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Procº 495/98 ACÓRDÃO N.º 460/99
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - R., LDA veio interpor recurso contencioso de anulação do despacho de 14 de Novembro de 1997, do Secretário Regional da Economia dos Açores que adjudicou ao Arquitecto F. o fornecimento de equipamento e mobiliário de escritório para a Delegação de Turismo da Ilha Terceira.
No Supremo Tribunal Administrativo (STA), o Procurado-Geral adjunto em exercício suscitou a questão da incompetência do referido Tribunal para conhecer do recurso, uma vez que entende ser competente, nos termos da alínea f) do artigo 40º do ETAF, a Secção de Contencioso do TCA - Tribunal Central Administrativo.
O STA, por acórdão de 2 de Abril de 1998, decidiu declarar a incompetência da Secção do Contencioso Administrativo para conhecer do recurso de anulação interposto. Para assim concluir, o STA recusou a aplicação ao caso em apreço, do preceito do artigo 68º da Lei nº 9/87, de 26 de Março, por inconstitucionalidade.
Para assim concluir, o STA estruturou da seguinte forma a respectiva fundamentação:
· os Estatutos são actos legislativos com uma competência material constitucionalmente limitada, nos termos do artigo 227º da Constituição
(redacção da Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro), existindo limites que a lei estatutária não pode ultrapassar por constituírem reserva de lei comum da Assembleia da República;
· a organização e competência dos tribunais é uma das matérias que constitui reserva de lei comum: é, assim, da exclusiva competência da Assembleia da República, a exercer através de lei ou de decreto-lei autorizado;
· com a introdução de tal matéria no estatuto das Regiões, impede-se o exercício de tal competência pelo procedimento legislativo comum;
· assim, na medida em que o artigo 68º da Lei n.º 9/87 atribui ao Supremo Tribunal Administrativo a competência para conhecer dos recursos dos actos administrativos do Governo Regional e dos seus membros excede os limites do estatuto das Regiões Autónomas;
· verifica-se assim excesso de estatuto, com a consequente inconstitucionalidade formal, por violação das regras da iniciativa legislativa dos artigos 170º e 228º, conjugadas com as dos artigos 229º e 233º;
· de acordo com o que se dispõe no artigo 40º, b), do ETAF, na redacção do DL 229/96, de 29 de Novembro, a partir de 15 de Setembro de 1997, a competência para conhecer dos recursos de actos administrativos da autoria dos governos regionais cabe à secção do contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo, pelo que se declara o STA incompetente do recurso de anulação em causa.
É desta decisão que o representante do Ministério Público junto do STA recorre obrigatoriamente, para ver apreciada a conformidade constitucional da norma constante do artigo 68º da Lei n.º 9/87, de 26 de Março
(Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores).
2. – Neste Tribunal, o Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1º - A norma constante do artigo 68º do Estatuto Político--Administrativo da Região autónoma dos Açores, constante da Lei n.º9/87, de 26 de março, ao dispor, em termos inovatórios sobre a competência contenciosa do Supremo Tribunal Administrativo, extravaza claramente o âmbito das matérias que, perante o disposto no artigo 229º da Constituição da República Portuguesa ( na redacção então em vigor), podem ser incluídas ou definidas no âmbito dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas.
2º - Na verdade, o tema da competência dos tribunais inclui-se no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, devendo tal matéria estar regulada unitariamente em relação a todo o território nacional, como decorrência do princípio da unidade do Estado.
3º - A matéria da organização e competência dos tribunais não tem a menor conexão com o interesse específico regional nem com as funções e finalidades que o n.º 2 do artigo 227º da constituição da República Portuguesa confere á autonomia das regiões, sendo absolutamente estranha aos poderes que o artigo
229º elenca relativamente a tais pessoas colectivas públicas.
4º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
Pelo seu lado, a recorrida também apresentou alegações, tendo suscitado a questão prévia da inutilidade superveniente do presente recurso e formulado as seguintes conclusões:
1- A alª b) do art. 40º do ETAF, na redacção conferida pelo DL n.º 229/96, de 29-11, atribui ao Tribunal Central Administrativo a competência para conhecer dos recursos dos actos administrativos dos governos regionais e dos seus membros.
2- A ora recorrida tomou posição sobre a questão sub judice logo quando, junto do Supremo Tribunal Administrativo, requereu a remessa do processo para o Tribunal Central Administrativo, nos termos e para os efeitos do n.º1 do artigo 4º da LPTA.
3- Encontrando-se já os autos no tribunal Constitucional, o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores passou a ter a redacção conferida pela Lei n.º61/98, de 27-8, deixando de vigorar a norma constante do artigo 68º que atribuía a Supremo Tribunal Administrativo a competência para conhecer dos actos administrativos do Governo Regional dos Açores e dos seus membros.
4- A questão de constitucionalidade aqui em apreço, tornou-se supervenientemente inútil.
5- Devem, assim, os autos ser remetidos para o Tribunal Central Administrativo.”
Na resposta à questão prévia assim suscitada pela recorrida, o Ministério Público veio dizer aos autos que “a circunstância de a norma desaplicada ter sido, entretanto, revogada pela Lei n.º 61/98, de 27 de Agosto – em momento anterior á prolação da decisão impugnada – não contende, a nosso ver, com a utilidade do presente recurso.”
Com efeito, como se trata de um recurso de fiscalização concreta da alínea a) do n.º1 do artigo 70 da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), os respectivos “pressupostos e utilidade têm de ser apreciados face ao teor da decisão recorrida e perante o quadro normativo vigente à data em que foi proferida”. E, como está em causa uma questão relativa à competência dos tribunais, que se fixa no início da causa, as modificações posteriores de natureza jurídica são irrelevantes.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS:
3. – Importa resolver a questão prévia suscitada: enquanto a recorrida considera que, com a revogação da norma do artigo 68º, da Lei n.º9/87, de 26 de Março, a questão de constitucionalidade levantada nos autos se tornou supervenientemente inútil, devendo os autos ser remetidos ao Tribunal Central Administrativo, o recorrente entende que tratando-se de uma norma atribuidora de competência aos tribunais, a qual se fixa com o início da causa e, tratando-se de um processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, a sua utilidade tem de ser definida face á decisão recorrida e de acordo com o quadro normativo vigente no momento em que foi proferida, sendo irrelevantes as alterações de natureza jurídica posteriores.
A questão prévia suscitada tem de ser desatendida.
Com efeito, no recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade da alínea a) do n.º1 do artigo 70º da LTC, em que se recusa a aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, o recurso de constitucionalidade não perde a sua utilidade pela revogação da norma recusada. Desde logo, como refere o Ministério Público, a utilidade do recurso tem de ser apreciada à face do quadro normativo em vigor na data em que a decisão recorrida foi proferida: de facto, o efeito útil do recurso de constitucionalidade será o de confirmar ou infirmar a recusa de aplicação normativa e este efeito só tem relevo dentro do quadro normativo que enquadrou a decisão recorrida.
Depois, tratando-se de uma questão relativa á competência dos tribunais e fixando-se esta no momento em que a acção ou recurso é proposto, as alterações jurídicas posteriores não seriam relevantes para o caso, pelo que sempre terá utilidade o recurso de constitucionalidade: a sua apreciação pelo Tribunal exclusivamente competente para julgar as questões de constitucionalidade tornará definitivo o sentido do julgamento da questão suscitada.
Inexiste, assim, fundamento para considerar que o recurso se tornou supervenientemente inútil, pelo que se desatende a questão prévia suscitada.
4. – Quanto ao mérito, importa considerar que a questão de constitucionalidade suscitada tem a ver com a organização e competência dos tribunais administrativos e fiscais.
Na verdade, na versão do Estatuto Político-Administrativo dos Açores (E P A A) constante da Lei n.º 9/87, de 29 de Março, o artigo 68º estabelecia que
“dos actos administrativos definitivos e executórios do Governo Regional e dos seus membros caberá recurso para o Supremo Tribunal Administrativo”.
Esta disposição coincidia com a versão do ETAF – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então vigente – Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção da Lei n.º 4/86, de 21 de Março e da Lei n.º 46/91, de 3 de Agosto, em que o artigo 26º, n.º1, alínea f), atribuía também ao Supremo Tribunal Administrativo a mesma competência.
Porém, com a reforma da jurisdição administrativa resultante da Lei n.º
49/96, de 4 de Setembro e do Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, a competência para conhecer dos recursos contenciosos dos actos administrativos do Governo Regional e dos seus membros passou a pertencer à Secção do Contencioso do Tribunal Central Administrativo, por força do preceituado no artigo 40º, alínea b), do ETAF, na redacção daquele diploma.
O Tribunal Central Administrativo encontrava-se em funcionamento desde
15 de Setembro de 1997, por força do artigo 5º, nº 1, daquele Decreto-Lei e da Portaria nº 398/97, de 18 de Junho, portanto já à data da interposição do recurso que foi endereçado ao Supremo Tribunal Administrativo.
A referida redacção do artigo 68º do EPAA manteve-se em vigor até à Lei n.º
61/98, de 27 de Agosto, que revogou tal norma. O acórdão recorrido, proferido em
2 de Abril de 1998, detectou a colisão entre o ETAF e o EPAA. Conforme nele se pode ler '(...)seria prematuro afirmar, sem qualquer interrogação, que a competência para conhecer do acto recorrido passou para o TCA por força da recente reforma da organização e competências dos tribunais administrativos. Para aí chegar é necessário recusar aplicação ao artigo 68º do Estatuto ou, por qualquer outra via metodologicamente válida, afastar o seu comando aparente.'
(fls. 59-60). A solução adoptada foi no sentido de 'declarar a incompetência da Secção do Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal (pelas subsecções) para conhecer do presente recurso contencioso de anulação', tendo sido expressamente afastada a aplicação da norma estatutária, com fundamento na sua inconstitucionalidade formal ('afigura-se-nos que essa desconformidade
[refere-se a decisão a um juízo anterior segundo o qual a norma 'excede os limites que resultam da função constitucional do estatuto das regiões autónomas'] gera inconstitucionalidade formal' (fls. 63).
Desta forma, a decisão recorrida recusou expressamente a aplicação da norma estatutária com fundamento na sua inconstitucionalidade.
O objecto do presente recurso é pois a questão de constitucionalidade do referido artigo 68º do EPAA (na redacção da Lei n.º 9/87, de 26 de Março)
5. - Conforme se assinala no acórdão recorrido, 'o problema que se coloca é o do
âmbito normativo do estatuto das regiões autónomas, ou seja, o que deve entender-se como estatutário por natureza' e pode admitir-se que haja efectivamente alguma delicadeza de ordem dogmática na questão. Contudo, sobre a matéria em geral já este Tribunal se tem pronunciado. Fê-lo mais recentemente no Acórdão n.º 637/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 32º, pág. 139 e segs., no sentido de considerar inconstitucional legislação regional emitida ao abrigo de remissão para ela feita contida em norma estatutária, mas sobre matéria cujo tratamento jurídico substancial deveria ter tido sede nos próprios estatutos. No caso agora em apreciação a situação é inversa, pois está em causa uma norma que alegadamente não cabe na reserva de estatuto.
É ponto firme que a Constituição assina aos estatutos regionais uma matéria específica que genericamente se circunscreve ao desenvolvimento, explicitação e concretizarão das normas contidas no Título da Parte III da Constituição, com a epígrafe 'Regiões Autónomas' (trata-se do Título VII, na vigente redacção da Lei Fundamental, sendo o Título VI na redacção vigente à data da emanação da norma questionada), mais precisamente incluindo '...as atribuições das Regiões Autónomas, a sua definição relativamente a outras pessoas colectivas territoriais, formação, composição e competência dos órgãos e respectivos titulares', conforme se lê no acórdão em apreciação. Consequentemente, a matéria que não couber nesse âmbito não deverá ser incluída nos estatutos, porque será de considerar como objecto de norma não estatutária, a dimanar dos competentes
órgãos regionais ou de soberania, segundo couber ao caso.
Por outro lado, é inequívoco que determinar qual a instância jurisdicional competente para conhecer de recursos contenciosos de actos praticados pelo Governo Regional ou pelos seus membros significa legislar sobre competência dos tribunais, sobre a respectiva competência territorial e segundo a hierarquia. Trata-se de matéria a que a Constituição se refere ao delimitar a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República - alínea q) do nº l do artigo 168º, ao tempo vigente, agora alínea p) do nº l do artigo 165º.
Finalmente, merece plena concordância o entendimento sustentado no acórdão recorrido de que esta última matéria não é matéria coberta pela reserva estatutária, nem sequer por conexão com especificidades ou aspectos organizatórios das regiões. Para além do facto de que nenhuma referência é feita a tribunais no título que a Constituição dedica às regiões autónomas, há sobretudo que referir aqui que órgãos de soberania, como são os tribunais, não poderão em caso algum ser qualificados como elementos organizatórios das regiões, para o efeito de, sobre a respectiva competência, poder incidir normação estatutária. Designadamente, não poderão ser englobados na administração regional, cuja organização, nos termos da alínea n) do vigente artigo 228º da Constituição, é matéria de interesse específico.
Isto posto, é certo que os estatutos das regiões autónomas constituem conteúdo de lei da competência de um órgão de soberania, tal como a mesma natureza formal têm as normas que regulam a competência dos tribunais. Mas, apesar desta característica comum, o facto de a Constituição, em sede de repartição de competências legislativas entre a Assembleia da República e o Governo ter distinguido entre aprovação dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas - alínea b) do artigo 164º (agora alínea b) do artigo l6lº) - e organização e competência dos tribunais, é desde logo indiciador de alguma separação de competências ou âmbitos materiais.
Na verdade, o regime que a Constituição confere
às normas cuja sede própria devam ser os estatutos, permite autonomizar o respectivo acto de aprovação de entre o conjunto dos actos legislativos, reconhecendo à respectiva fonte ou acto de produção constitucionalmente tipificado uma competência própria: os estatutos, as leis de aprovação dos estatutos, são actos cujo âmbito material só poderá ser aquele que lhe é atribuído pela Constituição e, paralelamente, o respectivo procedimento legislativo está sujeito a regime diferenciado, no que diz respeito à iniciativa legislativa e à discussão e deliberação final (artigo 228º, actual artigo 226º, da Constituição), além de que a sua violação por outros actos legislativos que não obedeçam aos mesmos requisitos de conteúdo e de forma determina a ilegalidade destes (artigos 280º e 281º, da Constituição).
Com imediata relevância para o caso em análise, resulta do que se disse que os estatutos se subtraem ao regime regra dos actos legislativos, consignado na primeira parte do nº 2 do artigo 115º da Constituição (agora artigo ll2º) , que se traduz na mútua revogabilidade de todos eles, como que introduzindo no fluxo legislativo do dia a dia uma solução de continuidade entre os estatutos e todos e cada um dos restantes actos legislativos, incluindo aí os actos legislativos regionais. Essa interrupção traduz-se, no caso dos estatutos, em vinculações tanto de conteúdo como formais, impostas ao legislador tanto ordinário, como reforçado. Para que o regime regra de comunicabilidade com mútua revogabilidade não seja subvertido, essas vinculações ou condicionamentos têm de ter limites, cuja extensão tem a precisa medida que vier a ser consentida pela Constituição. No caso, essa medida é aquela que corresponde à reserva de estatuto, ou seja à matéria que, de acordo com a Constituição, independentemente do que estiver disposto nos estatutos, puder ser objecto de fonte estatutária.
Revertendo às circunstâncias do caso, importa considerar que a norma que, em determinada altura, foi introduzida no Estatuto dos Açores e que remetia os recorrentes para o Supremo Tribunal Administrativo, enquanto esteve em vigor, embora não sendo objecto admissível de reserva de estatuto, pôde legitimamente ser interpretada como foi, isto é, ser interpretada no sentido de, pelo menos, obstar à aplicabilidade do artigo 40º, alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro.
Em face do que precede, estão reunidos os elementos necessários para concluir que a norma sobre a determinação da instância da jurisdição administrativa competente para conhecer de recurso contencioso de acto praticado por um membro do Governo Regional contida no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores - artigo 68º da Lei nº 9/87, de 26 de Março - não respeita os limites do âmbito da matéria que, como resulta do Título VII da Parte III da Constituição, pode e deve ser objecto do acto legislativo a que cabe a denominação de estatuto político-administrativo de uma Região Autónoma.
6. – Estamos, em consequência, perante uma norma em excedência de Estatuto. Ao incluir essa norma, sem mais, em diploma que teve o tratamento procedimental de Estatuto de Região Autónoma, o legislador qualificou-a erradamente como norma estatutária. A esse título, ter-lhe-á conferido valor ou força formalmente superior ao de norma incluída em acto legislativo comum, que seria efectivamente o apropriado atendendo à matéria tratada, sendo que, nos termos gerais, o legislador comum sucessivo, que venha a dispor em contrário, poderá incorrer em ilegalidade.
A temática do chamado “excesso de estatuto” não é estranha à jurisprudência constitucional. No Acórdão n.º 1/91, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 18º vol., págs. 7 e segs., foi o Tribunal chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de normas contidas em Decreto da Assembleia da República de aprovação dos Estatutos da Região Autónoma da Madeira, que regulavam matéria de direito eleitoral, designadamente número de deputados a eleger por círculo eleitoral e capacidade eleitoral activa.
Previamente foi colocada nesse Acórdão a questão de “saber se o regime eleitoral regional pode integrar os estatutos das regiões autónomas...”, acabando por lhe ser dada uma resposta, que alguns considerarão evasiva, em sentido implicitamente afirmativo: “...a afirmação da possibilidade dos estatutos integrarem normas versando matéria eleitoral não implica necessariamente uma identidade de força jurídica e de aprovação e alteração. Mas a resposta a este problema já não tem aqui oportunidade”. Quer dizer: por um lado, as normas respeitantes ao regime eleitoral contidas em estatutos não terão
“necessariamente” que ser aprovadas e alteradas nos termos da tramitação estatutária e não terão “necessariamente” a força jurídica própria dos estatutos; por outro lado, a apreciação da conformidade constitucional das normas questionadas foi toda ela conduzida sem tomar por parâmetro de validade as normas constitucionais com base nas quais se poderia apurar o âmbito das matérias estatutárias, tanto assim que o Tribunal acabou por se pronunciar pela não inconstitucionalidade de algumas das normas cuja apreciação tinha sido requerida. Em declaração de voto, o Conselheiro António Vitorino não deixou de tecer considerações sobre a questão, manifestando-se no sentido de que à mesma
“o Tribunal deveria ter dedicado maior atenção” (cfr. loc. cit., pag. 40).
Como quer que seja, embora sem expressamente se pronunciar pela não inconstitucionalidade da opção legislativa então tomada de tratar matéria não estatutária em lei com a dignidade formalmente acrescida de Estatuto de Região Autónoma, o Tribunal não moveu censuras de inconstitucionalidade à inclusão em leis desse tipo de normas sobre matéria que, pelo menos a uma primeira vista, não seria própria de lei estatutária.
A verdade porém é que ao Tribunal Constitucional nunca se deparou uma situação com os precisos contornos do caso agora em apreciação.
7. - Entre nós a doutrina mais recente vem debatendo a questão do “excesso de estatuto” em sentido que não tendo sido sempre inteiramente coincidente se vai aproximando. Assim, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra, 1993, pag. 847, nota V ao artigo 228º, referem que “a inserção no estatuto de matérias alheias ao âmbito material estatutário [....] implica inconstitucionalidade formal – excesso de estatuto – de modo que nessas áreas as normas constitucionais não compartilham da natureza de lei reforçada, podendo ser livremente substituídas por lei comum da República, ou lei regional, conforme os casos”. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, T. V – Actividade Constitucional do Estado, Coimbra,
1997, pág. 364 a 368, alarga a perspectiva às leis reforçadas em geral e sublinha que “a qualificação de uma lei como reforçada não depende da qualificação que o legislador lhe confira” sendo que “as disposições inseridas numa lei reforçada fora do seu objecto ou sem conexão objectiva ou estruturante com ele, [...] não poderão beneficiar da consistência e da protecção inerentes
às restantes disposições”. O excesso de forma, para este autor, gerará situações de mera irrelevância. Na óptica que adopta, a irrelevância consistirá na natureza não vinculativa para o legislador futuro da errada qualificação a que tenha procedido o legislador reforçado, com a consequência de que “O Parlamento agirá como tal, simplesmente legislando, por sua conta e risco – sobre eleições, como sobre qualquer outra matéria – e quem irá decidir, em última análise, da constitucionalidade e da legalidade de todas as normas será o Tribunal Constitucional”. Carlos Blanco de Morais, que alude a “enclaves de direito legislativo comum nas leis reforçadas pelo procedimento”, porém, considera inconstitucional por excesso de forma a “lei reforçada silente que fora do pressuposto da conexão objectiva disponha sobre matérias da reserva comum”, sendo que “qualquer lei ordinária comum que procure, unilateralmente, recuperar o hipotético espaço subtraído à reserva correspondente, através da derrogação de normas insertas na lei reforçada que estime como ilegítimas, será ilegal, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 281º” (cfr. As leis reforçadas – As leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre actos legislativos, Coimbra, 1998, pág. 927).
A doutrina que defende a tese da irrelevância preocupa-se, certamente, com as consequências da adopção de um entendimento que privilegie exclusivamente os elementos estritamente formais, só por si, sem ter em conta os valores que, nestas situações, se pretende que sejam tutelados. O legislador reforçado, sob o manto de qualificações não mais que formais, porque externas ao conteúdo do acto legislativo e portanto desprovidas de correspondência objectiva ou material com este, a coberto de formas e procedimentos agravados, introduziria no ordenamento factores de rigidificação que se poderiam vir a mostrar desadequados, tanto do ponto de vista material, face à menor relevância dos temas ilegitimamente abrangidos, como do ponto de vista temporal, perante exigências de resposta legislativa pronta, quer por parte do Governo, quer por parte dos restantes
órgãos legislativos. E é preciso ter em conta que o regime geral não é o do valor reforçado da lei. Pelo contrário, o regime regra é o da não especificação das matérias que podem ser objecto de lei comum, enquanto, em geral, as leis são reforçadas atendendo às matérias que a Constituição expressamente especifica como devendo delas ser objecto.
8. - O caso em apreciação é em absoluto paradigmático. De um lado temos uma norma contida em Estatuto Regional sobre matéria que extravasa do âmbito da matéria estatutária. Do outro lado, contrastando com ela, uma norma contida em lei sucessiva, que não é objecto do presente recurso, mas que aparentemente se apresenta em conformidade com a Constituição. Um entendimento que privilegiasse a pura forma concluiria pela inconstitucionalidade da norma estatutária e pela ilegalidade da norma posterior, contrária ao estatuto.
É legítimo porém conciliar a tutela dos valores que a forma protege com os valores já referidos da fluidez do ordenamento, do ponto de vista da dinâmica das fontes de direito. Bem vistas as coisas, o legislador não estatutário, sucessivo, não pode considerar-se vinculado a normas estatutárias materialmente alheias aos estatutos: a estas normas não pode reconhecer-se um valor formal agravado. Não incorrerá portanto em ilegalidade se dispuser em contrário.
Nesta conformidade, a validade da norma editada pelo legislador sucessivo bem como a sua aplicabilidade, atendendo à matéria sobre que versa, podem e devem aferir-se em confronto directo com a Constituição. Trata-se de um juízo que não passa pela mediação da norma estatutária interposta, a qual não é fundamento nem limite da norma em causa, dizendo por outras palavras mas acompanhando a redacção do n.º 3 do artigo 112º da Constituição, não é, por força da Constituição, pressuposto normativo necessário de outras leis ou que deva ser respeitada por outras.
Mas se assim é, se a norma incluída no Estatuto e aqui questionada não vincula o legislador competente para regular a organização e competência dos tribunais
(alínea q) n.º 1 do artigo 168º, a que corresponde agora a alínea p) do artigo
165º, da Constituição), a conclusão acaba por ser a de que não poderá atribuir-se-lhe força ou valor formais de estatuto. O juízo negativo acerca desta norma não tem que avançar para além deste ponto, pois terá de se lhe reconhecer o valor de norma editada pela Assembleia da República em forma de lei, que efectivamente ela também tem. A norma em causa só padeceria de inconstitucionalidade se se entendesse conferir-lhe força formal superior à de lei não reforçada. Todavia, como ficou demonstrado, não é essa a via metodologicamente mais correcta para resolver o conflito normativo com que se deparou a decisão recorrida.
III - DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos indicados, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 68º da Lei n.º 9/87, de 26 de Março, Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na medida em que não lhe seja reconhecido valor de norma estatutária; b) Conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado de acordo com o aqui decidido em matéria de constitucionalidade.
Lisboa,13 de Julho de 1999 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida