 de Março de 1997 (Recueil cit., 1997-II, p. 424 ss., 436, § 33), Van Orshoven, de
25 de Julho de 1997 (Recueil cit., 1997 - III, p. 1039 ss., 1051 § 41). É especialmente significativo o Acórdão Montovanelli, por se tratar de jurisdição administrativa francesa.
Com esta jurisprudência obtida por unanimidade, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem confirmou uma viragem de jurisprudência da Comissão dos Direitos do Homem, que na sua decisão de 9 de Dezembro de 1986 sobre a queixa nº
10938/84 (caso Kaufmann: Décisions et rapports 50, p. 98) tinha entendido que a intervenção do ministério público belga junto da Cour de Cassation, não sendo ele parte no processo e tendo por função exclusiva a defesa da legalidade, intervenção essa sem possibilidade de resposta do recorrente, não ofendia o artigo 6º, § 1º da Convenção. Precisamente no caso Lobo Machado a Comissão tinha passado a considerar, por catorze votos contra nove, que 'tendo em conta a importância atribuída pela jurisprudência dos órgãos da Convenção às aparências e à sensibilidade acrescida do público às garantias de uma boa justiça' não se poderia considerar como neutra do ponto de vista das partes a intervenção do Ministério Público, uma vez que ao pronunciar-se no sentido do não provimento do recurso, 'tinha agido como adversário objectivo do recorrente' (Recueil cit.,
1996 - I, p.216). Haveria, por consequente, uma 'ruptura da igualdade das armas'. A Comissão (p. 217) e no seu seguimento o Tribunal (p. 207) questionaram também que as missões atribuídas ao Ministério Público, nomeadamente quanto à unidade de jurisprudência, a segurança jurídica ou o interesse geral, exigissem o tipo de intervenção em causa nos tribunais superiores, 'como o testemunha de resto a prática da maioria dos outros Estudos membros do Conselho da Europa '
(p.207).
Em face deste claro desenvolvimento dos direitos do homem na Europa, há que reponderar alguma jurisprudência anterior deste Tribunal, tendo em vista o desenvolvimento de direito à tutela jurisdicional do artigo 30º da Constituição na revisão de 1997. Com efeito, este Tribunal já interpretou o artigo 6º, § 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no sentido de não obstar à intervenção do Ministério Público, imediatamente anterior à decisão, a fim de se pronunciar sobre o pedido de apoio judiciário, previsto pelo artigo
28º do Decreto-Lei nº 387-B/87. Segundo o Acórdão nº 263/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24, p. 670): 'revestindo a actuação do Ministério Público nos incidentes de apoio judiciário em que não figura como requerente, a natureza de um órgão de justiça, estabelecendo-se o contraditório entre os requerentes e requeridos, e não entre os requerentes e o Ministério Público, que ocupa um plano diverso daquele, há-de dizer-se não poder legitimamente convocar-se aqui, a propósito da pronúncia emitida ao abrigo do artigo 28º do Decreto-Lei nº 387-B/87, uma qualquer violação do princípio da igualdade de armas, do mesmo modo que um qualquer afrontamento à independência dos tribunais.'
Em face das razões invocadas pelos órgãos jurisdicionais da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e da clara vontade histórica do legislador constituinte de acompanhar o passo da jurisprudência europeia no desenvolvimento dos direitos fundamentais igualmente previstos na Convenção e na Constituição, há que rever a jurisprudência anterior à revisão constitucional de 1997.
Ora o Tribunal Constitucional já se pronunciou em sessão plenária, no sentido de que, 'se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes a possibilidade de responderem' (Acórdão nº 150/93, Acórdãos cit., 24, p.
308). Em face da nova redacção do nº 4 do artigo 20º da Constituição, há que alargar esta jurisprudência, em função das normas em cada caso questionadas.
Quanto ao artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 299/96 de 29 de Novembro, há que julgá-lo inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 20º da Constituição, uma vez que não permite às partes tomar conhecimento e discutir qualquer elemento da intervenção do Ministério Público no processo que possa influenciar a decisão. Não tem cabimento qualquer restrição aos casos de pronúncia possivelmente desfavorável. Mesmo quando o Ministério Público nada diga na sessão de julgamento, basta a possibilidade de dizer sem controlo do facto pela parte para tornar a intervenção inadmissível, em face das exigências de transparência ligadas ao correcto entendimento do princípio do contraditório, implicado pelo nº 4 do artigo 20º da Constituição.
A referida exigência de transparência é uma consequência do papel das aparências na apreciação do respeito pelo princípio do contraditório e, mais geralmente, do carácter equitativo do processo, noção que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado 'marcada em particular pela importância atribuída às aparências e à sensibilidade acrescida do público às garantias de uma boa justiça '(acórdão Borgers contra a Bélgica de 30 de Outubro de 1991; Cour Européenne des Droits de l'Homme, série A, nº 214-B, § 29, pp.8-9). Tem-se invocado aqui um dictum de Lord Hewart: «It is not merely of some importance, but it is of fundamental importance that justice should not only be done, but should manifestly and undoubtedly be seen to be done». Despido de acentos retóricos, o princípio tem sido formulado pelo Tribunal Europeu nestas palavras:
«justice must not only be done; it must be seen to be done» (a justiça não só deve ser feita; deve parecer que é feita)'.
Já foi com base nestas considerações que o Tribunal Europeu decidiu no referido Acórdão Borgers, «tendo em vista as exigências dos direitos da defesa e da igualdade das armas assim como o papel das aparências na apreciação do respeito delas» haver violação do artigo 6º, § 1º, da Convenção pela legislação belga (artigos 1107 e 1109 du Code judiciaire) que permite ao ministério público em recurso perante a Cour de cassation apresentar as mesmas conclusões na audiência, «após o que nenhuma nota será recebida», e ainda assistir à deliberação sem voto deliberativo. Foi esta jurisprudência em matéria penal que o Tribunal Europeu agora generalizou com o acórdão Lobo Machado, quanto à legislação portuguesa, e com o caso Vermeulen, quanto à legislação belga.
O Tribunal Constitucional reitera agora a conclusão a que chegou no Acórdão nº 345/99, no sentido da inconstitucionalidade da norma em causa, por violação do direito a um processo equitativo, consignado no artigo 20º, nº 4, da Constituição da República.
12. As razões que levam o Tribunal a confirmar aquele julgamento de inconstitucionalidade radicam, desde logo, no facto de não poder ser indiferente
à circunstância - sublinhada no citado Acórdão nº 345/99 - de a introdução, em
1997, da referência expressa ao direito a um processo equitativo no artigo 20º, nº 4, da CRP ter obedecido ao confessado propósito de proceder a uma
«transposição explícita do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem» (cfr. intervenção do Deputado Alberto Martins na reunião da CERC, de 5 de Setembro de 1996, acta nº 18, pág. 14, em versão provisória, publicada por José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional em CD-Rom, 2ª ed., Lisboa, Editorial Notícias, 1999), sendo certo que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem entendendo que mesmo «qualquer elemento oferecido por uma entidade independente e objectiva (por exemplo, pareceres do Ministério Público) deve ser comunicado às partes a quem deve ser concedida a oportunidade de sobre ele se pronunciar» (Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem anotada, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 134). E isto, independentemente da adopção da denominada teoria das aparências, já que, apesar de não invocada, por exemplo, no Acórdão Van Orshoven, como se salienta nalguns dos votos de vencido a ele apostos, tal não obstou a que o Tribunal Europeu aí mantivesse o entendimento de que as partes têm direito, para «as discutir», a
«tomar conhecimento de todas as peças ou observações apresentadas ao juiz», ainda que pelo Ministério Público.
De todo o modo, o que se afigura decisivo, no caso dos autos, é o modo e o momento em que se processa a intervenção do Ministério Público, cujo conteúdo as partes ficam a desconhecer e não podem minimamente controlar.
Com efeito, o respeito por um processo equitativo supõe a criação de condições objectivas que permitam assegurá-lo. Ora, não se vê como tal possa acontecer quando um elemento exterior ao colégio de juízes, que tem por missão decidir a controvérsia, pode participar na discussão e assistir à deliberação, em sessão sujeita ao regime de segredo, numa fase em que qualquer intervenção se apresenta como particularmente decisiva porque antecede imediatamente a tomada de decisão.
Aliás, não é possível transpor para o caso dos autos a argumentação que foi recentemente desenvolvida pelo Governo francês, no sentido de ainda ser compatível com as exigências de um processo equitativo a presença do denominado commissaire du Gouvernement às sessões deliberativas do Conseil d'État, equivalente do nosso Supremo Tribunal Administrativo; na verdade, tal argumentação assenta fundamentalmente no facto de que «o comissário do Governo
é, na realidade, um juiz, pertencente à jurisdição perante a qual apresenta conclusões», podendo mesmo dizer-se que «pertence à formação de julgamento, se com tal expressão se designar o conjunto de juízes que concorrem para a formação colegial da decisão jurisdicional», só não votando porque já exprimiu anteriormente a sua opinião sobre a questão - isto, para além de ser «um magistrado totalmente independente: durante todo o período de exercício das suas funções, ele continua a ser, conforme os casos, conselheiro do tribunal administrativo, conselheiro do tribunal administrativo de recurso ou membro do Conseil d'État», sem se encontrar «submetido a qualquer poder hierárquico no exercício das suas funções» (cfr. Decisão sobre a admissibilidade do caso Kress c. França, ainda não decidido sobre o fundo, www.dhcour.coe.fr/hudoc/). Ora, é evidente que este circunstancialismo é radicalmente diverso do respeitante à posição dos procuradores-gerais-adjuntos nas sessões de julgamento no Tribunal Central Administrativo e no STA - neste último caso, aliás, enquanto coadjutores ou substitutos do Procurador-Geral da República, a quem cabe a representação do Ministério Público nesse Tribunal (cfr. artigos 4º, nº 1, alínea a), e 13º, nº
2, do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 60/98, de 27 de Agosto).
Pela mesma ordem de razões, também não há paralelismo entre o caso dos autos e o decidido pelo Despacho de 4 de Fevereiro de 2000 do Tribunal de Justiça da União Europeia (htpp://europa.eu.int/jurisp/), relativamente à inadmissibilidade de apresentação de observações escritas pelas partes, em resposta às conclusões do advogado-geral. Desde logo, porque o Tribunal de Justiça se fundou primacialmente no facto de, em conformidade com o seu Estatuto, os advogados-gerais se encontrarem «sujeitos ao mesmo estatuto que os juízes», gozando de «plena imparcialidade e total independência», sendo certo que entre eles «não existe qualquer vínculo de subordinação», não sendo
«acusadores nem Ministério Público», pelo que as respectivas conclusões não traduzem «um parecer destinado aos juízes ou às partes que provém de uma autoridade externa ao Tribunal de Justiça ou que assenta a sua autoridade na de um Ministério Público, mas da opinião individual, fundamentada e expressa publicamente, de um membro da própria instituição», que participa «no desempenho da função jurisdicional confiada ao Tribunal de Justiça», pelo que se entendeu não ser aplicável a jurisprudência do TEDH, que não foi minimamente contestada. Mas a falta de paralelismo com o caso dos autos resulta ainda de estarem em causa conclusões apresentadas publicamente - como sublinha o Tribunal de Justiça
-, e não opiniões manifestadas no decurso do processo de discussão e deliberação, ou seja, em segredo.
Nem se diga que assim se condena a intervenção do Ministério Público, independentemente do seu conteúdo, que até pode ser favorável ao recorrente particular. É que tal resulta do facto de o nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade consistir num contencioso de normas e não num recurso de amparo - daí, a solução adoptada em plenário, quanto ao visto do Ministério Público em recursos penais, no recente Acórdão nº 533/99 (Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 1999), em confronto com o que se havia decidido no Acórdão nº 150/93.
Nesta conformidade, apenas resta concluir pela inconstitucionalidade da norma questionada, a qual, aliás, já não encontra paralelo no Anteprojecto de Código de Processo nos Tribunais Administrativos (cfr. Reforma do Contencioso Administrativo - Discussão Pública, Ministério da Justiça, Janeiro de 2000). D - A norma constante do artigo 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio
13. O preceito do artigo 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de
30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio, agora questionado, tem a seguinte redacção:
1. São direitos especiais dos magistrados judiciais:
[...] g) A isenção de preparos e custas em qualquer acção em que o juiz seja parte principal ou acessória, por via do exercício das suas funções.
Este Tribunal já teve também oportunidade de se pronunciar sobre a constitucionalidade da norma em referência.
De facto, no Acórdão nº 697/96 (ainda inédito), o Tribunal Constitucional entendeu que a isenção de preparos e custas mencionada na norma em questão «refere-se tão somente aos casos em que o magistrado seja parte principal ou acessória na acção que por ele (ou contra ele) seja movida, com fundamento no exercício das respectivas funções, ou seja, tal isenção configurada como um 'direito especial de função' parece visar essencialmente as acções a que se reportam os artigos 1083º a 1093º do Código de Processo Civil, as acções de indemnização contra magistrados».
Também o Acórdão nº 466/97 (Diário da República, II Série, de 22 de Outubro de 1997) tratou da mesma matéria, tendo-se então afirmado que a isenção de preparos e custas a que se refere a norma em causa se encontra «condicionada pela verificação cumulativa de dois pressupostos: o juiz há-de ser parte principal ou acessória da respectiva acção; esta deverá fundar-se em factos, comportamentos ou razões directamente conexionados com o exercício das suas funções».
Do mesmo modo, no Acórdão nº 476/97 (igualmente inédito), o Tribunal reafirmou a ideia de que os magistrados judiciais, pelo simples facto de o serem, não gozam de qualquer isenção pessoal de custas.
A isenção de preparos e custas é um direito especial conferido aos juizes para que, no exercício da sua função, julguem com independência e imparcialidade, libertando-os assim dos constrangimentos de terem de pagar custas no caso de lhes serem movidas acções por causa de tais funções, tornando assim, os tribunais o mais independentes possível.
Não pode, porém, o magistrado beneficiar de tal direito em quaisquer outros processos em que seja parte sem que seja por causa das funções que exerce; de outro modo, essa isenção constituiria um privilégio e já não um direito constitucionalmente credenciado.
No caso dos autos, trata-se de um pedido de suspensão de eficácia de um despacho que indeferiu a declaração de impedimento de vários membros do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, no âmbito de um processo disciplinar que foi movido ao recorrente por factos ocorridos durante o exercício de funções do requerente, mas que nada têm a ver com a função de julgar.
Finalmente, no já citado Acórdão nº 345/99, em que figurava o mesmo recorrente, escreveu-se:
A isenção de preparos e custas de que gozam os juízes não pode, pois, ser entendida como um privilégio. É, antes, um direito especial, com cujo reconhecimento se visa a criação de condições objectivas capazes de permitir ao juiz o cumprimento do dever de julgar os casos, cuja resolução se lhe pede, com independência e imparcialidade - um dever que, sendo, simultaneamente, ético e jurídico, é postulado pela garantia da independência dos tribunais, consagrada no artigo 203º da Constituição.
Por isso, tal isenção só vale para os processos em que o juiz é parte
(principal ou acessória) por causa do exercício das suas funções - é dizer: para os processos em que ele se vê envolvido, nos dizeres da lei, 'por via do exercício das suas funções'. Ela não vale - contrariamente ao que pretende o recorrente (cf. a conclusão 34ª da sua alegação) - para os processos emergentes de factos que o juiz pratica em momento em que 'se encontra em posição de poder actuar os poderes funcionais implicados na competência do tribunal a que está adstrito'. Só naqueles processos - e não também nestes, que surgem por ocasião, mas não por causa do exercício das funções - é que a isenção é, de facto, necessária ao cumprimento independente e imparcial das funções de juiz (maxime, da função judicativa). E, por isso, a isenção de preparos e custas, se valesse para os processos do segundo tipo, constituiria um privilégio atribuído ao juiz pelo tão-só facto de o ser, pois que não decorria já da assinalada necessidade de lhe garantir condições de independência e imparcialidade.
O caso dos autos é um pedido de suspensão de eficácia de acto relativo a um processo disciplinar instaurado ao juiz que a requereu - diz o acórdão recorrido - 'por factos ocorridos durante o exercício das suas funções, mas que não têm nenhuma conexão com a função de julgar'.
Por isso, como decorre do que se disse, o juiz não intervém aí por causa do exercício da função de julgar. Intervém, isso sim, porque, na ocasião de exercer o seu múnus de julgar, praticou factos que o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais - que é o órgão competente para o efeito, já que lhe cabe a gestão e disciplina do corpo de juízes a que pertence o requerente (cf. artigo 98º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril) - considerou ilícitos. Ao praticar tais factos, o juiz não estava, pois, no cumprimento do dever de julgar.
Decorre do que acaba de dizer-se que a norma agora em apreciação, tal como foi interpretada pelo acórdão recorrido - ou seja, no sentido de que 'os magistrados judiciais apenas estão isentos de custas [ ...] nas acções ou recursos em que sejam parte principal ou acessória por causa do exercício concreto da sua função de julgar', e não também nos processos em que 'o pedido [
...] decorre de um processo disciplinar instaurado ao requerente por factos ocorridos durante o exercício das suas funções, mas que não têm nenhuma conexão com a função de julgar' - não é inconstitucional, pois que não viola a garantia de independência dos tribunais, consagrada no artigo 203º da Constituição.
Tal normativo também não viola qualquer outra norma ou princípio constitucional. Designadamente, não viola o disposto nos artigos 18º, n.º 3, e
20º, n.º 1, da Constituição, pois a não concessão de um privilégio aos juízes - e era disso que se tratava, se a isenção de preparos e custas fosse concedida no caso - não assume a natureza de restrição de um direito, maxime do direito de acesso aos tribunais.
Assim sendo, a norma em causa não é inconstitucional uma vez que não sendo o presente processo derivado do exercício da função de julgar do recorrente, a interpretação que dela foi feita na decisão recorrida não viola o disposto nos artigos 203º, 18º, nº 3, ou 20º, nº 1, da Constituição.
III – DECISÃO:
14. Nos termos do que fica exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento dos recursos, na parte respeitante às normas constantes dos artigos 3º, nº 4º, alínea f), e nº 10, 11º, 26º, nº 1 e nº
2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, bem como do artigo 80º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 267/85 (LPTA), de 16 de Julho, e dos artigos 82º, 90º, nº 1 e 95º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de Julho;
b) Não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 76º, nº 1, alínea a), da LPTA e do artigo 17º, nº 1, alínea g), do Estatuto dos Magistrados Judiciais;
c) Julgar inconstitucional a norma constante do artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho (LPTA), na redacção do Decreto-Lei nº
229/96, de 29 de Novembro;
d) Consequentemente, negar provimento ao recurso interposto do acórdão do STA de 23 de Setembro de 1998, na parte em que dele se conhece, e conceder provimento parcial ao recurso interposto do acórdão do STA de 29 de Julho de 1998, o qual deve ser reformado em conformidade com o julgamento de inconstitucionalidade do mencionado artigo 15º da LPTA.
Lisboa, 4 de Outubro de 2000 Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com a declaração de que votam: igualmente com fundamento na violação do artigo 203º da Constituição, pelas razões apostas pelo Exmº Conselheiro Bravo Serra) Bravo Serra (vencido quanto à fundamentação do decidido na alínea c), já que entendo que a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 6 de Julho, reside, e tão só, na ofensa do preceituado no artigo 203º da Lei Fundamental. Na verdade, não se me afigura compatível com aquele preceito constitucional o sistema constante do artº 15º citado que permite que, aquando da sessão em que é tomada a decisão pelos juizes de um Tribunal, à mesma esteja presente quem não desfruta do estatuto de juiz. Por isso, não posso deixar de anotar que dou, na generalidade, o meu acordo ao que se contém nos pontos 3, 4 e
5 da declaração de voto aposta ao presente aresto pelo Exmº Conselheiro Artur Maurício, só não concordando, como é óbvio, com o sentido de voto deixado expresso naquela declaração) Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto). Artur Maurício (vencido nos termos da declaração que junto) Messias Bento (vencido nos termos da declaração de voto que junto) José Manuel Cardoso da Costa (Pesem as reservas que em alguns dos seus aspectos, mormente em alguns dos seus desenvolvimentos argumentativos, me possa suscitar a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, com que se abona o precedente acórdão, no respeitante à questão da conformidade constitucional do artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, não deixei de acompanhar a decisão também nessa parte: na verdade, e quanto a essa específica e precisa norma, não encontrei razões suficientemente fortes para dissentir do juízo maioritário do Tribunal). DECLARAÇÃO DE VOTO
1. - Acompanhei a posição do acórdão e votei a respectiva decisão quanto à delimitação do objecto do recurso e quanto às normas do artigo 76º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (LPTA) e do artigo 17º, n.º1, alínea g), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei n.º 10/94, de 5 de Maio.
Porém, divergi quanto a solução dada à questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 15º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (LPTA).
2. - No projecto de acórdão que apresentei na secção e que depois veio a ser decidido no Plenário, limitei-me a formular uma rápida síntese das razões dessa divergência, sem procurar fazer uma apreciação mais detalhada da jurisprudência fundamentadora de tal posição, no essencial oriunda do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e que tinha sido citada no Acórdão n.º
345/97 e agora foi tratada mais desenvolvidamente.
Vejamos, em primeiro lugar, a norma em si.
O preceito em causa foi alterado pelo Decreto-Lei n.º
229/96, de 29 de Novembro, como vem referido, tendo ficado com a seguinte redacção:
'No Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal Central Administrativo o representante do Ministério Público a quem, no processo, esteja confiada a defesa da legalidade assiste às sessões de julgamento e é ouvido na discussão.'
3. - Considera o recorrente que esta norma viola o disposto nos artigos 202º, n.º2, 203º e 219º, n.ºs 1 e 2, da Constituição, na medida em que permite que o representante do Ministério Público intervenha na sessão, chegando a assinar o acórdão, sem que o recorrente estivesse presente ou tivesse sido ouvido, o que gera inconstitucionalidade por inexistência de um processo equitativo.
Esta questão já foi tratada no Acórdão n.º 345/99, no sentido da sua inconstitucionalidade.
Discordando desta posição, entende-se que o artigo 15º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, não sofre de qualquer inconstitucionalidade.
Vejamos.
O acórdão recorrido decidiu que o referido artigo 15º - que impõe ao Ministério Público que 'assista às sessões de julgamento, sendo ouvido na discussão, quando lhe esteja confiada a defesa da legalidade, isto é, sempre que não represente os interesses de qualquer dos intervenientes no processo' - não viola nenhuma daquelas normas constitucionais, 'porquanto não perturba a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos do requerente ou a decisão do conflito de interesses que se suscitam, e até favorece a defesa da legalidade democrática, tal como, de resto, lhe é imposto pelo n.º1 do artigo 219º da Constituição. Além disso, a presença do Ministério Público na sessão de julgamento em nada afecta a independência do Tribunal, apenas sujeito, como está, ao imperativo da lei'.
Torna-se indispensável salientar que a posição constante do meu voto de vencido segue de perto o texto do voto de vencido que, quanto a esta matéria, o Conselheiro Messias Bento elaborou para o Acórdão n.º 345/99.
Na jurisdição administrativa (recurso contencioso de anulação), Ministério Público tem legitimidade para interpor recursos de anulação de quaisquer actos administrativos [cf. artigo 46º, n.º 2, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º 41.234, de 20 de Agosto de 1957)]. E, quando não seja o recorrente, tem o poder de suscitar a regularização da petição, excepções, nulidades e quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso, e pronunciar-se sobre questões que não tenha suscitado; promover diligências de instrução; emitir parecer sobre a decisão final a proferir; arguir vícios não invocados pelo recorrente; e requerer, assumindo a posição de recorrente, o prosseguimento de recurso interposto durante o prazo em que podia impugnar o respectivo acto, para julgamento não abrangido em decisão, ainda não transitada, que tenha posto termo ao recurso por desistência ou outro fundamento impeditivo do conhecimento do seu objecto [cf. artigo 27º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º
267/85, de 16 de Julho)]. Para este efeito, o Ministério Público - para além de poder fazer requerimentos no processo (cf. o citado artigo 27º) - tem vista dos autos, inicialmente, logo que feito o preparo (cf. artigo 42º da citada Lei de Processo), e, mais tarde, depois de apresentadas as alegações ou de findo o respectivo prazo (cf. artigo 53º da mesma Lei). Além disso, quando o recorrido ou o próprio relator suscitem a questão prévia do não conhecimento do recurso, o Ministério Público é ouvido sobre essa questão (cf. artigo 54º da referida Lei de Processo). Tudo isto, obviamente, com vista à defesa da legalidade, que é uma das funções que a Constituição lhe comete, no artigo 219º, n.º 1: 'Ao Ministério Público diz-se nesse preceito - compete [..], nos termos da lei [..], defender a legalidade democrática'. A finalidade da norma do artigo 15º da LPTA que impõe ao Ministério Público que assista às sessões de julgamento e ai seja 'ouvido na discussão' é, como na própria norma se refere, defender a legalidade democrática. Não se vê, por isso, como é que tal norma pode violar o artigo 219º, nºs 1 e 2, da Constituição.
Mas, sempre que o Ministério Público não é parte no recurso, a utilização do artigo 15º viola os artigos 202º, n.º 2 e 203º da Constituição?
A primeira norma dispõe que 'na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e provados', e o artigo 203º da mesma Lei Fundamental, estabelece que 'os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei'. Ora, o Ministério Público embora assista à sessão do tribunal, não intervém no julgamento do recurso. Limita-se a assistir e a dar parecer sobre o caso, o qual
'não tem, nem por força da lei, nem por tradição, uma influência na sentença ou um papel informativo semelhante às conclusões do 'avocat général' junto do
'Conseil d'État' francês (ou também do advogado geral junto do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia)' [cf. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, in A Justiça Administrativa (Lições), Coimbra, 1998, página 1951. O seu papel é, assim, o de um conselheiro imparcial, assemelhando-se ao de um amícus curiae. Por isso, ao dar o seu parecer, o Ministério Público não invade a reserva do juiz, a quem cabe dizer o direito do caso, com independência e imparcialidade. E tão-pouco atinge ou põe em perigo a independência dos tribunais, pois, não sendo parte no processo e agindo com 'vinculação a critérios de legalidade e objectividade' (cf. artigo 2º, n.º2, do Estatuto do Ministério Público, republicado em anexo à Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto), o seu parecer é uma opinião desinteressada, que apenas visa o triunfo da justiça. O artigo 15º aqui em questão, também não viola o artigo 20º, n.º 4, da Constituição.
Esta disposição determina que 'Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.'
Muito embora seja certo que, no processo de um Estado de Direito, as aparências têm a sua importância [sobre esta questão, cf. a sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 30 de Outubro de 1991 (caso Borgers versus Bélgica), publicado em Novos Estilos, n.º 5, Maio de 1994, página
104 e seguintes), e mais recentemente, a sentença do mesmo Tribunal, de 20 de Fevereiro de 1996 (caso Lobo Machado versus Portugal)], a intervenção do Ministério Público de que ora se trata, nos recursos contenciosos de anulação em que não seja parte, não o transforma, consoante dê parecer favorável ou desfavorável às teses defendidas pelo recorrente, em seu aliado ou adversário objectivo, por forma a ser necessário dar a este oportunidade de defesa, sob pena de o julgamento deixar de ser um julgamento justo e leal (a faír tríal, por ficar comprometida a independência do tribunal. Na verdade, o recurso é julgado apenas pelos juizes que compõem a respectiva subsecção: o juiz relator e os dois juizes adjuntos [cf. artigo 27º, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei n0 129/84, de 27 de Abril]. E estes decidem sem outra obediência que não seja à lei e aos ditames da sua consciência, tendo, inclusive, a possibilidade de lavrar voto de vencido. O processo não deixa de ser equitativo 'pelo facto de o Ministério Público, que não é parte no processo, assistir à respectiva audiência de julgamento, e de, aí, emitir parecer sobre o caso - parecer que até pode ser favorável ao recorrente. As exigências de transparência não podem ser levadas ao ponto de sobreporem as aparências ( a simples possibilidade de violação do contraditório) às vantagens da intervenção do Ministério Público como defensor da legalidade.
De facto, pese, embora, o já assinalado valor das aparências - (é, com efeito, sabido que, a mais do que fazer justiça, é preciso que pareça que justiça foi feita) - há casos em que se torna necessário romper com as puras aparências e pôr a nu a realidade que elas escondem. E a realidade
é esta: a presença do Ministério Público na audiência de julgamento do recurso contencioso de anulação contribui, não poucas vezes, para que os direitos e interesses dos particulares sejam devidamente acautelados. Não reconhecer isto é correr o risco de se ficar inteiramente dominado pela tirania das aparências.
Com efeito, a presença do representante do Ministério Público nas sessões quando não representa qualquer parte, não constitui nenhum atentado ao processo equitativo nem à igualdade de armas entre as partes, uma vez que a teoria da aparência apenas releva quando os receios de parcialidade são objectivamente justificados, o que não sucede no caso.
O facto de o julgador ter ocasião de ouvir uma reflexão independente de um magistrado, embora inserido numa carreira hierárquica, mas autónomo e apenas para defesa da legalidade, isto é, com a finalidade de preservar a unidade da jurisprudência e de a fazer evoluir no sentido do progresso social, não pode afectar, de forma objectivamente justificável a aparência de imparcialidade e menos ainda a imparcialidade do tribunal.
É certo que o acórdão em análise deixou de referir expressamente a questão da aparência, centrando-se agora na questão do modo e do momento da intervenção do Ministério Público. Decisivo é o facto de tal intervenção se processar por forma que as partes não conhecem o seu conteúdo nem podem controlar, designadamente por não estarem presentes.
Sem dúvida que num processo que seja estruturado integralmente no conceito de «partes», compreende-se que o processo equitativo imponha que o princípio do contraditório seja levado ás últimas consequências. Isto é: cada parte deve, em princípio, ter a possibilidade de conhecer os elementos que são necessários ao êxito da sua pretensão como também ter a possibilidade de tomar conhecimento e de discutir todas os articulados e requerimentos apresentados com vista a influenciar a decisão do juiz.
Parece-nos ser esta, aliás, a essência da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades, em continuação da do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de Strasburgo.
Porém, o processo administrativo não é exactamente um processo de «partes»: em regra, trata-se de questões entre os administrados e a Administração Pública, que, na sua actuação, está constitucionalmente obrigada a orientar-se pelo respeito dos princípios da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e da boa fé (artigo 266º, nº2, da Constituição).
A intervenção do Ministério Público em todo o desenrolar do processo contencioso administrativo – que está aqui em causa – designadamente, a que vem questionada na audiência de julgamento insere-se na perspectiva de intervenção de um representante de uma entidade autónoma, cuja presença releva apenas da defesa do direito e da legalidade. Não pode, assim, transferir-se para este tipo de processo a suspeição susceptível de surgir no processo civil, em que o Ministério Público se torna objectivamente aliado de uma das partes ao elaborar um qualquer parecer no decurso do processo.
A teoria das aparências não pode ultrapassar – por maior que seja o sue relevo subjectivo – a realidade efectiva da realização da justiça.
Por outro lado, parece-me claro que não pode ser a presença do representante do Ministério Público na audiência ou uma sua intervenção que impede o colectivo de juizes de deliberarem sobre a melhor solução para o caso.
Assim, teria concluído que a norma em causa não é inconstitucional. Vítor Nunes de Almeida
Declaração de voto:
Vencido, no que respeita ao julgamento de inconstitucionalidade do artigo 15º da LPTA.
1 – O último anteprojecto conhecido do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais não prevê norma semelhante à que se contém naquele preceito da LPTA e ela terá, assim, provavelmente, os dias contados.
O acórdão salienta este facto mas daí não retira expressamente qualquer efeito; a referência feita num texto que conclui pela inconstitucionalidade da norma não deixa, porém, de subentender que o juízo agora formulado antecipa as razões que provavelmente fundamentam a opção do anteprojecto.
À míngua de uma memória justificativa das soluções ali adoptadas, a demonstração não será fácil; e nem será ousado admitir-se que a opção do anteprojecto se insira numa linha redutora das intervenções processuais do Ministério Público no contencioso administrativo, com um modelo acentuadamente subjectivista, que a Constituição, em particular na sua última revisão, confortará. E, em tal medida, suposto que outras soluções de carácter misto não deixam de ser permitidas pela Constituição, no âmbito da liberdade de conformação deixada ao legislador, o facto salientado no acórdão pouco ou nada adianta.
De todo o modo, inquestionável é, para mim, que o acórdão se compreende apenas se se aceitar que a CRP impõe um modelo estritamente subjectivista do contencioso administrativo onde o MP acabará por 'estar a mais'.
2 – Uma segunda nota preliminar reporto-a à longevidade da norma que o Tribunal agora julga inconstitucional e ao sentido que, atravessando o período do nosso constitucionalismo democrático, ela inequivocamente tem.
Isto é tanto mais relevante – e importa salientá-lo para evitar o equívoco que o aresto pode gerar acentuando a nova redacção dada ao artigo 268º da CRP, na revisão de 97 – quanto o parâmetro de constitucionalidade que agora se ponderou (a norma do artigo 20º nº. 4 da CRP) não deixaria de ser o mesmo desde a versão original da CRP, pois sempre se entendeu que o texto constitucional concedia às partes, em qualquer contencioso, o direito a um processo equitativo.
Se a prolongada vigência das normas não certifica a sua constitucionalidade, a verdade é que, neste caso, ela não deixa de ser significativa da aceitação que a comunidade jurídica lhe votou. É que não estamos perante uma norma qualquer, de rara aplicação nos tribunais superiores da jurisdição administrativa – ela foi e é aplicada tantas vezes quantos os julgamentos nesses tribunais – razão por que dificilmente se justifica o silêncio de julgadores e partes perante o tão grave vício que agora o TC lhe reconhece. Esse silêncio – ouso dizê-lo – só pode compreender-se como o reconhecimento, por todos os intervenientes processuais, de que a intervenção do MP na audiência de julgamento tem representado uma inestimável contribuição para uma justiça administrativa mais ponderada e coerente, sem agravos quer para administrados, quer para a Administração.
3 – O julgamento de inconstitucionalidade do artigo 15º da LPTA lembra outros juízos recentes de sentido idêntico sobre intervenções processuais do Ministério Público: foi, primeiro, a inversão da jurisprudência do Plenário sobre o visto do MP em recurso penal com o acórdão nº. 533/99 e, depois, o acórdão nº. 345/99 a cujas conclusões o presente adere.
Ora, a meu ver, esta linha de orientação, ao pôr em causa a conformidade constitucional de normas que conferem poderes processuais ao MP, acaba por questionar os próprios sistemas ou regimes em que aquelas se inserem, onde se procura conjugar, ou equilibrar, a representação de determinados interesses ou valores que os juízos de inconstitucionalidade, com perspectivas parcelares ou redutoras, praticamente ignoram.
Isto é particularmente notório quando se trata de processos que versam matéria de direito público onde o interesse público e a legalidade objectiva assumem o maior relevo e são a razão profunda da intervenção do MP. E esta intervenção não legitima receios de enfraquecimento dos direitos dos cidadãos, tanto quanto ela emana de uma instituição que a CRP quis com estatuto próprio, de independência e autonomia face ao Executivo.
Se a defesa da legalidade e a prossecução do interesse público colocam a intervenção do MP num plano diverso daquele em que se situam as partes, é coerente que o legislador só em casos contados tenha curado de estabelecer o contraditório. O que significa que a aplicação dos princípios constitucionais relativos aos direitos processuais das partes – designadamente o do contraditório ou da igualdade de armas – sem ponderação do lugar onde ela deve ocorrer, acaba, no caso, por descaracterizar o sistema e apagar a diferença específica que representa o MP no processo. Aqueles princípios obrigariam, em todas as circunstâncias e em todos os tipos de processo, a um nivelamento absoluto das posições do MP e das partes, como se a relação processual se desenvolvesse num triângulo em que o MP representasse sempre o inimigo objectivo de alguma das partes e, por isso, sempre sujeito à sua contradição.
4 – O contencioso administrativo tinha em Portugal até à publicação do DL nº. 256-A/77 e, mais tarde, da LPTA, uma natureza essencialmente objectiva
– o recurso contencioso era um processo feito a um acto para se aferir, em primeira linha, da sua conformidade legal; só a partir daqueles diplomas se introduzem alterações que, mantendo em grande parte essa natureza objectivista, conferem ao contencioso, uma coloração subjectivista na linha para que a CRP passou a apontar (em especial, as alterações do artigo 268º).
Este tipo de contencioso, misto ou híbrido, subsiste ainda e revela-se, desde logo, na tramitação processual do recurso directo.
A questão que então se coloca é a de saber se a CRP suporta um tal tipo de contencioso ou, diferentemente, impõe um contencioso estritamente subjectivo, de partes, colocando face a face Administração e administrado na controvérsia de uma relação jurídico-administrativa e onde a própria presença do Ministério Público é questionável.
Creio que, ainda hoje, a CRP não impõe nenhum modelo puro de contencioso subjectivista. Mas, assim sendo, não posso deixar de aceitar um regime processual que decorre da opção, constitucionalmente consentida, por um modelo híbrido de contencioso administrativo.
Num mesmo processo como que coexistem dois processos imbricados: um, de partes em que, de um lado, se encontra o administrado e, no outro, a Administração em perfeita paridade e, outro, em que se encontra o MP, sem aliados ou inimigos objectivos, liberto de qualquer dependência face à Administração, que pugna e só pela defesa da legalidade e da legalização do interesse público – o MP é, nas palavras de Cappelletti ('Public interest parties and the active role of the judge in civil litigation', p. 34), citadas no voto de vencido do juiz Martens no Acórdão Borgers de 30/10/91 do TEDH, um método institucional para garantir que o interesse público esteja representado de maneira adequada.
Saliento, neste plano, alguns dos poderes conferidos no MP no recurso contencioso: (a) o requerimento de prosseguimento do recurso quando este se extingue sem conhecimento de mérito (b) a emissão de parecer final (c) a alegação de novos vícios do acto recorrido, independentemente da vontade do recorrente e que, na ordem do conhecimento dos vícios, destrói a relação de subsidariedade que o recorrente eventualmente estabeleceu (artigo 27º als. e), c) e d) da LPTA, respectivamente).
Todas estas intervenções não estão, em princípio – e, para mim, com coerência – sujeitas a contraditório; ele compreende-se apenas quando dessas intervenções resultam questões novas que podem comprometer, num sentido ou noutro, a decisão da causa.
Ora, o discurso argumentativo do acórdão, neste ponto, ignora todo o sentido profundo da intervenção do MP, no quadro das funções que a CRP e o seu próprio estatuto lhe conferem.
5 – Não deixo de assinalar que o acórdão se afasta da fundamentação que, no acórdão nº. 345/99, sustentou o mesmo juízo de inconstitucionalidade, em particular no relevo dado à 'teoria das aparências' que, aliás, não foi já seguida nos Acórdãos do TEDH Van Orshoven, Montovanelli e Huber, de 25/7/97,
18/3/97 e 18/2/97, respectivamente.
De todo o modo ele segue a jurisprudência do TEDH, relativamente ao artigo 6º § 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, enquanto nela se vem decidindo que o direito a um processo equitativo implica a faculdade para as partes de tomar conhecimento e discutir todo o elemento ou observação apresentado ao juiz, mesmo por um magistrado independente, tendo em vista influenciar a solução do caso (e foi assim que o TEDH, no caso Huber, julgou violado o direito a um processo equitativo por a parte não ter sido ouvida sobre as observações que o tribunal recorrido entendera fazer em sustentação da decisão impugnada, mesmo admitindo que essas observações nada adiantassem àquela decisão). Pese o respeito devido à jurisprudência do TEDH não posso aceitar o que se afigura ser um excesso, que transfigura o próprio tribunal em parte no recurso (v. voto dissidente de Gaukur Jörundsson, na Comissão).
Não discuto que uma tal jurisprudência apoia o que agora se decidiu, mas é legítimo a um tribunal independente de um Estado soberano não a seguir quando lhe reconhece um sentido, no mínimo, controverso.
6 – Não queria, por fim, deixar de assinalar que a presença do Ministério Público no lugar e no momento da decisão em nada afecta a liberdade, a independência, a isenção e ponderação do julgador. Aliás, a longa experiência do signatário primeiro, como Ministério Público, depois como Juiz no Supremo Tribunal Administrativo não lhe legitimaria a mínima dúvida a este respeito.
7 – Em suma, considerando que: a. Na sessão de julgamento não está presente nenhuma das verdadeiras partes no processo – recorrente e Administração; b. A opinião expressa pelo MP é de estrita legalidade e emitida com independência e objectividade, podendo ser no sentido do provimento ou do improvimento do recurso; c. Essa opinião – o mais das vezes repetindo o parecer final escrito que foi emitido sem contraditório – é proferida depois de as partes terem disposto das oportunidades suficientes para se pronunciarem sobre o mérito da causa; d. O MP funciona como órgão auxiliar de justiça, como 'amicus curiae', permitindo ao julgador uma reflexão mais esclarecida das razões expostas e uma decisão melhor ponderada; e. A influência provocada nestes termos e por aquela entidade no julgamento não é reprovada pela nossa ordem constitucional; só o seria se fizesse perigar a liberdade e imparcialidade do julgamento o que sempre foi afastado pela própria jurisprudência do TEDH. f. Um processo não deixa de ser equitativo quando as partes não são ouvidas sobre um parecer do MP que não suscita questões novas no processo e apenas visa a defesa da legalidade; g. A independência dos tribunais não é afectada pela presença do MP no julgamento, facto que o Acórdão nº. 345/99 e a jurisprudência do TEDH reconhecem; voto no sentido da não inconstitucionalidade do artigo 15º da LPTA. Artur Maurício DECLARAÇÃO DE VOTO: Votei vencido quanto à alínea c) da decisão, pelas razões que expus na declaração de voto que apus ao acórdão nº 345/99 (citado no texto) e que se transcrevem: O artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, está assim redigido: No Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal Central Administrativo o representante do Ministério Público a quem, no processo, esteja confiada a defesa da legalidade assiste às sessões de julgamento e é ouvido na discussão.
Pretende o recorrente que esta norma viola o disposto nos artigos 202º, n.º 2,
203º, e 219º, nºs 1 e 2, da Constituição, uma vez que permitiu ao agente do Ministério Público intervir 'na sessão em que foi resolvido indeferir o pedido do recorrente, desacompanhado deste, chegando a apor a sua assinatura no acto jurisdicional, pelo que o agente em causa vem configurado como juiz'. O acórdão recorrido decidiu que o referido artigo 15º - que impõe ao Ministério Público que 'assista às sessões de julgamento, sendo ouvido na discussão, quando lhe ‘esteja confiada a defesa da legalidade’, isto é, sempre que não represente os interesses de qualquer dos intervenientes no processo' - não viola nenhuma daquelas normas constitucionais, 'porquanto não perturba a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos do requerente ou a decisão do conflito de interesses que se suscitam, e até favorece a defesa da legalidade democrática, tal como, de resto, lhe é imposto pelo n.º 1 do artigo 219º da Constituição. Além disso, a presença do Ministério Público na sessão de julgamento em nada afecta a independência do Tribunal, apenas sujeito, como está, ao imperativo da lei'.
Vejamos, então:
No que toca ao núcleo tradicionalmente central da justiça administrativa, que é o recurso contencioso, o Ministério Público tem legitimidade para interpor recursos de anulação de quaisquer actos administrativos [ cf. artigo 46º, n.º 2, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º 41.234, de 20 de Agosto de 1957)]. E, quando não seja o recorrente, tem o poder de suscitar a regularização da petição, excepções, nulidades e quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso, e pronunciar-se sobre questões que não tenha suscitado; promover diligências de instrução; emitir parecer sobre a decisão final a proferir; arguir vícios não invocados pelo recorrente; e requerer, assumindo a posição de recorrente, o prosseguimento de recurso interposto durante o prazo em que podia impugnar o respectivo acto, para julgamento não abrangido em decisão, ainda não transitada, que tenha posto termo ao recurso por desistência ou outro fundamento impeditivo do conhecimento do seu objecto [ cf. artigo 27º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º
267/85, de 16 de Julho)] . Para este efeito, o Ministério Público - para além de poder fazer requerimentos no processo (cf. o citado artigo 27º) - tem vista dos autos, inicialmente, logo que feito o preparo (cf. artigo 42º da citada Lei de Processo), e, mais tarde, depois de apresentadas as alegações ou de findo o respectivo prazo (cf. artigo 53º da mesma Lei). Além disso, quando o recorrido ou o próprio relator suscitem a questão prévia do não conhecimento do recurso, o Ministério Público é ouvido sobre essa questão (cf. artigo 54º da referida Lei de Processo). Tudo isto, obviamente, com vista à defesa da legalidade, que é uma das funções que a Constituição lhe comete, no artigo 219º, n.º 1: 'Ao Ministério Público - diz-se nesse preceito - compete [ ...] , nos termos da lei [ ...] , defender a legalidade democrática'.
Justamente para se poder desimcumbir desse encargo constitucional de defender a legalidade democrática, é que a norma aqui sub iudicio impõe ao Ministério Público que assista às sessões de julgamento e aí seja 'ouvido na discussão'.
Não se vê, por isso, como é que tal norma pode violar o artigo 219º, nºs 1 e 2, da Constituição.
Em casos como o dos autos, em que o Ministério Público não é parte no recurso, o normativo em causa também não viola o artigo 202º, n.º 2, da Constituição - que dispõe que 'na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e provados' -, nem o artigo 203º da mesma Lei Fundamental, que prescreve que 'os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei'. Na verdade, o Ministério Público não intervém no julgamento do recurso. Limita-se a assistir à respectiva sessão e a dar parecer sobre o caso, o qual
'não tem, nem por força da lei, nem por tradição, uma influência na sentença ou um papel informativo semelhante às conclusões do ‘avocat général’ junto do
‘Conseil d’État’ francês (ou também do advogado geral junto do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia)' [ cf. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, in A Justiça Administrativa (Lições), Coimbra, 1998, página 195] . O seu papel é, assim, o de um conselheiro imparcial, assemelhando-se ao de um amicus curiae. Por isso, ao dar o seu parecer, o Ministério Público não invade a reserva do juiz, a quem cabe dizer o direito do caso, com independência e imparcialidade. E tão-pouco atinge ou põe em perigo a independência dos tribunais, pois, não sendo parte no processo e agindo com 'vinculação a critérios de legalidade e objectividade' (cf. artigo 2º, n.º 2, do Estatuto do Ministério Público, republicado em anexo à Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto), o seu parecer é uma opinião desinteressada, que apenas visa o triunfo da justiça.
Contrariamente à posição que fez vencimento, entendi que o mencionado artigo 15º também não viola o artigo 20º, nº 4, da Constituição. Muito embora seja certo que, no processo de um Estado de Direito, as aparências têm a sua importância [ sobre esta questão, cf. a sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 30 de Outubro de 1991 (caso Borgers versus Bélgica), publicada em Novos Estilos, n.º 5, Maio de 1994, página 104 e seguintes), e mais recentemente, a sentença do mesmo Tribunal, de 20 de Fevereiro de 1996 (caso Lobo Machado versus Portugal)], a intervenção do Ministério Público de que ora se trata, nos recursos contenciosos de anulação em que não seja parte, não o transforma, consoante dê parecer favorável ou desfavorável às teses defendidas pelo recorrente, em seu aliado ou adversário objectivo, por forma a ser necessário dar a este oportunidade de defesa, sob pena de o julgamento deixar de ser um julgamento justo e leal (a fair trial), por ficar comprometida a independência do tribunal.
Na verdade, o recurso é julgado apenas pelos juízes que compõem a respectiva subsecção: o juiz relator e os dois juízes adjuntos [cf. artigo 27º, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril]. E estes decidem sem outra obediência que não seja à lei e aos ditames da sua consciência, tendo, inclusivé, a possibilidade de lavrar voto de vencido.
Na minha opinião, pois, o processo não deixa de ser equitativo pelo facto de o Ministério Público, que não é parte no processo, assistir à respectiva audiência de julgamento, e de, aí, emitir parecer sobre o caso – parecer que até pode ser favorável ao recorrente. Na verdade, penso que as exigências de transparência não podem ser levadas ao ponto de sobrepor as aparências (é dizer: a simples possibilidade de violação do contraditório) às vantagens da intervenção do Ministério Público como defensor da legalidade. Pese, embora, o já assinalado valor das aparências – (é, com efeito, sabido que, a mais do que fazer justiça, é preciso que pareça que justiça foi feita) – há casos em que se torna necessário romper com as puras aparências e pôr a nu a realidade que elas escondem. E a realidade é esta: a presença do Ministério Público na audiência de julgamento do recurso contencioso de anulação contribui, não poucas vezes, para que os direitos e interesses dos particulares sejam devidamente acautelados. Não reconhecer isto é correr o risco de se ficar pelas aparências. E a caminhada, que se empreendeu em busca do processo equitativo, pode terminar num processo todo ele moldado por grandes e generosos princípios, mas onde já não são audíveis as reais necessidades de vida dos homens. Ou seja: a busca da perfeição pode desembocar num perfeccionismo desvitalizado. Messias Bento