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Proc. n.º 849/98
1ª Secção Cons. Vítor Nunes de Almeida ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: III - RELATÓRIO:
1. - C... veio interpor recurso contencioso de anulação, com efeito suspensivo, do despacho do Ministro da Saúde que indeferiu o recurso hierárquico do despacho de homologação pelo Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Coimbra (C.H.C.), de 19 de Outubro de 1992, da acta classificativa final do concurso n.º 53/91, para provimento do Chefe de Serviço de Cirurgia Geral.
Por acórdão de 13 de Fevereiro de 1996, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) decidiu conceder provimento ao recurso, por ter constatado vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto, anulando o despacho recorrido.
Assim, o acórdão em apreço anulou o despacho contenciosamente impugnado que indeferiu o recurso hierárquico interposto do acto de homologação da classificação final do concurso para provimento de um lugar de chefe de cirurgia geral do Centro hospitalar de Coimbra, que tinha graduado em primeiro lugar A..., e, em segundo lugar, C...
Para assim decidir, considerou que o vício acima referido se fundou no facto de o júri ter valorizado um elemento externo relativo ao currículo do primeiro classificado, o que não era permitido pelo regulamento do concurso e por ter omitido, relativamente ao 2º classificado, factos que deviam ser atendidos.
Notificado desta decisão, A..., veio recorrer para o Pleno da Secção do STA que, por acórdão de 18 de Fevereiro de 1998, decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Quanto à primeira questão suscitada no recurso – a da ofensa pelo acto contenciosamente impugnado de caso decidido ou caso resolvido anterior - , o Pleno entendeu que o mesmo não podia integrar o objecto do recurso jurisdicional uma vez que ele não foi abordado pela decisão da Subsecção recorrida e constituindo esta – e apenas ela e não o acto administrativo – o objecto do recurso jurisdicional, matéria estranha a tal decisão não podia ser tratada no recurso, segundo a jurisprudência constante do STA.
Quanto à convolação em erro sobre os pressupostos do vício de falta de fundamentação, escreveu-se no acórdão do Pleno:'E, se é certo que o vício que inquinou o acto administrativo é um acontecimento que se gerou no mundo dos factos mas que só adquire relevância anulatória á luz de certa norma ou princípio de direito, é também indiscutível que, de um ponto de vista processual (por força de expressa disposição de lei, o citado art. 664º do Cód. de Proc. Civil) é possível proceder oficiosamente a essas alterações sem quebra dos princípios do dispositivo ou da estabilidade da instância'.
E, mais adiante: 'O acórdão em apreço não se excedeu, pois, na pronúncia emitida, o que, a verificar-se, não violaria a norma do art.
36º, n.º1, al. d), da LPTA, antes se configuraria como nulidade da decisão prevista no art. 668º, n.º1, al. d) do Cód. de Proc. Civil', negando provimento ao recurso.
Notificado deste aresto, A... veio arguir a sua nulidade, nos termos do que se dispõe no artigo 668º, n.º1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC), por os respectivos fundamentos estarem em manifesta oposição com a decisão final. Ao arguir a nulidade, o requerente suscitou a questão da constitucionalidade da norma do artigo 668º, n.ºs 1, alínea d) e 3, do CPC, interpretada como impedindo o Pleno de apreciar, por não ser de conhecimento oficioso, uma questão colocada no recurso mas que não fora conhecida na decisão recorrida, por violação do artigo 20º, n.ºs 1 e 4, e 202º ambos da Constituição.
2. - Neste Tribunal, o recorrente apresentou alegações que concluiu pela forma seguinte:
'1ª - O Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão proferido no P. 32262, decidiu não conhecer de uma questão de direito levantada pelo recorrente Dr. António Rosete nas suas conclusões das alegações de recurso com o fundamento de que, não tendo sido a referida questão apreciada pela sentença recorrida, constituiria tal omissão de pronúncia uma nulidade e, nos termos do disposto no artº 668º n.º1 d) e 3 do C.P.Civil tal nulidade não é do conhecimento oficioso do Tribunal.
2º - Não obstante, o mesmo acórdão do Pleno indeferiu os restantes fundamentos do recurso invocados pelo recorrente Dr. António Rosete com o fundamento de que
'no tocante à qualificação jurídica dos factos invocados pelas partes, não está o Tribunal vinculado à posição por elas assumida, podendo operar com as regras de direito de forma diferente daquela que lhe vem proposta'.
3ª - A decisão do Pleno não respeita o princípio constitucional contido no n.º4 do artº 20º da Constituição: todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em processo equitativo; a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
4º - a interpretação que o Pleno fez do preceituado no artº 668º n.º1 d) e 3 do Código de Processo Civil - a nulidade de uma sentença não é do conhecimento oficioso do tribunal - viola os princípios constitucionais contidos no artº 20º, n.ºs 1 e 4, da Constituição.
5ª - É assim a norma do n.º 3 do artigo 668º do Código do Processo Civil inconstitucional enquanto fenómeno, isto é, na interpretação que concretamente se faz dela no acórdão do Pleno.'
Nas suas contra-alegações, C... não só suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso como também produziu conclusões do seguinte teor:
'1. Nos termos do n.º3 do artº 76º da Lei 28/82, na redacção da Lei nº85/89, de
7/9 deverá ser rejeitado o recurso não só por se pretender fazer apreciar uma inconstitucionalidade suscitada já depois de esgotado o poder jurisdicional do Tribunal onde foi proferida a decisão mas também porque o que se pretende é apreciar uma decisão judicial, o que está legalmente vedado nos termos do n.º1 do artigo280º da C.R.P.
2. Sem conceder, deverá ser negada a pretensão do recorrente não só porque a argumentação e razões aduzidas não correspondem à realidade processual - existência de um duplo grau de jurisdição não accionado por acção negativa
(inércia intencional) do recorrente - mas, especialmente,
3. Porque a interpretação do Acórdão do Pleno do STA, respeitando as regras contidas no artº 668 da CRP, não ofende os princípios da igualdade nem o direito de acesso aos Tribunais.'
Notificado o recorrente da questão prévia levantada pelo recorrido veio responder no sentido do prosseguimento e provimento do recurso.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
3. - Importa, antes de mais, resolver a questão prévia deduzida pelo recorrido.
O presente recurso vem interposto ao abrigo do artigo
70º, n,1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, que se refere aos recursos de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (artigo 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição).
Tal como se refere nas alegações do recorrido, o recorrente apenas suscitou a questão de inconstitucionalidade no requerimento em que arguiu a nulidade do acórdão do Pleno do STA. De acordo com a jurisprudência deste Tribunal, a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, não sendo o requerimento de arguição de nulidade um momento adequado para suscitar tal questão.
Porém, no caso dos autos, a questão de constitucionalidade tem a ver com a norma processual que fundamentou a própria arguição de nulidade, pelo que o recorrente não teve outra oportunidade para suscitar tal questão antes da referida arguição.
Com efeito, se é certo que a inconstitucionalidade que se suscita no requerimento de arguição de nulidades não é, em regra, suscitada durante o processo, assim não acontece quando a invocação da inconstitucionalidade coloca uma questão jurídica de que o tribunal recorrido ainda pode conhecer, como sucede no caso de a norma a que se imputa a inconstitucionalidade ser uma norma de natureza processual, fazendo-se decorrer da sua aplicação a nulidade invocada (cf., neste sentido, o Acórdão n.º 366/96, in 'Diário da República, IIª Série, de 10 de Maio de 1996), pelo que se tem de considerar a questão de constitucionalidade como adequadamente suscitada, isto
é, como suscitada «durante o processo», (com o sentido funcional que a jurisprudência constante do Tribunal constitucional atribui a esta expressão).
4. - Importa, todavia, apurar se, para além deste fundamento expressamente invocado, estão verificados os restantes requisitos dos recursos da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Efectivamente, quando se questiona a constitucionalidade de certa interpretação normativa há que apurar se a decisão recorrida aplicou a norma questionada com o sentido inconstitucional que o recorrente lhe atribui.
Ora, o recorrente pretende que o Tribunal aprecie a conformidade constitucional da norma que se extrai do artigo 668º, n.ºs 1, alínea d) e 3, do CPC, interpretada como impedindo o Pleno de conhecer uma dada questão não tratada na decisão recorrida sem que esta tenha sido arguida de nula, mas referida no recurso, por tal nulidade não ser de conhecimento oficioso.
Efectivamente, o recorrente delimita pela forma seguinte o âmbito do recurso: 'Ora, a norma do art.668º, n.º3, ao estipular que o recurso pode ter como fundamento qualquer dessas nulidades, e ao ser aplicada com a interpretação que lhe foi dada pela decisão do Pleno – que tal nulidade não é do conhecimento oficioso – viola os princípios constitucionais consagrados nos citados artigos 20º, n.ºs 1 e 4 e 202º da Constituição'.
Vejamos.
Os preceitos em questão têm a seguinte redacção:
'Artigo 668º Causas de nulidade da sentença
1. É nula a sentença: a)[ ...] ; d)Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
[ ...] ;
3. As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário; no caso contrário, o recurso pode ter como fundamento qualquer dessas nulidades. A nulidade prevista na alínea a) do mesmo número pode ser sempre arguida no tribunal que proferiu a sentença.
[ ...] .'
Assim, o objecto do presente recurso é a norma do artigo
668º,n.ºs 1,alínea d) e 3 do CPC, interpretada no sentido de que a nulidade de uma sentença não é de conhecimento oficioso do tribunal, pelo que o tribunal «ad quem» não a pode apreciar, a não ser que a mesma tenha sido arguida pelo recorrente no tribunal recorrido.
5. – No caso dos autos, a 2ª Subsecção do STA concedeu provimento ao recurso contencioso de anulação de despacho do Ministro da Saúde que confirmou o acto homologatório da lista classificativa final do concurso n.º53/91; o concorrente classificado em 1º lugar naquele concurso não se conformou com o assim decidido e recorreu para o Pleno da Secção, recurso interposto com base no facto de a decisão recorrida ter sido proferida em 1ª instância e não se ter pronunciado sobre a alegação de o acto administrativo impugnado ter violado o instituto do caso decidido ou caso resolvido, tendo ainda alegado outros fundamentos e invocado também a oposição de julgados.
A decisão do Pleno do STA separou as questões: a ofensa pelo acto contenciosamente impugnado do caso decidido ou caso resolvido anterior não podia constituir objecto de recurso jurisdicional por não ter sido matéria tratada na decisão da Subsecção e invocou a jurisprudência constante do STA para não conhecer do recurso, neste aspecto. Outra questão era a de saber se o acórdão da Subsecção deveria ou não ter conhecido do mencionado vício do acto impugnado.
E, quanto a este último aspecto, escreveu-se no acórdão do Pleno: 'Mas tal nulidade não foi arguida, nem no enquadramento normativo ( deficiência que sempre poderia ser oficiosamente suprida) nem no seu suporte estrutural o que decisivamente inviabiliza a sua apreciação'.
Arguida a nulidade do acórdão do Pleno do STA, escreveu-se na decisão agora directamente em recurso e que resolveu tal matéria:
'Portanto, o Tribunal absteve-se de entrar no conhecimento da questão [nulidade do acórdão da Subsecção por não ter conhecido do vício atribuído ao acto impugnado], não por falta ou deficiência da referência normativa desta figura processual (o que seria suprível como expressamente se refere), mas porque o recorrente se absteve de recortar, dentre a massa dos factos constantes dos autos, aqueles que juridicamente interessavam para integrar a pretensa nulidade'.
Tanto basta para demonstrar que não foi pelo facto de a nulidade arguida pelo recorrente não ser de conhecimento oficioso que o Pleno dela não conheceu, mas pelos motivos que indica na decisão.
Assim, é manifesto que a norma cuja constitucionalidade vem questionada não foi aplicada com o sentido inconstitucional que o recorrente lhe confere, pelo que não se verifica o requisito da sua aplicabilidade ao caso dos autos, o que inviabiliza o conhecimento do presente recurso, pelo que a questão prévia suscitada pelo recorrente tem de ser considerada procedente, ainda que por fundamentos diferentes dos invocados.
III – DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
6 unidades de conta. Lisboa, 29 de Junho de 1999 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida